Para a nova geração de cineastas egípcios, o país está confinado, e não é de agora. Em 2006, estreou O Edifício Yacoubian, de Marwan Hamed, baseado no best-seller de Alaa al Aswany. O prédio no centro do Cairo já foi o mais luxuoso do Egito, mas a decadência fez dele um retrato das desigualdades do país no governo de Hosni Mubarak. No ano passado, exatamente uma década depois, estreou na mostra Un Certain Regard, do Festival de Cannes, o impactante longa de Mohamed Diab – Clash – que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta, 4. Assim como o Egito cabia no prédio de Hamed, cabe agora num camburão no filme de Diad. Num camburão?
Numa entrevista por telefone, do Cairo, o diretor disse como tudo começou. “Em 2011, estava lançando meu filme anterior quando ocorreu o que, para nós, era uma revolução e, no Ocidente, ficou conhecido como ‘primavera egípcia’. O povo saiu às ruas pedindo o fim do governo de (Hosni) Mubarak, havia um clima de euforia. Em sucessivas entrevistas para falar de Cairo 678 (o título do filme), senti a necessidade de manifestar meu apoio à revolução. E comecei a sonhar com um filme que desse conta do que vivíamos.”
O problema, Diab acrescenta, é que a realidade se tornou dinâmica demais. “Um filme toma tempo, e a ficção era incapaz de refletir tudo o que se passava nas ruas, na sociedade. Quando conseguia pensar numa história, a realidade a desmontava. Foi meu irmão, Khaled, que produz comigo, quem teve a ideia de fazer um filme prendendo num camburão de polícia personagens representativos do momento que estávamos vivendo. Fiz mais de dez versões de roteiro, e, como a realidade supera a gente, o filme que devia celebrar nossa revolução surgiu no momento em que ela recebia seu golpe de morte.”
Em 2012, na sequência dos acontecimentos da primavera egípcia, Mohamed Morsi foi eleito presidente, mas ficou pouco mais de um ano no cargo. Em julho de 2013, foi deposto por um golpe militar, na sequência de novos protestos das ruas. Na ficção de Clash, integrantes da Irmandade Muçulmana (de Farsi) e manifestantes pró-Exército vão parar no camburão. Cria-se a tensão. Como se faz um filme quase todo dentro de um espaço tão exíguo? Essa fórmula do ‘hui clos’ não é inédita, mas é preciso reconhecer que Mohamed Diab acertou. No tom, nas interpretações. Clash é um filmaço.
Diretor explica como ‘Clash’ nasceu com o sentimento de ser universal
Num momento de Clash – o vigoroso filme de Mohamed Diab que estreia nesta quinta-feira, 4 –, as pessoas confinadas no camburão de polícia ouvem explosões distantes. E tanto os integrantes da Irmandade Islâmica quanto os que apoiam o Exército ficam sem saber – “Essas bombas são nossas? Ou deles?”. Na entrevista que deu ao Estado, por telefone, do Cairo, o diretor deixou claro que, desde o início, o objetivo era fazer com que os personagens presos no camburão da polícia fossem representativos do momento que a sociedade egípcia estava vivendo. “Acho que é possível encontrar um viés crítico no filme, porque, se não fosse assim, eu teria falhado. Mas uma coisa também era clara para nós (ele inclui o irmão e produtor Khaled) – esse não é um thriller de Hollywood, portanto, não divide as pessoas em boas e más, mocinhos e bandidos.”
E como se faz para dar voz a todos? – “Por que você acha que escrevemos onze versões do roteiro? Justamente para dar conta dos personagens que representam posições antagônicas. Mas o filme não fica em cima do muro. No limite, nosso compromisso (de Khaled e dele) é com o humano.” E como é fazer um filme com tanta gente, num espaço tão pequeno? “Quando começamos a filmar, certas coisas estavam muito claras na minha cabeça, e por isso foi necessário um período intenso de preparação. Não queria que, para realçar um diálogo, um momento de tensão entre dois, três personagens, o restante ficasse fora de foco. Para garantir a veracidade, ensaiamos muito. E, durante a filmagem, mais de uma câmera ficava ligada, captando tudo de diferentes pontos de vista.”
O elenco é muito bom, embora a familiaridade do espectador brasileiro com o cinema egípcio seja exígua para identificar os atores. “A montagem do elenco foi complicada, e por diversos fatores. O atual governo egípcio é ainda mais conservador que o de (Mohamed) Morsi. Ser artista não é seguro no Egito. Temos um romancista preso pela acusação de obscenidade, jornalistas presos porque teriam ofendido o Islã. Num quadro desses, muita gente não quer se comprometer. Teme pela família. Então, foi preciso buscar atores no cinema, no teatro, misturá-los com não profissionais.”
Todo mundo ralou muito na preparação. “E, para isso, também precisava de atores com disponibilidade.” A filmagem, propriamente dita, foi o que Diab chama de ‘loucura.’ “Havíamos planejado uma filmagem de dois meses e, no final, ficamos reduzidos a 27 dias. Na ficção de Clash, tudo se passa num dia, mas eles (os atores) ficaram confinados durante quase um mês. Tinha gente que se sentia mal. Alguns vomitavam, outros queixavam-se de pesadelos. Diziam que não conseguiam dormir. Isso deu à nossa ficção uma força documental.” E teve mais. “Tínhamos diretores assistentes para preparar e filmar as cenas de multidão. Nunca vi nada parecido. Os figurantes reagiam emocionalmente como se nós estivéssemos de novo naqueles protestos de rua.”
O repórter lembra de O Edifício Yacoubian, de Marwan Hamed, que colocava o Egito num prédio do Cairo. Diab conhece o filme? “Marwan é meu amigo. Conversamos muito sobre o filme que eu queria fazer. Ele foi o primeiro diretor da minha geração a transpor as fronteiras do Egito e ganhar atenção mundial com O Edifício Yacoubian. Foi muito valioso na conceituação teórica de Clash e também trocamos ideias sobre o que seriam os desafios da filmagem. Marwan me incentivou a fazer um filme com ressonância universal. Se não fosse assim, não teria significado para vocês, brasileiros.” Assim como Marwan Hamed e seu Edifício, é impossível falar com um cineasta do Egito sem evocar o legado de Youssef Chahine. Francófono, Chahine colocou o cinema egípcio no mapa mundial e lhe deu projeção na gigantesca vitrine de Cannes – onde Diab exibiu Clash, na mostra Un Certain Regard.
“Você tem toda razão. Youssef nos projetou em Cannes e no mundo. Fez filmes que marcaram a história do cinema no Egito – Baba Amine e Bab el Hadid são nossos clássicos por excelência. E Youssef nos ensinou que nosso compromisso deve ser com nossa gente, nossos valores, nossa cultura. Ele não teve medo de fazer uma biografia de Gamal Abdel Nasser, uma figura mítica para nós, com duras críticas ao Ocidente. Poderia ter sido seu fim, internacionalmente, mas ele sobreviveu, bravamente. E ele tem um filme em que conta o Cairo de um jeito que criou parâmetro. Existem lugares que é melhor desistir. Só tem o jeito de Youssef Chahine de mostrar.”