Alerta: a reportagem abaixo trata de temas como suicídio e transtornos mentais. Se você está passando por problemas, veja ao final do texto onde buscar ajuda.
Nunca se falou tanto em saúde mental. Artistas e atletas não temem comentar sobre suas dificuldades e até dar um tempo em suas carreiras, como foi o caso de Shawn Mendes, Simone Biles e Naomi Osaka. Os filmes e séries de televisão estão refletindo essa preocupação, acentuada durante a pandemia.
As maiores bilheterias do ano passado, Barbie e Oppenheimer, tocam, cada um à sua maneira, em questões de saúde mental. Os Rejeitados, vencedor do Oscar de atriz coadjuvante, lida com depressão. Séries da Marvel como WandaVision exploram trauma e estresse pós-traumático, e filmes queridinhos como Aftersun discutem depressão, assim como a série cômica Ted Lasso. Na Netflix, Bebê Rena faz sucesso ao tratar – de maneira polêmica, é verdade – o trauma após abuso sexual e um caso de stalking.
“Na pandemia, tivemos um aumento expressivo da epidemiologia dos transtornos mentais”, diz o psiquiatra Luiz Gustavo Zoldan, do Hospital Albert Einstein. Segundo ele, artigos científicos mostram um incremento de aproximadamente 25% de casos de ansiedade e depressão. Há também um crescimento das taxas de suicídio, nas Américas em geral, Brasil incluído. “Foi necessário começar a falar sobre saúde mental, pois mais pessoas sofreram. Isso quebrou um pouco o estigma”, disse.
Karen Scavacini, psicóloga, fundadora do Instituto Vita Alere e doutora em saúde mental, prevenção e posvenção do suicídio, concorda que a pandemia foi um fator fundamental nessa mudança de percepção. “Hoje pelo menos em certas bolhas as pessoas estão mais sensibilizadas e com um pouco menos de julgamento”, afirmou.
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Saúde mental no cinema brasileiro
Os cineastas brasileiros não estão imunes a esse interesse. No documentário As Linhas da Minha Mão, que estreou em São Paulo em 18 de abril, João Dumans mostra a convivência da artista e cineasta Viviane de Cássia Ferreira com a arte, a vida e o transtorno bipolar.
A Metade de Nós, de Flavio Botelho, com lançamento comercial previsto para 30 de maio, partiu de uma necessidade do cineasta de colocar para fora seus sentimentos em relação à morte da irmã por suicídio, pouco depois do nascimento da filha. “Foi muito complexo lidar com tudo aquilo”, disse o cineasta. “O suicídio impacta muitas pessoas, e os sentimentos são os mais variados. Geram culpa, vergonha, às vezes raiva. Mas meu pai teve um processo muito bonito, porque era um cara fechado sobre seus sentimentos e acabou escrevendo um livro sobre a história”, conta.
No fim, o que era um desabafo virou uma maneira de criar diálogo. “Eu não queria uma estigmatização por causa daquele ato final. No caso da minha irmã, ela foi muito mais do que aquilo.” Conforme foi trabalhando no roteiro, Botelho foi se afastando de sua história para poder criar complexidade. O filme, vencedor do prêmio do público na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, retrata como os pais, interpretados por Denise Weinberg e Cacá Amaral, lidam com a morte do único filho por suicídio.
Em Meu Casulo de Drywall, que estreou no Festival South by Southwest, em Austin, Estados Unidos, Caroline Fioratti traça um panorama das várias aflições da juventude, mostrando uma festa adolescente que termina com uma morte por suicídio. Na história, Virginia (Bella Piero) mora em um condomínio de luxo. Ela está animada com sua festa de 17 anos, mas sofre com a pressão da mãe, dos amigos, das redes sociais, assim como sua amiga Luana (Mari Oliveira). O longa deve estrear no segundo semestre.
A cineasta começou a trabalhar no longa há mais de dez anos e, de lá para cá, viu o aumento da influência das redes sociais. “Ao mesmo tempo em que são um fator de cobrança, elas também trazem informações”, disse Fioratti. “As recomendações em geral hoje é que se fale sobre o assunto, mas precisa ver como falar, para não gerar gatilhos. A gente precisa ter responsabilidade ao tratar desses assuntos, mas não deixar de tratar.”
Já em Ninguém Sai Vivo Daqui, que também deve estrear no segundo semestre, André Ristum vai ao passado para expor o tratamento de pessoas internadas no Centro Psiquiátrico Hospitalar de Barbacena, o chamado hospital Colônia. Entre 1903 e meados dos anos 1980, milhares de pessoas foram internadas ali, muitas vezes sem justificativa, e submetidas a tratamentos cruéis. Cerca de 60 mil morreram.
Com base em Holocausto Brasileiro, livro-reportagem de Daniela Arbex, o cineasta criou uma ficção sobre Elisa (Fernanda Marques), internada pelo pai fazendeiro por estar grávida. “É uma história chocante, que pouca gente conhecia até o livro ser publicado”, disse Ristum em entrevista ao Estadão. “Queria mostrar essa situação absurda para que nunca mais volte a acontecer.”
Quais são as principais questões de saúde mental?
As condições que afetam a saúde mental são muitas e variadas. As mais comuns são depressão, distúrbios de ansiedade, de uso de substâncias, alimentares, bipolar e esquizofrenia. Cerca de 90% das pessoas que morrem por suicídio têm alguma condição de saúde mental diagnosticável no momento de sua morte, embora nem todas tenham sido diagnosticadas. É importante lembrar que um tratamento adequado e medidas de autocuidado são eficazes no tratamento dessas condições na maioria das pessoas.
Filmes podem perpetuar estigmas
É verdade que as questões de saúde mental não são exatamente novidade no cinema e na televisão. Mas, com frequência, a maneira como elas são abordadas nem sempre é a mais adequada. Por exemplo, personagens com doenças mentais são comumente retratados como violentos em filmes como Taxi Driver – Motorista de Táxi, de Martin Scorsese, e Coringa, de Todd Phillips.
Segundo pesquisa publicada no ano passado pela Iniciativa de Inclusão da USC Annenberg, da Escola de Comunicação e Jornalismo da Universidade da Califórnia do Sul, 72,3% dos personagens com condições de saúde mental foram mostrados como perpetradores de violência nos cem filmes de maior bilheteria nos Estados Unidos em 2022. E 77,1% deles foram alvo de violência. Somente 15,7% deles foram vistos usando medicação ou passando por tratamento para sua condição. A saúde mental é estigmatizada, com 78% dos personagens sendo menosprezados ou desacreditados.
Fazer filmes e séries sobre saúde mental é benéfico?
Para o psiquiatra Luiz Gustavo Zoldan, do Hospital Albert Einstein, depende. “Acho importante fazerem filmes que retratem a história da psiquiatria e dos cuidados com a saúde mental, até para não haver um apagamento histórico de uma época em que os tratamentos eram muito punitivos”, disse. “E que os filmes e séries que retratem pessoas com transtornos mentais sem estigma. Porque historicamente eles foram vilões, malucos, doidos sem função. Muitos mostram os transtornos de maneira discriminatória e colocam essas pessoas à margem da sociedade. Hoje vemos mais filmes em que eles são protagonistas capazes.”
A psicóloga Karen Scavacini acha que os filmes e séries provocam identificação. “A pessoa consegue se ver em um personagem, dá uma sensação de pertencimento, de ver que isso acontece com outros também. Há uma normalização de algo que acontece na sociedade”, apontou.
Mas depende de como são feitos. “Estudos mostram que a caracterização pela imprensa ou pelo cinema pode diminuir o número de casos, ao trazer sensibilização, educação, mostrar como as pessoas podem pedir ajuda, que algo pode ser feito”, disse Scavacini.
Zoldan concorda. Para ele, é importante que o suicídio seja retratado. “Mas nunca se deve romantizá-lo, pois ele pode ser contagioso”, disse Zoldan, citando o livro Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe, que provocou uma série de suicídios na Europa do final do século 18. “Tem uma frase que eu acho que deveria estar em todos os filmes e séries sobre esse tema: O suicídio é uma solução permanente para um problema provisório.”
Manual de boas práticas
Para combater estereótipos e visões distorcidas ou até prejudiciais amplificadas pelo cinema e pela televisão, a Organização Mundial da Saúde publicou um livreto em 2019 chamado Prevenindo o Suicídio: Uma Ferramenta para Cineastas e Outros Trabalhando no Palco e nas Telas. Em 2021, a USC junto com a MTV publicou o Guia da Saúde Mental para a Mídia.
Neles, há uma série de sugestões para quem escreve e dirige filmes e séries. Por exemplo: mostrar que a saúde mental é um processo com altos e baixos, que afeta todos os estratos, gêneros e raças, exibir conversas, procura de ajuda, apoio de amigos e familiares de maneira realista, representar causas, sempre múltiplas, de maneira precisa, considerando o impacto da linguagem, e evitar compartilhar detalhes potencialmente nocivos.
É recomendável também que, no caso de o filme falar de suicídio, que sejam incluídos recursos disponíveis a pessoas em risco ou suas famílias.
Flavio Botelho, Caroline Fioratti e André Ristum consultaram especialistas durante a fase de pesquisa, roteiro e filmagem. “Tudo bem ficcionalizar as histórias, mas não podia correr o risco de exagerar ou inventar alguma barbaridade”, disse Ristum. O cineasta procurou, por exemplo, centrar sua narrativa em personagens sem nenhuma questão de saúde mental, para não estigmatizar o lugar. “E 80% das pessoas não tinham nenhum diagnóstico para tratamento, que dirá para serem trancafiadas. Eram rejeitados, excluídos, a moça solteira grávida, a amante, a mulher de quem o marido queria se livrar, o alcóolatra, o gay.”
Botelho foi aconselhado a achar sentido, novos caminhos, respiro ao contar a história dos sobreviventes. O diretor inclusive conversou com especialistas para estar mais apto a falar sobre o tema. “Eu acho importante frisar, por exemplo, que são muitos fatores que levam ao suicídio, nunca é uma coisa só.”
Caroline Fioratti colocou uma psicóloga à disposição do elenco de Meu Casulo de Drywall. Mas optou por mostrar mais explicitamente cenas de automutilação e do suicídio. “Eu fiquei sempre muito na dúvida sobre o que exibir ou não. Mas as pessoas consultadas acharam que não estava exagerado”, disse a cineasta, cujo filme também mostra o impacto devastador dessa morte na família e na comunidade. Ela também pretende fazer, no lançamento, uma série de debates sobre o assunto.
Sem ter visto o filme, Karen Scavacini elogiou a iniciativa de ter uma psicóloga pronta para atender atores e equipe e disse entender as razões de um cineasta querer mostrar certas ações, mas demonstrou certa apreensão com essas sequências. “Porque você pode aumentar a incidência desse método, e para pessoas que se cortam, ver alguém se cortando gera um gatilho quase instantâneo”, disse. “Os adolescentes são o público com que você precisa tomar mais cuidado para mitigar qualquer risco.”
Ainda falta muito
Os Centros de Controle de Doenças dos Estados Unidos apontam que 29% dos jovens do país estavam pouco saudáveis mentalmente em 2021. Segundo pesquisa Datafolha do final de 2022, oito a cada dez brasileiros de 15 a 29 anos tinham tido algum problema de saúde mental recentemente. Uma enquete do Unicef com a Viração, com 7.700 adolescentes brasileiros, apontou que metade deles sentiu necessidade de procurar ajuda para cuidar de sua saúde mental, mas 40% deles não seguiram com a busca.
Por mais que haja um aumento de filmes e séries que tratam de saúde mental, principalmente durante e após a pandemia, os números ainda não refletem isso. Se 29% dos adolescentes americanos têm questões de saúde mental, apenas 6% dos personagens com problemas dessa ordem eram adolescentes nos filmes em 2022, e apenas 2,1% dos personagens dos 100 maiores longas desse ano tinham condições que afetavam sua saúde mental.
Ainda há muito espaço para trazer um retrato mais amplo, empático e representativo – mostrando, por exemplo, como discriminação e preconceitos afetam a saúde mental das minorias.
Acima de tudo, mesmo mostrando a realidade, é importante que filmes e séries tragam conceitos sobre saúde mental e suicídio. “É preciso educar o público, como foi feito anos atrás com o câncer de mama”, disse Karen Scavacini.
Onde buscar ajuda
Se você está passando por sofrimento psíquico ou conhece alguém nessa situação, veja abaixo onde encontrar ajuda:
Centro de Valorização da Vida (CVV)
Se estiver precisando de ajuda imediata, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida (CVV), serviço gratuito de apoio emocional que disponibiliza atendimento 24 horas por dia. O contato pode ser feito por e-mail, pelo chat no site ou pelo telefone 188.
Canal Pode Falar
Iniciativa criada pelo Unicef para oferecer escuta para adolescentes e jovens de 13 a 24 anos. O contato pode ser feito pelo WhatsApp, de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h.
SUS
Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) voltadas para o atendimento de pacientes com transtornos mentais. Há unidades específicas para crianças e adolescentes. Na cidade de São Paulo, são 33 Caps Infantojuventis e é possível buscar os endereços das unidades nesta página.
Mapa da Saúde Mental
O site traz mapas com unidades de saúde e iniciativas gratuitas de atendimento psicológico presencial e online. Disponibiliza ainda materiais de orientação sobre transtornos mentais.
NOTA DA REDAÇÃO: Suicídios são um problema de saúde pública. Antes, o Estadão, assim como boa parte da mídia profissional, evitava publicar reportagens sobre o tema pelo receio de que isso servisse de incentivo. Mas, diante da alta de mortes e tentativas de suicídio nos últimos anos, inclusive de crianças e adolescentes, o Estadão passa a discutir mais o assunto. Segundo especialistas, é preciso colocar a pauta em debate, mas de modo cuidadoso, para auxiliar na prevenção. O trabalho jornalístico sobre suicídios pode oferecer esperança a pessoas em risco, assim como para suas famílias, além de reduzir estigmas e inspirar diálogos abertos e positivos. O Estadão segue as recomendações de manuais e especialistas ao relatar os casos e as explicações para o fenômeno.
Filmes e séries sobre saúde mental para ver no streaming
- Aftersun (2022), de Charlotte Wells
Adulta, Sophie (Celia Rowlson-Hall) relembra as férias de verão que passou com o pai, Calum (Paul Mescal), quando tinha 11 anos de idade, tentando preencher as lacunas daquele homem e daquela viagem entre momentos de alegria e melancolia. Disponível na Netflix e MUBI.
- In Treatment
A série teve três temporadas entre 2008 e 2010 e uma quarta em 2021, uma versão mais moderna e trazendo os efeitos da pandemia, com Uzo Aduba como terapeuta. Disponível na Max.
- Melancolia (2011), de Lars Von Trier
Duas irmãs, interpretadas por Kirsten Dunst e Charlotte Gainsbourg, enfrentam o perigo de um planeta prestes a colidir com a Terra. Mas o tema, na realidade, é a depressão. Disponível na MUBI.
- WandaVision (2021), criada por Jac Schaeffer
Por trás da vida suburbana, perfeita como nas sitcoms, Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen), uma das personagens mais poderosas do Universo Marvel, lida com os desafios à sua saúde mental nesta série. Disponível no Disney+.
- This is Us (2016-2022), criada por Dan Fogelman
A série sobre a família Pearson provoca choro compulsivo ao mostrar os desafios enfrentados pelos membros da família, da compulsão alimentar à depressão, passando pelo abuso de substâncias e episódios de ansiedade e pânico. Disponível no Prime Video e Star+.
- Garra de Ferro (2023), de Sean Durkin
Baseado na inacreditável história real dos irmãos Von Erich, famosos na luta livre nos anos 1980, o filme mostra como a competição leva a momentos de êxtase, mas também de pressão, alimentada pelo pai, pela sociedade e pela cultura local. Há cenas em que métodos são exibidos, mas reforçando o perigo de tê-los à disposição. Disponível para aluguel e compra.