‘Grande Sertão’: Novo filme subverte imaginário de Guimarães Rosa e leva Riobaldo para guerra urbana


Produção de Guel Arraes faz releitura moderna de clássico literário e estreia nesta quinta, 6, nos cinemas com elenco que inclui Caio Blat, Luisa Arraes, Rodrigo Lombardi e Eduardo Sterblitch

Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

“Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia”. Palavras finais de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para muitos o maior romance já escrito no Brasil, rivalizando talvez com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Uma catedral de palavras, tida como inabordável pelo cinema. E eis aí: Guel Arraes aceita o desafio e apresenta ao público sua versão do romance, com o título amputado da palavra “veredas”. Ficou apenas Grande Sertão.

Revelar as palavras finais dessa obra não é nenhum spoiler. Mesmo porque, depois delas, segue, em vez da palavra “fim”, o oito deitado, signo do infinito. O sertão é infinito. E pode ser retomado do começo, quando o personagem central, o ex-jagunço Riobaldo, já velho, conta a sua vida a um interlocutor que nunca aparece, a não ser como uma sombra a incitar o narrador a contar sua história.

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Isso no livro. No cinema, o filme estreia nesta quinta-feira, 6, em todo Brasil e também abre o Cine PE, o festival de cinema de Recife, cidade natal de Guel Arraes, filho do governador Miguel Arraes, deposto e exilado pelo golpe militar de 1964.

Em entrevista após a exibição do longa para a imprensa, Guel disse que sempre tivera a vontade de adaptar Grande Sertão: Veredas, livro de sua vida inteira, o seu favorito. “Mas a ideia era fazer alguma coisa diferente”, diz. Quer dizer, não ser apenas mais uma ilustração audiovisual do romance, mas trazê-lo para outra dimensão, talvez para outro tempo.

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O chão histórico da obra literária de Guimarães Rosa, publicada em 1956, era a República Velha, com o predomínio dos coronéis e das lutas pela posse de terras. Guel, junto com seu parceiro no roteiro, Jorge Furtado, traz a ação para um tempo indefinido, mas muito parecido ao Brasil contemporâneo e urbano, com sua guerra de milícias, polícia e facções criminosas diversas por controle de territórios.

Na tela, a estrutura do romance se altera. De longo monólogo, com o personagem falando sem cessar, em busca de si mesmo, passa-se à ação. Longos discursos reflexivos sobre a natureza do bem e do mal cedem espaço à própria exposição do mal, sob a forma da violência. Ao mal em ato, por assim dizer. Em síntese, o que eram apenas palavras poderosas tornam-se predominantemente imagens - igualmente poderosas. Isso porque o filme renuncia ao realismo e toma forma épica, operística, dramaticamente paradoxal, cheia de som e fúria, porém significando muita coisa.

Caio Blat, em estado de graça, compõe um Riobaldo gigantesco em suas dúvidas, forças e fraquezas. É-lhe dado status de professor que, do ensino, passa à ação. Em especial quando puxado para a luta por Diadorim (Luisa Arraes, filha do diretor), guerreiro ambíguo que arrasta Riobaldo para vingança da morte de Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi) e à caça ao diabólico Hermógenes (Eduardo Sterblitch). Mariana Nunes vive Otacília e Luellen de Castro, Nhorinhá, notáveis personagens femininos da história. O elenco, bastante forte, sustenta o paroxismo e a profundidade de um projeto que se deseja tanto popular quanto fiel ao espírito de uma obra literária magistral.

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Caio Blat é Riobaldo em 'Grande Sertão', de Guel Arraes. Foto: Ricardo Brajterman/Divulgação

Tarefa muito difícil. Se por um lado o relato inclui a recriação de muitas cenas de ação, em especial nas guerras entre bandos de jagunços, por outro esse relato é todo entremeado de reflexões complicadas de traduzir em imagens e ações. A solução foi centrar no enredo e deixar que pensamentos e dúvidas de Riobaldo entrassem com parcimônia, porém sem esquecer o traço metafísico da obra, sem o qual seu sentido se perderia.

O personagem Riobaldo já foi chamado de o “Hamlet brasileiro” e também de “Fausto brasileiro”. Referência ao personagem de Shakespeare por suas crises morais e hesitações incessantes, e, ao Fausto de Goethe, pelo suposto pacto com o demônio. Com a diferença de que o Fausto alemão torna-se pactário pela volúpia do conhecimento, enquanto o Fausto brasileiro é levado ao pacto (mas é, de fato?) em busca da coragem, da habilidade das armas e do fechamento do corpo.

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Se o pano de fundo histórico do romance se faz na guerra dos jagunços entre si, a soldo dos coronéis ou não, no filme é a guerra dos bandos e milícias pela demarcação de territórios de zonas de influência. Duas modalidades, em tempos históricos diferentes, da tragédia social brasileira, repetida geração após geração. Como a dizer que o passado vive no presente. Ou que o passado não passa em sociedades nas quais tudo parece mudar para que nada mude.

Luisa Arraes é Diadorim em 'Grande Sertão', de Guel Arraes. Foto: Helena Barreto/Divulgação

Em termos de cinema, Guel Arraes encena essa repetição do mesmo num ambiente ritmado de rap, com diálogos às vezes rimados, uma estética de paroxismo que, em termos visuais, lembra a de um Mad Max, porém com caráter social mais delineado.

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As questões que mantêm acesa a angústia de Riobaldo referem-se à existência ou não do pacto com o diabo e a atração de toda vida por Diadorim. A primeira questão leva à ética: para travar o bom combate, eliminar o Mal (Hermógenes), vale aliar-se ao próprio Mal? A segunda questão refere-se à ambivalência sexual de Diadorim. Pouco importa o desfecho, mas a angústia de Riobaldo com a atração irresistível que sente por outro homem. O dilema entre ceder ou não ao desejo só se desata no fim, um final magnífico. Não à toa Guimarães Rosa pedia que ninguém revelasse o desfecho da história para não privar os futuros leitores do prazer da surpresa.

Em todo caso, Riobaldo sabe bem de que angústia se trata: “Diadorim é minha neblina”, diz ele, ao meditar, à sua maneira, sobre a angústia do dualismo entre macho e fêmea, tema de discussão atual. Pena que, com o passar do tempo, e com a popularização da obra em meios extraliterários, esse mistério tenha se desfeito. Viver é muito perigoso.

Outras adaptações de Guimarães Rosa

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  • Grande Sertão: Veredas (1964), dos irmãos Santos Pereira, foi definido como “hípico”, em vez de épico, tantas eram as cavalhadas que resumiam a trama de um dos mais complexos romances brasileiros.
  • Nelson Pereira dos Santos reuniu contos em A Terceira Margem do Rio (1994), com resultado desigual.
  • Paulo Thiago dirigiu Sagarana - o Duelo (1973), e o mesmo fez Pedro Bial em Outras Estórias. São obras dignas, mas nas quais a magia de Rosa não parece presente.
  • Entre todas, a versão mais bem-sucedida é A Hora e Vez de Augusto Matraga (1965), tirada também do conto homônimo de Sagarana. O próprio Rosa aprovou a versão de Roberto Santos para o seu texto, que tem grande atuação de Leonardo Vilar e música de Geraldo Vandré. Com o sucesso, Roberto Santos queria adaptar Manuelzão e Miguilim, mas Rosa já tinha morrido e o cineasta enfrentou problemas com os herdeiros. Não fez o filme e morreu frustrado com isso.
  • A versão de Mutum (2007), de Sandra Kogut, é como a retomada de uma história interrompida das adaptações de Rosa para o cinema. A trama, “contada” por um menino com problemas de visão, abarca o universo tão rico quanto rarefeito do grande Rosa. Mundo nuançado de áreas de clareza e pontos cegos.
  • A minissérie Grande Sertão Veredas, da Globo (1985). Com Bruna Lombardi no papel de Diadorim, todo o Brasil ficou sabendo do segredo que Guimarães Rosa queria ocultar, em benefício dos leitores do futuro.

O Sertão e a favela

Sertão e favela formaram espaços cênicos privilegiados, usados pelos cineastas para encenar os crônicos desajustes da sociedade brasileira.

Três obras-primas do Cinema Novo (todas feitas entre 1963 e 1964) - Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, Os Fuzis, de Ruy Guerra, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos - são encenadas no sertão nordestino.

Precursores do cinema moderno brasileiro, Rio 40 Graus (1955) e Rio Zona Norte (1957), ambos de Nelson Pereira dos Santos, têm as favelas cariocas como paisagem principal.

Filmes mais contemporâneos retornam a esses espaços. Um exemplo é Guerra de Canudos (1997), de Sérgio Rezende, refazendo em termos mais romanceados a saga descrita por Euclides da Cunha em Os Sertões.

Uma reatualização da favela (ou comunidade, como se passou a se dizer) como espaço cênico foi o controverso Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, baseado na obra de Paulo Lins. Mostrava a dinâmica interna do negócio das drogas e a ascensão e queda de chefes do tráfico. Se deu polêmica entre os críticos brasileiros, foi grande sucesso e quase unanimidade no exterior.

A sacada de Guel Arraes, e de seu corroteirista Jorge Furtado, foi a síntese de sertão e favela, fazendo deles uma coisa só, guerra generalizada após gerações submetidas a desigualdades e desajustes crônicos. A chave vinha do próprio Guimarães Rosa: “O sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente”, dizia ele.

Para ler ‘Grande Serão: Veredas’

O grande clássico de Guimarães Rosa está disponível nas livrarias pela Companhia das Letras. O livro tem 560 páginas e custa R$ 104,90. Há ainda uma versão em graphic novel, com roteiro de Guazzelli e arte de Rodrigo Rosa.

“Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia”. Palavras finais de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para muitos o maior romance já escrito no Brasil, rivalizando talvez com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Uma catedral de palavras, tida como inabordável pelo cinema. E eis aí: Guel Arraes aceita o desafio e apresenta ao público sua versão do romance, com o título amputado da palavra “veredas”. Ficou apenas Grande Sertão.

Revelar as palavras finais dessa obra não é nenhum spoiler. Mesmo porque, depois delas, segue, em vez da palavra “fim”, o oito deitado, signo do infinito. O sertão é infinito. E pode ser retomado do começo, quando o personagem central, o ex-jagunço Riobaldo, já velho, conta a sua vida a um interlocutor que nunca aparece, a não ser como uma sombra a incitar o narrador a contar sua história.

Isso no livro. No cinema, o filme estreia nesta quinta-feira, 6, em todo Brasil e também abre o Cine PE, o festival de cinema de Recife, cidade natal de Guel Arraes, filho do governador Miguel Arraes, deposto e exilado pelo golpe militar de 1964.

Em entrevista após a exibição do longa para a imprensa, Guel disse que sempre tivera a vontade de adaptar Grande Sertão: Veredas, livro de sua vida inteira, o seu favorito. “Mas a ideia era fazer alguma coisa diferente”, diz. Quer dizer, não ser apenas mais uma ilustração audiovisual do romance, mas trazê-lo para outra dimensão, talvez para outro tempo.

O chão histórico da obra literária de Guimarães Rosa, publicada em 1956, era a República Velha, com o predomínio dos coronéis e das lutas pela posse de terras. Guel, junto com seu parceiro no roteiro, Jorge Furtado, traz a ação para um tempo indefinido, mas muito parecido ao Brasil contemporâneo e urbano, com sua guerra de milícias, polícia e facções criminosas diversas por controle de territórios.

Na tela, a estrutura do romance se altera. De longo monólogo, com o personagem falando sem cessar, em busca de si mesmo, passa-se à ação. Longos discursos reflexivos sobre a natureza do bem e do mal cedem espaço à própria exposição do mal, sob a forma da violência. Ao mal em ato, por assim dizer. Em síntese, o que eram apenas palavras poderosas tornam-se predominantemente imagens - igualmente poderosas. Isso porque o filme renuncia ao realismo e toma forma épica, operística, dramaticamente paradoxal, cheia de som e fúria, porém significando muita coisa.

Caio Blat, em estado de graça, compõe um Riobaldo gigantesco em suas dúvidas, forças e fraquezas. É-lhe dado status de professor que, do ensino, passa à ação. Em especial quando puxado para a luta por Diadorim (Luisa Arraes, filha do diretor), guerreiro ambíguo que arrasta Riobaldo para vingança da morte de Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi) e à caça ao diabólico Hermógenes (Eduardo Sterblitch). Mariana Nunes vive Otacília e Luellen de Castro, Nhorinhá, notáveis personagens femininos da história. O elenco, bastante forte, sustenta o paroxismo e a profundidade de um projeto que se deseja tanto popular quanto fiel ao espírito de uma obra literária magistral.

Caio Blat é Riobaldo em 'Grande Sertão', de Guel Arraes. Foto: Ricardo Brajterman/Divulgação

Tarefa muito difícil. Se por um lado o relato inclui a recriação de muitas cenas de ação, em especial nas guerras entre bandos de jagunços, por outro esse relato é todo entremeado de reflexões complicadas de traduzir em imagens e ações. A solução foi centrar no enredo e deixar que pensamentos e dúvidas de Riobaldo entrassem com parcimônia, porém sem esquecer o traço metafísico da obra, sem o qual seu sentido se perderia.

O personagem Riobaldo já foi chamado de o “Hamlet brasileiro” e também de “Fausto brasileiro”. Referência ao personagem de Shakespeare por suas crises morais e hesitações incessantes, e, ao Fausto de Goethe, pelo suposto pacto com o demônio. Com a diferença de que o Fausto alemão torna-se pactário pela volúpia do conhecimento, enquanto o Fausto brasileiro é levado ao pacto (mas é, de fato?) em busca da coragem, da habilidade das armas e do fechamento do corpo.

Se o pano de fundo histórico do romance se faz na guerra dos jagunços entre si, a soldo dos coronéis ou não, no filme é a guerra dos bandos e milícias pela demarcação de territórios de zonas de influência. Duas modalidades, em tempos históricos diferentes, da tragédia social brasileira, repetida geração após geração. Como a dizer que o passado vive no presente. Ou que o passado não passa em sociedades nas quais tudo parece mudar para que nada mude.

Luisa Arraes é Diadorim em 'Grande Sertão', de Guel Arraes. Foto: Helena Barreto/Divulgação

Em termos de cinema, Guel Arraes encena essa repetição do mesmo num ambiente ritmado de rap, com diálogos às vezes rimados, uma estética de paroxismo que, em termos visuais, lembra a de um Mad Max, porém com caráter social mais delineado.

As questões que mantêm acesa a angústia de Riobaldo referem-se à existência ou não do pacto com o diabo e a atração de toda vida por Diadorim. A primeira questão leva à ética: para travar o bom combate, eliminar o Mal (Hermógenes), vale aliar-se ao próprio Mal? A segunda questão refere-se à ambivalência sexual de Diadorim. Pouco importa o desfecho, mas a angústia de Riobaldo com a atração irresistível que sente por outro homem. O dilema entre ceder ou não ao desejo só se desata no fim, um final magnífico. Não à toa Guimarães Rosa pedia que ninguém revelasse o desfecho da história para não privar os futuros leitores do prazer da surpresa.

Em todo caso, Riobaldo sabe bem de que angústia se trata: “Diadorim é minha neblina”, diz ele, ao meditar, à sua maneira, sobre a angústia do dualismo entre macho e fêmea, tema de discussão atual. Pena que, com o passar do tempo, e com a popularização da obra em meios extraliterários, esse mistério tenha se desfeito. Viver é muito perigoso.

Outras adaptações de Guimarães Rosa

  • Grande Sertão: Veredas (1964), dos irmãos Santos Pereira, foi definido como “hípico”, em vez de épico, tantas eram as cavalhadas que resumiam a trama de um dos mais complexos romances brasileiros.
  • Nelson Pereira dos Santos reuniu contos em A Terceira Margem do Rio (1994), com resultado desigual.
  • Paulo Thiago dirigiu Sagarana - o Duelo (1973), e o mesmo fez Pedro Bial em Outras Estórias. São obras dignas, mas nas quais a magia de Rosa não parece presente.
  • Entre todas, a versão mais bem-sucedida é A Hora e Vez de Augusto Matraga (1965), tirada também do conto homônimo de Sagarana. O próprio Rosa aprovou a versão de Roberto Santos para o seu texto, que tem grande atuação de Leonardo Vilar e música de Geraldo Vandré. Com o sucesso, Roberto Santos queria adaptar Manuelzão e Miguilim, mas Rosa já tinha morrido e o cineasta enfrentou problemas com os herdeiros. Não fez o filme e morreu frustrado com isso.
  • A versão de Mutum (2007), de Sandra Kogut, é como a retomada de uma história interrompida das adaptações de Rosa para o cinema. A trama, “contada” por um menino com problemas de visão, abarca o universo tão rico quanto rarefeito do grande Rosa. Mundo nuançado de áreas de clareza e pontos cegos.
  • A minissérie Grande Sertão Veredas, da Globo (1985). Com Bruna Lombardi no papel de Diadorim, todo o Brasil ficou sabendo do segredo que Guimarães Rosa queria ocultar, em benefício dos leitores do futuro.

O Sertão e a favela

Sertão e favela formaram espaços cênicos privilegiados, usados pelos cineastas para encenar os crônicos desajustes da sociedade brasileira.

Três obras-primas do Cinema Novo (todas feitas entre 1963 e 1964) - Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, Os Fuzis, de Ruy Guerra, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos - são encenadas no sertão nordestino.

Precursores do cinema moderno brasileiro, Rio 40 Graus (1955) e Rio Zona Norte (1957), ambos de Nelson Pereira dos Santos, têm as favelas cariocas como paisagem principal.

Filmes mais contemporâneos retornam a esses espaços. Um exemplo é Guerra de Canudos (1997), de Sérgio Rezende, refazendo em termos mais romanceados a saga descrita por Euclides da Cunha em Os Sertões.

Uma reatualização da favela (ou comunidade, como se passou a se dizer) como espaço cênico foi o controverso Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, baseado na obra de Paulo Lins. Mostrava a dinâmica interna do negócio das drogas e a ascensão e queda de chefes do tráfico. Se deu polêmica entre os críticos brasileiros, foi grande sucesso e quase unanimidade no exterior.

A sacada de Guel Arraes, e de seu corroteirista Jorge Furtado, foi a síntese de sertão e favela, fazendo deles uma coisa só, guerra generalizada após gerações submetidas a desigualdades e desajustes crônicos. A chave vinha do próprio Guimarães Rosa: “O sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente”, dizia ele.

Para ler ‘Grande Serão: Veredas’

O grande clássico de Guimarães Rosa está disponível nas livrarias pela Companhia das Letras. O livro tem 560 páginas e custa R$ 104,90. Há ainda uma versão em graphic novel, com roteiro de Guazzelli e arte de Rodrigo Rosa.

“Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia”. Palavras finais de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para muitos o maior romance já escrito no Brasil, rivalizando talvez com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Uma catedral de palavras, tida como inabordável pelo cinema. E eis aí: Guel Arraes aceita o desafio e apresenta ao público sua versão do romance, com o título amputado da palavra “veredas”. Ficou apenas Grande Sertão.

Revelar as palavras finais dessa obra não é nenhum spoiler. Mesmo porque, depois delas, segue, em vez da palavra “fim”, o oito deitado, signo do infinito. O sertão é infinito. E pode ser retomado do começo, quando o personagem central, o ex-jagunço Riobaldo, já velho, conta a sua vida a um interlocutor que nunca aparece, a não ser como uma sombra a incitar o narrador a contar sua história.

Isso no livro. No cinema, o filme estreia nesta quinta-feira, 6, em todo Brasil e também abre o Cine PE, o festival de cinema de Recife, cidade natal de Guel Arraes, filho do governador Miguel Arraes, deposto e exilado pelo golpe militar de 1964.

Em entrevista após a exibição do longa para a imprensa, Guel disse que sempre tivera a vontade de adaptar Grande Sertão: Veredas, livro de sua vida inteira, o seu favorito. “Mas a ideia era fazer alguma coisa diferente”, diz. Quer dizer, não ser apenas mais uma ilustração audiovisual do romance, mas trazê-lo para outra dimensão, talvez para outro tempo.

O chão histórico da obra literária de Guimarães Rosa, publicada em 1956, era a República Velha, com o predomínio dos coronéis e das lutas pela posse de terras. Guel, junto com seu parceiro no roteiro, Jorge Furtado, traz a ação para um tempo indefinido, mas muito parecido ao Brasil contemporâneo e urbano, com sua guerra de milícias, polícia e facções criminosas diversas por controle de territórios.

Na tela, a estrutura do romance se altera. De longo monólogo, com o personagem falando sem cessar, em busca de si mesmo, passa-se à ação. Longos discursos reflexivos sobre a natureza do bem e do mal cedem espaço à própria exposição do mal, sob a forma da violência. Ao mal em ato, por assim dizer. Em síntese, o que eram apenas palavras poderosas tornam-se predominantemente imagens - igualmente poderosas. Isso porque o filme renuncia ao realismo e toma forma épica, operística, dramaticamente paradoxal, cheia de som e fúria, porém significando muita coisa.

Caio Blat, em estado de graça, compõe um Riobaldo gigantesco em suas dúvidas, forças e fraquezas. É-lhe dado status de professor que, do ensino, passa à ação. Em especial quando puxado para a luta por Diadorim (Luisa Arraes, filha do diretor), guerreiro ambíguo que arrasta Riobaldo para vingança da morte de Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi) e à caça ao diabólico Hermógenes (Eduardo Sterblitch). Mariana Nunes vive Otacília e Luellen de Castro, Nhorinhá, notáveis personagens femininos da história. O elenco, bastante forte, sustenta o paroxismo e a profundidade de um projeto que se deseja tanto popular quanto fiel ao espírito de uma obra literária magistral.

Caio Blat é Riobaldo em 'Grande Sertão', de Guel Arraes. Foto: Ricardo Brajterman/Divulgação

Tarefa muito difícil. Se por um lado o relato inclui a recriação de muitas cenas de ação, em especial nas guerras entre bandos de jagunços, por outro esse relato é todo entremeado de reflexões complicadas de traduzir em imagens e ações. A solução foi centrar no enredo e deixar que pensamentos e dúvidas de Riobaldo entrassem com parcimônia, porém sem esquecer o traço metafísico da obra, sem o qual seu sentido se perderia.

O personagem Riobaldo já foi chamado de o “Hamlet brasileiro” e também de “Fausto brasileiro”. Referência ao personagem de Shakespeare por suas crises morais e hesitações incessantes, e, ao Fausto de Goethe, pelo suposto pacto com o demônio. Com a diferença de que o Fausto alemão torna-se pactário pela volúpia do conhecimento, enquanto o Fausto brasileiro é levado ao pacto (mas é, de fato?) em busca da coragem, da habilidade das armas e do fechamento do corpo.

Se o pano de fundo histórico do romance se faz na guerra dos jagunços entre si, a soldo dos coronéis ou não, no filme é a guerra dos bandos e milícias pela demarcação de territórios de zonas de influência. Duas modalidades, em tempos históricos diferentes, da tragédia social brasileira, repetida geração após geração. Como a dizer que o passado vive no presente. Ou que o passado não passa em sociedades nas quais tudo parece mudar para que nada mude.

Luisa Arraes é Diadorim em 'Grande Sertão', de Guel Arraes. Foto: Helena Barreto/Divulgação

Em termos de cinema, Guel Arraes encena essa repetição do mesmo num ambiente ritmado de rap, com diálogos às vezes rimados, uma estética de paroxismo que, em termos visuais, lembra a de um Mad Max, porém com caráter social mais delineado.

As questões que mantêm acesa a angústia de Riobaldo referem-se à existência ou não do pacto com o diabo e a atração de toda vida por Diadorim. A primeira questão leva à ética: para travar o bom combate, eliminar o Mal (Hermógenes), vale aliar-se ao próprio Mal? A segunda questão refere-se à ambivalência sexual de Diadorim. Pouco importa o desfecho, mas a angústia de Riobaldo com a atração irresistível que sente por outro homem. O dilema entre ceder ou não ao desejo só se desata no fim, um final magnífico. Não à toa Guimarães Rosa pedia que ninguém revelasse o desfecho da história para não privar os futuros leitores do prazer da surpresa.

Em todo caso, Riobaldo sabe bem de que angústia se trata: “Diadorim é minha neblina”, diz ele, ao meditar, à sua maneira, sobre a angústia do dualismo entre macho e fêmea, tema de discussão atual. Pena que, com o passar do tempo, e com a popularização da obra em meios extraliterários, esse mistério tenha se desfeito. Viver é muito perigoso.

Outras adaptações de Guimarães Rosa

  • Grande Sertão: Veredas (1964), dos irmãos Santos Pereira, foi definido como “hípico”, em vez de épico, tantas eram as cavalhadas que resumiam a trama de um dos mais complexos romances brasileiros.
  • Nelson Pereira dos Santos reuniu contos em A Terceira Margem do Rio (1994), com resultado desigual.
  • Paulo Thiago dirigiu Sagarana - o Duelo (1973), e o mesmo fez Pedro Bial em Outras Estórias. São obras dignas, mas nas quais a magia de Rosa não parece presente.
  • Entre todas, a versão mais bem-sucedida é A Hora e Vez de Augusto Matraga (1965), tirada também do conto homônimo de Sagarana. O próprio Rosa aprovou a versão de Roberto Santos para o seu texto, que tem grande atuação de Leonardo Vilar e música de Geraldo Vandré. Com o sucesso, Roberto Santos queria adaptar Manuelzão e Miguilim, mas Rosa já tinha morrido e o cineasta enfrentou problemas com os herdeiros. Não fez o filme e morreu frustrado com isso.
  • A versão de Mutum (2007), de Sandra Kogut, é como a retomada de uma história interrompida das adaptações de Rosa para o cinema. A trama, “contada” por um menino com problemas de visão, abarca o universo tão rico quanto rarefeito do grande Rosa. Mundo nuançado de áreas de clareza e pontos cegos.
  • A minissérie Grande Sertão Veredas, da Globo (1985). Com Bruna Lombardi no papel de Diadorim, todo o Brasil ficou sabendo do segredo que Guimarães Rosa queria ocultar, em benefício dos leitores do futuro.

O Sertão e a favela

Sertão e favela formaram espaços cênicos privilegiados, usados pelos cineastas para encenar os crônicos desajustes da sociedade brasileira.

Três obras-primas do Cinema Novo (todas feitas entre 1963 e 1964) - Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, Os Fuzis, de Ruy Guerra, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos - são encenadas no sertão nordestino.

Precursores do cinema moderno brasileiro, Rio 40 Graus (1955) e Rio Zona Norte (1957), ambos de Nelson Pereira dos Santos, têm as favelas cariocas como paisagem principal.

Filmes mais contemporâneos retornam a esses espaços. Um exemplo é Guerra de Canudos (1997), de Sérgio Rezende, refazendo em termos mais romanceados a saga descrita por Euclides da Cunha em Os Sertões.

Uma reatualização da favela (ou comunidade, como se passou a se dizer) como espaço cênico foi o controverso Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, baseado na obra de Paulo Lins. Mostrava a dinâmica interna do negócio das drogas e a ascensão e queda de chefes do tráfico. Se deu polêmica entre os críticos brasileiros, foi grande sucesso e quase unanimidade no exterior.

A sacada de Guel Arraes, e de seu corroteirista Jorge Furtado, foi a síntese de sertão e favela, fazendo deles uma coisa só, guerra generalizada após gerações submetidas a desigualdades e desajustes crônicos. A chave vinha do próprio Guimarães Rosa: “O sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente”, dizia ele.

Para ler ‘Grande Serão: Veredas’

O grande clássico de Guimarães Rosa está disponível nas livrarias pela Companhia das Letras. O livro tem 560 páginas e custa R$ 104,90. Há ainda uma versão em graphic novel, com roteiro de Guazzelli e arte de Rodrigo Rosa.

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