Maria Callas passeia por sua nova casa, na costa italiana. Em volta da piscina, diverte-se com um cachorrinho e caminha pelo jardim enquanto sua voz, em off, fala sobre seus hábitos fora do palco. Ela diz que gosta especialmente de ver TV. E que tem um hobby “ridículo”: apesar de não saber cozinhar, gosta de colecionar receitas. “Você consegue imaginar? Justo eu, a tragédia em pessoa.”
Essa é apenas uma das imagens raras – boa parte delas inéditas – que o diretor Tom Volf conseguiu reunir ao montar o documentário Maria Callas – Em Suas Próprias Palavras, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta, 6. São muitas. Há cenas no palco, em óperas como Madama Butterfly e Norma. Ensaios com gigantes como os cineastas Pasolini eVisconti e o maestro Carlo Maria Giulini. Dezenas de entrevistas, em que ela fala abertamente sobre sua vida e carreira.
A tragédia em pessoa. Callas interpretou no palco mulheres atormentadas por amores frustrados, subjugadas pelo mundo em que viviam. Na vida real, viveu em conflito com a família, passou por um divórcio rumoroso, envolveu-se com Aristóteles Onassis – e soube pela imprensa de seu casamento com Jacqueline Kennedy.
“Eu ouvi uma gravação de Callas pela primeira vez há seis anos. Foi, para mim, uma revelação profunda. E naturalmente quis entender o fascínio que ela provocava”, conta o diretor. Para tanto, em meio a muitas versões e muitos rumores, ele se propôs a resgatar a voz da mulher por trás da cantora. Mas, como, se ela própria afirma no documentário, que “as suas memórias estão nas personagens que interpretou”?
Busca. Ao se propor a construir um retrato em primeira pessoa da soprano Maria Callas (1923-1977), o diretor Tom Volf deparou com uma mulher constantemente em conflito. “Callas está sempre brigando com Maria, e Maria com Callas, em uma busca por uma harmonia que ela não vai conseguir encontrar”, afirma.
Callas revolucionou a interpretação na ópera. “A ópera pode ser entediante”, ela diz. E o único antídoto é o poder de atuação de um cantor que se entende não apenas como uma voz, mas também como um ator, uma atriz, capaz de dar sentido aos dramas que interpreta. São poucos os vídeos disponíveis dela no palco, mas a voz, preservada em dezenas de CDs, não deixa dúvidas a respeito da intensidade das interpretações, de um sentido de urgência capaz de nos aproximar das personagens que ela vivia.
“Para ela, tratava-se sempre da integridade artística, do respeito ao compositor e ao público”, diz Volf. “Há algo muito autêntico em suas entrevistas e também nas cartas que envia aos amigos, em que se abre totalmente. Na verdade, ela é sempre honesta, mesmo quando lhe perguntam sobre sua vida íntima. E é essa mesma honestidade que fez de suas interpretações experiências tão marcantes.”
Ainda assim, a soprano nutria dúvidas a respeito da própria carreira. São questionamentos que remontam à infância. Foi a mãe que resolveu fazer dela uma estrela. E Callas tem sentimentos conflituosos sobre esse momento. Em uma entrevista, diz que a mãe agiu corretamente, que deve tudo às suas escolhas. Em outra, no entanto, reclama da infância que lhe foi roubada. Deveria existir, ela chega a dizer, uma lei contra pais que agem dessa forma com os filhos.
Não por caso, Volf constrói, com imagens, o retrato de uma mulher que é sempre levada pelos outros. Quando Callas sai de um teatro após apresentação, quando desembarca em um aeroporto, está sempre rodeada de câmeras, jornalistas, público. É carregada por pequenas multidões. Ela parece assustada. Pede que não a empurrem. Em entrevistas, repórteres perguntam sem a menor cerimônia sobre detalhes íntimos de sua vida. Ela responde como pode. Eles insistem.
Na narrativa de Volf, Callas vê a própria carreira ser sequestrada por aqueles que estão à sua volta. Quando se separa de Giovanni Battista Meneghini, seu marido e empresário, conta que ele cometeu o erro que ela sempre evitou: deslumbrou-se com a imagem da grande estrela, com a celebridade conquistada. Em outro momento, ao abandonar uma récita de Norma em Milão por não estar se sentido bem, explica que não poderia continuar e desrespeitar as pessoas no teatro e o compositor Vincenzo Bellini. No primeiro episódio, a imprensa a ataca; no segundo, o Teatro Alla Scala aparece pichado com os dizeres Via Callas!, Fora Callas.
Em meio a tudo isso, a soprano expressa várias vezes um desejo de liberdade. “É algo que chama muita atenção, uma dualidade entre a profissão e o desejo de ter uma vida que ela chama de normal”, anota Volf. Ela chega a afirmar que o caminho natural para uma mulher é se casar, ter filhos, cuidar do marido – um caminho que lhe foi roubado. “Essa é uma questão interessante, porque pode sugerir uma visão conservadora que, no fundo, não a representa”, diz Volf. “Callas quis se separar do marido nos anos 1960, quando o divórcio ainda era ilegal na Itália. É um comportamento muito moderno para a época. Quando ela fala sobre o que entende como caminho natural para uma mulher, ela não está fazendo algum tipo de comentário social. Está falando mais uma vez dessa dualidade que pautou sua vida, do fato de que foi preciso abrir mão de algumas coisas para ter a carreira.”
O documentário sugere que, se ela aceitou essa realidade, foi por uma crença profunda no destino. O que ajuda a explicar a forte identificação com as personagens que cantava: Violeta, na Traviata, Cio-Cio San, na Butterfly, Norma, todas elas veem seus desejos individuais frustrados perante um mundo cruel. “Ela sabia que compartilhava um senso de tragédia com elas. Por conta disso, estar no palco era muito mais do que interpretar. Era também viver.”
Todas essas questões, acredita Volf, dão à figura de Callas, que completaria 95 anos no domingo, 2 de dezembro, uma força atual. Foi por isso que optou por colorizar os vídeos da soprano. “A imagem em preto e branco passa uma sensação de passado que vai contra a ideia de que ela continua presente no nosso imaginário. Ainda assim, só fizemos isso quando havia fotos coloridas disponíveis, que serviram como guia na colorização.” As imagens inéditas, por sua vez, foram recuperadas em acervos particulares ou de fundações que as vinham guardando até então. “Elas existiam, ao contrário do que se imaginava. O que ouvimos foi uma preocupação das pessoas em preservá-las até que alguém as fosse utilizar em um projeto no qual fofocas e rumores fossem substituídos por uma tentativa de fato de dar voz a Callas.”