‘Doutor Monstro’: como a história do cirurgião que esquartejou paciente virou filme com Taís Araújo


Atriz fala ao ‘Estadão’ sobre pesquisa para viver promotora no julgamento de Farah Jorge Farah que aconteceu em 2008. Diretor Marcos Jorge diz que filme, que sai em 2024, é ‘reflexão sobre a justiça brasileira’

Por Bruno Carmelo
Atualização:

Em 2003, um crime abalou a opinião pública brasileira. O cirurgião plástico Farah Jorge Farah assassinou e esquartejou Maria do Carmo Alves. Depois, confessou a autoria dos fatos. No tribunal, os advogados alegaram legítima defesa, sustentando que o réu teria sido motivado pela insistência da amante ciumenta.

A história real chegará aos cinemas brasileiros em um longa-metragem produzido pela Zencrane Filmes, com o título provisório Doutor Monstro. O cineasta Marcos Jorge, de Estômago (2007) e Mundo Cão (2016), retrata os fatos pela perspectiva da promotora de justiça Cláudia Ferreira (interpretada por Taís Araújo), encarregada de garantir a condenação do médico (vivido por Marat Descartes). A filmagem já terminou, e a previsão de lançamento é para 2024, ainda sem data fechada.

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“É um caso de feminicídio que não foi tratado como tal, porque a lei ainda nem existia na época

Taís Araújo

“O filme adota algumas liberdades ficcionais. Fizemos uma ampla pesquisa a respeito do crime verdadeiro. O Marat Descartes estudou o médico partindo das poucas entrevistas existentes dele, e das fotos que conseguimos”, explica o diretor.

Com título provisório de 'Doutor Monstro', filme conta a história do assassinato e esquartejamento de Maria do Carmo Alves pelo cirurgião plástico Farah Jorge Farah; longa tem Taís Araújo no elenco Foto: Natasha Durski/Divulgação
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“Mas o segundo ato, mais longo, se passa no tribunal. Então tem muita pesquisa combinada a uma liberdade poética. Ao mesmo tempo, existe a delicadeza de não fantasiar aspectos sensíveis aos personagens, especialmente as vítimas. Concentrei várias reflexões na mesma história — senão, não caberia nem numa série”, justifica.

A justiça e o feminicídio

Taís Araújo explica ao Estadão a dimensão de sua pesquisa a respeito do caso e da função da promotoria - sua personagem não é baseada em um promotor específico, mas baseada no trabalho do julgamento:

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“Os crimes de feminicídio são caracterizados pela forma como ocorrem. São crimes contra a mulher, é claro, mas também são movidos pelo ódio, com o intuito de descaracterizar a figura feminina. Em geral, são muito violentos. Este crime tem todas essas características: o Farah cortou parte do corpo, parte da virilha. É um caso de feminicídio que não foi tratado como tal, porque a lei ainda nem existia na época”.

“Na questão legal, a gente evoluiu nos dias de hoje”, frisa a atriz. “A Lei Maria da Penha funciona muito bem, assim como as medidas protetivas. A gente tem retrocedido em outros sentidos, mas no aspecto legal, evoluímos bastante. O trabalho das ativistas é essencial à vida das mulheres”.

A este respeito, o roteiro condensa a figura dos promotores reais na personagem interpretada por Araújo. “Acho muito simbólica esta escolha para representar a promotoria, porque as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil. Na minha construção, eu fiz com que este fosse um caso pessoal. É fundamental que haja punição, para servir de exemplo”.

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“Sentimos falta de uma defesa real da vítima, porque ela foi imediatamente rotulada de amante ou namorada do médico, sem muito senso crítico em relação a isso”, concorda o diretor. Na época, parte da mídia reforçou a ideia de que o comportamento da mulher deveria atenuar a responsabilidade do réu. “Estamos fazendo um filme moderno sobre a questão, que vai fazer muitos jornalistas refletirem, porque a imprensa é um personagem importante desta história”, estima.

'A gente está provocando uma reflexão sobre a justiça brasileira, sobre como o Brasil encara a mulher', diz Taís Araújo sobre novo filme Foto: Zencrane Filmes/Divulgação

O espelho de um certo Brasil

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A atriz questiona os argumentos levantados durante o julgamento. “A mídia da época insistia: ‘Mas ela é namorada dele’, como se qualquer atitude desta mulher justificasse o assassinato brutal. Um dos argumentos da defesa sugeria que Maria do Carmo o assediava muito, ligando várias vezes ao dia, então disseram: ‘Quem não mataria?’ Como assim?”.

Para ela, o ponto de vista questionador foi determinante para embarcar no projeto: “O que me fez aceitar este filme foi o fato de ser um ‘true crime’, mas também um filme de tribunal. A gente está provocando uma reflexão sobre a justiça brasileira, sobre como o Brasil encara a mulher; sobre machismo, misoginia, feminicídio. Se fosse o ‘true crime’ pelo ‘true crime’, sem uma crítica social, talvez eu não topasse fazer”.

Marcos Jorge também valoriza o julgamento enquanto forma de equilibrar o relato do crime verídico: “Quando decidimos que, além de um ‘true crime’, este seria um filme de tribunal, assistimos a todos os filmes americanos do gênero. Quase sempre, o grande herói é o advogado de defesa. Ele defende o sujeito injustamente acusado de um crime, e se torna um paladino. Mas este não era o nosso caso: o Farah foi um assassino que confessou o crime”, pontua.

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O ex-médico Farah Jorge Farah em abril de 2008 Foto: Patrícia Santos/Estadão

“Chegamos à conclusão que a nossa heroína deveria ser a promotora. Afinal, nossos promotores estão muito maltratados ultimamente, mas temos muita gente boa e determinada no Ministério Público. A promotoria vai atrás da verdade, defendendo a sociedade. É óbvio que não fomos ingênuos a ponto de pensar que essa promotoria seria isenta de individualismos. Mas partimos de um crime para criar o espelho de um certo Brasil”.

Contra o feitiche da dor alheia

O autor reconhece que a proliferação de projetos audiovisuais a respeito de assassinatos pode resvalar no fetiche da dor alheia, além de transformar tragédias em entretenimento. No entanto, afirma ter tomado precauções para evitar estas armadilhas:

“A possibilidade de glamorizar o crime e o assassino sempre esteve nas minhas preocupações. Nós definitivamente não fazemos isso. Estamos do lado da vítima que, na nossa opinião, não foi devidamente defendida na época do julgamento. Concordo que existe um fator mórbido em assistir a um crime. Mas temos uma delicadeza na maneira de mostrar o que aconteceu: evitamos apelar para a ultraviolência”, diz o cineasta.

“A vítima foi esquartejada, então temos um olhar cuidadoso com o espectador. Não quero que ele esteja desconfortável vendo o filme”

Marcos Jorge

Este fator motivou Taís Araújo a se tornar coprodutora: “Não gosto da ideia de transformar criminosos em popstars. Aqui, a gente pretendia provocar reflexão sobre como a justiça brasileira age quando a vida de uma mulher é ceifada. Por que existe tanta dificuldade em nos aprofundar nestes temas, e dar uma punição lógica? Eu precisava garantir que as pessoas não tivessem uma ideia a respeito deste homem diferente de quem ele realmente foi”.

Com título provisório de 'Doutor Monstro', filme conta a história do assassinato e esquartejamento de Maria do Carmo Alves pelo cirurgião plástico Farah Jorge Farah; longa tem Taís Araújo no elenco CRÉDITO: Natasha Durski/Divulgação Foto: Natasha Durski/Divulgação

Alta de cinebiografias e histórias reais

Por fim, ambos refletem acerca da tendência brasileira a investir em filmes a respeito de histórias reais de modo mais amplo, o que vale tanto para crimes quanto para biografias de músicos, como os bem-sucedidos Nosso Sonho e Meu Nome É Gal:

“As histórias reais dizem muito sobre nós”, acredita a atriz. “Primeiro, por serem absolutamente humanas, e segundo, porque participamos daquilo. Acompanhamos os bastidores, a mídia, as coberturas. Por isso essas premissas se tornam tão sedutoras: o espectador também faz parte do filme. É importante para as outras gerações, e para a gente conhecer as pessoas que construíram o nosso país”.

“Este é um momento muito bom para o cinema brasileiro”, declara Marcos Jorge. “Aí não se entende como o governo anterior estava tão furioso em contar as nossas histórias. Existe algo mais nacionalista, mais verde e amarelo do que levar a nossa língua e as nossas histórias para a tela? Fico feliz que os espectadores estejam reagindo dessa maneira. É uma maturidade do público. Vejo o calendário para 2024 e percebo uma avalanche de filmes trazendo boas histórias brasileiras”.

'Doutor Monstro' é filme de tribunal sobre uma história real brasileira Foto: Zencrane Filmes/Divulgação

Em 2003, um crime abalou a opinião pública brasileira. O cirurgião plástico Farah Jorge Farah assassinou e esquartejou Maria do Carmo Alves. Depois, confessou a autoria dos fatos. No tribunal, os advogados alegaram legítima defesa, sustentando que o réu teria sido motivado pela insistência da amante ciumenta.

A história real chegará aos cinemas brasileiros em um longa-metragem produzido pela Zencrane Filmes, com o título provisório Doutor Monstro. O cineasta Marcos Jorge, de Estômago (2007) e Mundo Cão (2016), retrata os fatos pela perspectiva da promotora de justiça Cláudia Ferreira (interpretada por Taís Araújo), encarregada de garantir a condenação do médico (vivido por Marat Descartes). A filmagem já terminou, e a previsão de lançamento é para 2024, ainda sem data fechada.

“É um caso de feminicídio que não foi tratado como tal, porque a lei ainda nem existia na época

Taís Araújo

“O filme adota algumas liberdades ficcionais. Fizemos uma ampla pesquisa a respeito do crime verdadeiro. O Marat Descartes estudou o médico partindo das poucas entrevistas existentes dele, e das fotos que conseguimos”, explica o diretor.

Com título provisório de 'Doutor Monstro', filme conta a história do assassinato e esquartejamento de Maria do Carmo Alves pelo cirurgião plástico Farah Jorge Farah; longa tem Taís Araújo no elenco Foto: Natasha Durski/Divulgação

“Mas o segundo ato, mais longo, se passa no tribunal. Então tem muita pesquisa combinada a uma liberdade poética. Ao mesmo tempo, existe a delicadeza de não fantasiar aspectos sensíveis aos personagens, especialmente as vítimas. Concentrei várias reflexões na mesma história — senão, não caberia nem numa série”, justifica.

A justiça e o feminicídio

Taís Araújo explica ao Estadão a dimensão de sua pesquisa a respeito do caso e da função da promotoria - sua personagem não é baseada em um promotor específico, mas baseada no trabalho do julgamento:

“Os crimes de feminicídio são caracterizados pela forma como ocorrem. São crimes contra a mulher, é claro, mas também são movidos pelo ódio, com o intuito de descaracterizar a figura feminina. Em geral, são muito violentos. Este crime tem todas essas características: o Farah cortou parte do corpo, parte da virilha. É um caso de feminicídio que não foi tratado como tal, porque a lei ainda nem existia na época”.

“Na questão legal, a gente evoluiu nos dias de hoje”, frisa a atriz. “A Lei Maria da Penha funciona muito bem, assim como as medidas protetivas. A gente tem retrocedido em outros sentidos, mas no aspecto legal, evoluímos bastante. O trabalho das ativistas é essencial à vida das mulheres”.

A este respeito, o roteiro condensa a figura dos promotores reais na personagem interpretada por Araújo. “Acho muito simbólica esta escolha para representar a promotoria, porque as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil. Na minha construção, eu fiz com que este fosse um caso pessoal. É fundamental que haja punição, para servir de exemplo”.

“Sentimos falta de uma defesa real da vítima, porque ela foi imediatamente rotulada de amante ou namorada do médico, sem muito senso crítico em relação a isso”, concorda o diretor. Na época, parte da mídia reforçou a ideia de que o comportamento da mulher deveria atenuar a responsabilidade do réu. “Estamos fazendo um filme moderno sobre a questão, que vai fazer muitos jornalistas refletirem, porque a imprensa é um personagem importante desta história”, estima.

'A gente está provocando uma reflexão sobre a justiça brasileira, sobre como o Brasil encara a mulher', diz Taís Araújo sobre novo filme Foto: Zencrane Filmes/Divulgação

O espelho de um certo Brasil

A atriz questiona os argumentos levantados durante o julgamento. “A mídia da época insistia: ‘Mas ela é namorada dele’, como se qualquer atitude desta mulher justificasse o assassinato brutal. Um dos argumentos da defesa sugeria que Maria do Carmo o assediava muito, ligando várias vezes ao dia, então disseram: ‘Quem não mataria?’ Como assim?”.

Para ela, o ponto de vista questionador foi determinante para embarcar no projeto: “O que me fez aceitar este filme foi o fato de ser um ‘true crime’, mas também um filme de tribunal. A gente está provocando uma reflexão sobre a justiça brasileira, sobre como o Brasil encara a mulher; sobre machismo, misoginia, feminicídio. Se fosse o ‘true crime’ pelo ‘true crime’, sem uma crítica social, talvez eu não topasse fazer”.

Marcos Jorge também valoriza o julgamento enquanto forma de equilibrar o relato do crime verídico: “Quando decidimos que, além de um ‘true crime’, este seria um filme de tribunal, assistimos a todos os filmes americanos do gênero. Quase sempre, o grande herói é o advogado de defesa. Ele defende o sujeito injustamente acusado de um crime, e se torna um paladino. Mas este não era o nosso caso: o Farah foi um assassino que confessou o crime”, pontua.

O ex-médico Farah Jorge Farah em abril de 2008 Foto: Patrícia Santos/Estadão

“Chegamos à conclusão que a nossa heroína deveria ser a promotora. Afinal, nossos promotores estão muito maltratados ultimamente, mas temos muita gente boa e determinada no Ministério Público. A promotoria vai atrás da verdade, defendendo a sociedade. É óbvio que não fomos ingênuos a ponto de pensar que essa promotoria seria isenta de individualismos. Mas partimos de um crime para criar o espelho de um certo Brasil”.

Contra o feitiche da dor alheia

O autor reconhece que a proliferação de projetos audiovisuais a respeito de assassinatos pode resvalar no fetiche da dor alheia, além de transformar tragédias em entretenimento. No entanto, afirma ter tomado precauções para evitar estas armadilhas:

“A possibilidade de glamorizar o crime e o assassino sempre esteve nas minhas preocupações. Nós definitivamente não fazemos isso. Estamos do lado da vítima que, na nossa opinião, não foi devidamente defendida na época do julgamento. Concordo que existe um fator mórbido em assistir a um crime. Mas temos uma delicadeza na maneira de mostrar o que aconteceu: evitamos apelar para a ultraviolência”, diz o cineasta.

“A vítima foi esquartejada, então temos um olhar cuidadoso com o espectador. Não quero que ele esteja desconfortável vendo o filme”

Marcos Jorge

Este fator motivou Taís Araújo a se tornar coprodutora: “Não gosto da ideia de transformar criminosos em popstars. Aqui, a gente pretendia provocar reflexão sobre como a justiça brasileira age quando a vida de uma mulher é ceifada. Por que existe tanta dificuldade em nos aprofundar nestes temas, e dar uma punição lógica? Eu precisava garantir que as pessoas não tivessem uma ideia a respeito deste homem diferente de quem ele realmente foi”.

Com título provisório de 'Doutor Monstro', filme conta a história do assassinato e esquartejamento de Maria do Carmo Alves pelo cirurgião plástico Farah Jorge Farah; longa tem Taís Araújo no elenco CRÉDITO: Natasha Durski/Divulgação Foto: Natasha Durski/Divulgação

Alta de cinebiografias e histórias reais

Por fim, ambos refletem acerca da tendência brasileira a investir em filmes a respeito de histórias reais de modo mais amplo, o que vale tanto para crimes quanto para biografias de músicos, como os bem-sucedidos Nosso Sonho e Meu Nome É Gal:

“As histórias reais dizem muito sobre nós”, acredita a atriz. “Primeiro, por serem absolutamente humanas, e segundo, porque participamos daquilo. Acompanhamos os bastidores, a mídia, as coberturas. Por isso essas premissas se tornam tão sedutoras: o espectador também faz parte do filme. É importante para as outras gerações, e para a gente conhecer as pessoas que construíram o nosso país”.

“Este é um momento muito bom para o cinema brasileiro”, declara Marcos Jorge. “Aí não se entende como o governo anterior estava tão furioso em contar as nossas histórias. Existe algo mais nacionalista, mais verde e amarelo do que levar a nossa língua e as nossas histórias para a tela? Fico feliz que os espectadores estejam reagindo dessa maneira. É uma maturidade do público. Vejo o calendário para 2024 e percebo uma avalanche de filmes trazendo boas histórias brasileiras”.

'Doutor Monstro' é filme de tribunal sobre uma história real brasileira Foto: Zencrane Filmes/Divulgação

Em 2003, um crime abalou a opinião pública brasileira. O cirurgião plástico Farah Jorge Farah assassinou e esquartejou Maria do Carmo Alves. Depois, confessou a autoria dos fatos. No tribunal, os advogados alegaram legítima defesa, sustentando que o réu teria sido motivado pela insistência da amante ciumenta.

A história real chegará aos cinemas brasileiros em um longa-metragem produzido pela Zencrane Filmes, com o título provisório Doutor Monstro. O cineasta Marcos Jorge, de Estômago (2007) e Mundo Cão (2016), retrata os fatos pela perspectiva da promotora de justiça Cláudia Ferreira (interpretada por Taís Araújo), encarregada de garantir a condenação do médico (vivido por Marat Descartes). A filmagem já terminou, e a previsão de lançamento é para 2024, ainda sem data fechada.

“É um caso de feminicídio que não foi tratado como tal, porque a lei ainda nem existia na época

Taís Araújo

“O filme adota algumas liberdades ficcionais. Fizemos uma ampla pesquisa a respeito do crime verdadeiro. O Marat Descartes estudou o médico partindo das poucas entrevistas existentes dele, e das fotos que conseguimos”, explica o diretor.

Com título provisório de 'Doutor Monstro', filme conta a história do assassinato e esquartejamento de Maria do Carmo Alves pelo cirurgião plástico Farah Jorge Farah; longa tem Taís Araújo no elenco Foto: Natasha Durski/Divulgação

“Mas o segundo ato, mais longo, se passa no tribunal. Então tem muita pesquisa combinada a uma liberdade poética. Ao mesmo tempo, existe a delicadeza de não fantasiar aspectos sensíveis aos personagens, especialmente as vítimas. Concentrei várias reflexões na mesma história — senão, não caberia nem numa série”, justifica.

A justiça e o feminicídio

Taís Araújo explica ao Estadão a dimensão de sua pesquisa a respeito do caso e da função da promotoria - sua personagem não é baseada em um promotor específico, mas baseada no trabalho do julgamento:

“Os crimes de feminicídio são caracterizados pela forma como ocorrem. São crimes contra a mulher, é claro, mas também são movidos pelo ódio, com o intuito de descaracterizar a figura feminina. Em geral, são muito violentos. Este crime tem todas essas características: o Farah cortou parte do corpo, parte da virilha. É um caso de feminicídio que não foi tratado como tal, porque a lei ainda nem existia na época”.

“Na questão legal, a gente evoluiu nos dias de hoje”, frisa a atriz. “A Lei Maria da Penha funciona muito bem, assim como as medidas protetivas. A gente tem retrocedido em outros sentidos, mas no aspecto legal, evoluímos bastante. O trabalho das ativistas é essencial à vida das mulheres”.

A este respeito, o roteiro condensa a figura dos promotores reais na personagem interpretada por Araújo. “Acho muito simbólica esta escolha para representar a promotoria, porque as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil. Na minha construção, eu fiz com que este fosse um caso pessoal. É fundamental que haja punição, para servir de exemplo”.

“Sentimos falta de uma defesa real da vítima, porque ela foi imediatamente rotulada de amante ou namorada do médico, sem muito senso crítico em relação a isso”, concorda o diretor. Na época, parte da mídia reforçou a ideia de que o comportamento da mulher deveria atenuar a responsabilidade do réu. “Estamos fazendo um filme moderno sobre a questão, que vai fazer muitos jornalistas refletirem, porque a imprensa é um personagem importante desta história”, estima.

'A gente está provocando uma reflexão sobre a justiça brasileira, sobre como o Brasil encara a mulher', diz Taís Araújo sobre novo filme Foto: Zencrane Filmes/Divulgação

O espelho de um certo Brasil

A atriz questiona os argumentos levantados durante o julgamento. “A mídia da época insistia: ‘Mas ela é namorada dele’, como se qualquer atitude desta mulher justificasse o assassinato brutal. Um dos argumentos da defesa sugeria que Maria do Carmo o assediava muito, ligando várias vezes ao dia, então disseram: ‘Quem não mataria?’ Como assim?”.

Para ela, o ponto de vista questionador foi determinante para embarcar no projeto: “O que me fez aceitar este filme foi o fato de ser um ‘true crime’, mas também um filme de tribunal. A gente está provocando uma reflexão sobre a justiça brasileira, sobre como o Brasil encara a mulher; sobre machismo, misoginia, feminicídio. Se fosse o ‘true crime’ pelo ‘true crime’, sem uma crítica social, talvez eu não topasse fazer”.

Marcos Jorge também valoriza o julgamento enquanto forma de equilibrar o relato do crime verídico: “Quando decidimos que, além de um ‘true crime’, este seria um filme de tribunal, assistimos a todos os filmes americanos do gênero. Quase sempre, o grande herói é o advogado de defesa. Ele defende o sujeito injustamente acusado de um crime, e se torna um paladino. Mas este não era o nosso caso: o Farah foi um assassino que confessou o crime”, pontua.

O ex-médico Farah Jorge Farah em abril de 2008 Foto: Patrícia Santos/Estadão

“Chegamos à conclusão que a nossa heroína deveria ser a promotora. Afinal, nossos promotores estão muito maltratados ultimamente, mas temos muita gente boa e determinada no Ministério Público. A promotoria vai atrás da verdade, defendendo a sociedade. É óbvio que não fomos ingênuos a ponto de pensar que essa promotoria seria isenta de individualismos. Mas partimos de um crime para criar o espelho de um certo Brasil”.

Contra o feitiche da dor alheia

O autor reconhece que a proliferação de projetos audiovisuais a respeito de assassinatos pode resvalar no fetiche da dor alheia, além de transformar tragédias em entretenimento. No entanto, afirma ter tomado precauções para evitar estas armadilhas:

“A possibilidade de glamorizar o crime e o assassino sempre esteve nas minhas preocupações. Nós definitivamente não fazemos isso. Estamos do lado da vítima que, na nossa opinião, não foi devidamente defendida na época do julgamento. Concordo que existe um fator mórbido em assistir a um crime. Mas temos uma delicadeza na maneira de mostrar o que aconteceu: evitamos apelar para a ultraviolência”, diz o cineasta.

“A vítima foi esquartejada, então temos um olhar cuidadoso com o espectador. Não quero que ele esteja desconfortável vendo o filme”

Marcos Jorge

Este fator motivou Taís Araújo a se tornar coprodutora: “Não gosto da ideia de transformar criminosos em popstars. Aqui, a gente pretendia provocar reflexão sobre como a justiça brasileira age quando a vida de uma mulher é ceifada. Por que existe tanta dificuldade em nos aprofundar nestes temas, e dar uma punição lógica? Eu precisava garantir que as pessoas não tivessem uma ideia a respeito deste homem diferente de quem ele realmente foi”.

Com título provisório de 'Doutor Monstro', filme conta a história do assassinato e esquartejamento de Maria do Carmo Alves pelo cirurgião plástico Farah Jorge Farah; longa tem Taís Araújo no elenco CRÉDITO: Natasha Durski/Divulgação Foto: Natasha Durski/Divulgação

Alta de cinebiografias e histórias reais

Por fim, ambos refletem acerca da tendência brasileira a investir em filmes a respeito de histórias reais de modo mais amplo, o que vale tanto para crimes quanto para biografias de músicos, como os bem-sucedidos Nosso Sonho e Meu Nome É Gal:

“As histórias reais dizem muito sobre nós”, acredita a atriz. “Primeiro, por serem absolutamente humanas, e segundo, porque participamos daquilo. Acompanhamos os bastidores, a mídia, as coberturas. Por isso essas premissas se tornam tão sedutoras: o espectador também faz parte do filme. É importante para as outras gerações, e para a gente conhecer as pessoas que construíram o nosso país”.

“Este é um momento muito bom para o cinema brasileiro”, declara Marcos Jorge. “Aí não se entende como o governo anterior estava tão furioso em contar as nossas histórias. Existe algo mais nacionalista, mais verde e amarelo do que levar a nossa língua e as nossas histórias para a tela? Fico feliz que os espectadores estejam reagindo dessa maneira. É uma maturidade do público. Vejo o calendário para 2024 e percebo uma avalanche de filmes trazendo boas histórias brasileiras”.

'Doutor Monstro' é filme de tribunal sobre uma história real brasileira Foto: Zencrane Filmes/Divulgação

Em 2003, um crime abalou a opinião pública brasileira. O cirurgião plástico Farah Jorge Farah assassinou e esquartejou Maria do Carmo Alves. Depois, confessou a autoria dos fatos. No tribunal, os advogados alegaram legítima defesa, sustentando que o réu teria sido motivado pela insistência da amante ciumenta.

A história real chegará aos cinemas brasileiros em um longa-metragem produzido pela Zencrane Filmes, com o título provisório Doutor Monstro. O cineasta Marcos Jorge, de Estômago (2007) e Mundo Cão (2016), retrata os fatos pela perspectiva da promotora de justiça Cláudia Ferreira (interpretada por Taís Araújo), encarregada de garantir a condenação do médico (vivido por Marat Descartes). A filmagem já terminou, e a previsão de lançamento é para 2024, ainda sem data fechada.

“É um caso de feminicídio que não foi tratado como tal, porque a lei ainda nem existia na época

Taís Araújo

“O filme adota algumas liberdades ficcionais. Fizemos uma ampla pesquisa a respeito do crime verdadeiro. O Marat Descartes estudou o médico partindo das poucas entrevistas existentes dele, e das fotos que conseguimos”, explica o diretor.

Com título provisório de 'Doutor Monstro', filme conta a história do assassinato e esquartejamento de Maria do Carmo Alves pelo cirurgião plástico Farah Jorge Farah; longa tem Taís Araújo no elenco Foto: Natasha Durski/Divulgação

“Mas o segundo ato, mais longo, se passa no tribunal. Então tem muita pesquisa combinada a uma liberdade poética. Ao mesmo tempo, existe a delicadeza de não fantasiar aspectos sensíveis aos personagens, especialmente as vítimas. Concentrei várias reflexões na mesma história — senão, não caberia nem numa série”, justifica.

A justiça e o feminicídio

Taís Araújo explica ao Estadão a dimensão de sua pesquisa a respeito do caso e da função da promotoria - sua personagem não é baseada em um promotor específico, mas baseada no trabalho do julgamento:

“Os crimes de feminicídio são caracterizados pela forma como ocorrem. São crimes contra a mulher, é claro, mas também são movidos pelo ódio, com o intuito de descaracterizar a figura feminina. Em geral, são muito violentos. Este crime tem todas essas características: o Farah cortou parte do corpo, parte da virilha. É um caso de feminicídio que não foi tratado como tal, porque a lei ainda nem existia na época”.

“Na questão legal, a gente evoluiu nos dias de hoje”, frisa a atriz. “A Lei Maria da Penha funciona muito bem, assim como as medidas protetivas. A gente tem retrocedido em outros sentidos, mas no aspecto legal, evoluímos bastante. O trabalho das ativistas é essencial à vida das mulheres”.

A este respeito, o roteiro condensa a figura dos promotores reais na personagem interpretada por Araújo. “Acho muito simbólica esta escolha para representar a promotoria, porque as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil. Na minha construção, eu fiz com que este fosse um caso pessoal. É fundamental que haja punição, para servir de exemplo”.

“Sentimos falta de uma defesa real da vítima, porque ela foi imediatamente rotulada de amante ou namorada do médico, sem muito senso crítico em relação a isso”, concorda o diretor. Na época, parte da mídia reforçou a ideia de que o comportamento da mulher deveria atenuar a responsabilidade do réu. “Estamos fazendo um filme moderno sobre a questão, que vai fazer muitos jornalistas refletirem, porque a imprensa é um personagem importante desta história”, estima.

'A gente está provocando uma reflexão sobre a justiça brasileira, sobre como o Brasil encara a mulher', diz Taís Araújo sobre novo filme Foto: Zencrane Filmes/Divulgação

O espelho de um certo Brasil

A atriz questiona os argumentos levantados durante o julgamento. “A mídia da época insistia: ‘Mas ela é namorada dele’, como se qualquer atitude desta mulher justificasse o assassinato brutal. Um dos argumentos da defesa sugeria que Maria do Carmo o assediava muito, ligando várias vezes ao dia, então disseram: ‘Quem não mataria?’ Como assim?”.

Para ela, o ponto de vista questionador foi determinante para embarcar no projeto: “O que me fez aceitar este filme foi o fato de ser um ‘true crime’, mas também um filme de tribunal. A gente está provocando uma reflexão sobre a justiça brasileira, sobre como o Brasil encara a mulher; sobre machismo, misoginia, feminicídio. Se fosse o ‘true crime’ pelo ‘true crime’, sem uma crítica social, talvez eu não topasse fazer”.

Marcos Jorge também valoriza o julgamento enquanto forma de equilibrar o relato do crime verídico: “Quando decidimos que, além de um ‘true crime’, este seria um filme de tribunal, assistimos a todos os filmes americanos do gênero. Quase sempre, o grande herói é o advogado de defesa. Ele defende o sujeito injustamente acusado de um crime, e se torna um paladino. Mas este não era o nosso caso: o Farah foi um assassino que confessou o crime”, pontua.

O ex-médico Farah Jorge Farah em abril de 2008 Foto: Patrícia Santos/Estadão

“Chegamos à conclusão que a nossa heroína deveria ser a promotora. Afinal, nossos promotores estão muito maltratados ultimamente, mas temos muita gente boa e determinada no Ministério Público. A promotoria vai atrás da verdade, defendendo a sociedade. É óbvio que não fomos ingênuos a ponto de pensar que essa promotoria seria isenta de individualismos. Mas partimos de um crime para criar o espelho de um certo Brasil”.

Contra o feitiche da dor alheia

O autor reconhece que a proliferação de projetos audiovisuais a respeito de assassinatos pode resvalar no fetiche da dor alheia, além de transformar tragédias em entretenimento. No entanto, afirma ter tomado precauções para evitar estas armadilhas:

“A possibilidade de glamorizar o crime e o assassino sempre esteve nas minhas preocupações. Nós definitivamente não fazemos isso. Estamos do lado da vítima que, na nossa opinião, não foi devidamente defendida na época do julgamento. Concordo que existe um fator mórbido em assistir a um crime. Mas temos uma delicadeza na maneira de mostrar o que aconteceu: evitamos apelar para a ultraviolência”, diz o cineasta.

“A vítima foi esquartejada, então temos um olhar cuidadoso com o espectador. Não quero que ele esteja desconfortável vendo o filme”

Marcos Jorge

Este fator motivou Taís Araújo a se tornar coprodutora: “Não gosto da ideia de transformar criminosos em popstars. Aqui, a gente pretendia provocar reflexão sobre como a justiça brasileira age quando a vida de uma mulher é ceifada. Por que existe tanta dificuldade em nos aprofundar nestes temas, e dar uma punição lógica? Eu precisava garantir que as pessoas não tivessem uma ideia a respeito deste homem diferente de quem ele realmente foi”.

Com título provisório de 'Doutor Monstro', filme conta a história do assassinato e esquartejamento de Maria do Carmo Alves pelo cirurgião plástico Farah Jorge Farah; longa tem Taís Araújo no elenco CRÉDITO: Natasha Durski/Divulgação Foto: Natasha Durski/Divulgação

Alta de cinebiografias e histórias reais

Por fim, ambos refletem acerca da tendência brasileira a investir em filmes a respeito de histórias reais de modo mais amplo, o que vale tanto para crimes quanto para biografias de músicos, como os bem-sucedidos Nosso Sonho e Meu Nome É Gal:

“As histórias reais dizem muito sobre nós”, acredita a atriz. “Primeiro, por serem absolutamente humanas, e segundo, porque participamos daquilo. Acompanhamos os bastidores, a mídia, as coberturas. Por isso essas premissas se tornam tão sedutoras: o espectador também faz parte do filme. É importante para as outras gerações, e para a gente conhecer as pessoas que construíram o nosso país”.

“Este é um momento muito bom para o cinema brasileiro”, declara Marcos Jorge. “Aí não se entende como o governo anterior estava tão furioso em contar as nossas histórias. Existe algo mais nacionalista, mais verde e amarelo do que levar a nossa língua e as nossas histórias para a tela? Fico feliz que os espectadores estejam reagindo dessa maneira. É uma maturidade do público. Vejo o calendário para 2024 e percebo uma avalanche de filmes trazendo boas histórias brasileiras”.

'Doutor Monstro' é filme de tribunal sobre uma história real brasileira Foto: Zencrane Filmes/Divulgação

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