Na entrevista que Michel Ciment fez com Pawel Pawlikowski para a revista Positif, anterior à indicação de Ida para o Globo de Ouro e à pré-indicação do filme para o Oscar, o diretor faz observações reveladoras. Diz que, embora seu filme tenha sido bem recebido na Polônia, esteve longe de ser uma unanimidade. A direita nacionalista cobrou-lhe mostrar uma Polônia demasiado cinzenta e também por tocar num tema ainda tabu no país – as perseguições e mortes de judeus. Os próprios judeus sentiram-se ultrajados porque Ida, a protagonista, mesmo depois de descobrir sua origem judaica, volta ao convento para se ordenar como freira – mesmo que Pawlikowski não dê nenhuma indicação de que isso vá ocorrer, de fato.
Fora da Polônia, sim, Ida tem sido uma unanimidade. O filme de Pawlikowski integrou diversas listas de melhores na França e nos EUA. Dá- se como certo que será um dos cinco indicados para concorrer ao Oscar de filme estrangeiro, mas, para isso, será preciso esperar pelo anúncio da Academia, em 15 de janeiro e, até lá, Ida já poderá ter recebido o Globo de Ouro da Associação de Correspondentes Estrangeiros de Hollywood, no dia 11. Nascido em Varsóvia, em 1957, Pawlikowski graduou-se em filosofia e literatura alemã em Oxford. É um cosmopolita que já viveu, e filmou, na Inglaterra e na França. Sua volta à Polônia se faz por meio de um tema controverso – as relações entre católicos e judeus no país, mas ele idealiza sua Polônia.
A história de Ida situa-se em 1962 e, no começo dos anos 1960, a Polônia era um corpo estranho na Cortina de Ferro. Não apenas tinha um cinema vigoroso – original e crítico –, com autores que ganharam reconhecimento mundial, como Andrzej Wajda, Roman Polanski e Jerzy Kawalerowicz, como era um centro de jazz afinado com as novas tendências na ‘América’. Pawlikowski diz que essa era a Polônia de seus pais, e é um pouco em homenagem a eles, àquela época, que ele cria o personagem do guitarrista, imerso na musicalidade de John Coltrane. Na história, Ida é uma noviça que está prestes a tomar o hábito como freira. Mas a madre do convento teme que Ida não esteja preparada e a incentiva a conhecer o mundo.
Ela vai em busca de uma tia com quem perdeu o contato, mas Wanda – é seu nome – escorraça a sobrinha. A esse primeiro movimento, o repúdio, vem outro. Ela não apenas corre atrás de Ida e a recebe em casa, como faz uma revelação. Ida não é seu nome, e ela, na verdade, é judia. Surge uma história do antissemitismo na Polônia, não propriamente de poloneses colaborando com os nazistas, mas de poloneses caçando e matando judeus. Mais alguns anos, e em 1968, o regime comunista estará expurgando judeus. Tudo isso pode ser novo e até surpreendente para o espectador brasileiro, mas nos últimos anos – dez, pelo menos –, cinema e literatura têm estimulado a reflexão sobre essa fase sinistra.
Um filme como Poklosie, de Wladislaw Pasikowski, provocou um debate nacional por tocar na ferida. Ida retoma a discussão num tom mais intimista. E, embora leve o nome da noviça, a tia – Wanda, a Vermelha – é quem propõe os conflitos. Ida é mais ou menos testemunha da implosão do mundo dessa juíza que ascendeu no partido, mas com a desestalinização, perdeu espaço e tornou-se incômoda para o regime. Para convencer a sobrinha, a tia cai com ela na estrada. É uma dupla viagem de iniciação. Ida vai descobrir coisas sobre si mesma – a vida e o mundo –, a tia realiza uma viagem premonitória (ou preparatória) de morte.
É curioso que a madre envie Ida para as tentações do mundo. Quando ela confessa à tia que nunca se interessou por sexo, Wanda desdenha – se o sexo nunca teve significado para a sobrinha, que sacrifício ela estará fazendo ao se devotar ao celibato de uma freira? A tia, pelo contrário, fuma como um homem e tem amantes. Nada muito edificante para Ida, mas por detrás desse comportamento, digamos, provocativo, ou rude, há uma angústia genuína. Para ser fiel à época, Pawlikowski filma em preto e branco, e no formato quadrado (1.33). É um filme belo de ver, mas não esteticista. O formato favorece o embate das atrizes, com seus rostos sempre presentes. A paisagem, vista do carro, interfere no embate, entra também como fator modulador do ritmo. Ida é um filme lindamente realizado.