Houve uma época em que Hollywood de fato fazia propaganda socialista. E o governo aprovava; entenda


Onda de filmes lançados entre 1942 e 1945 por estúdios americanos elogiavam o regime soviético com o objetivo de tranquilizar a população a respeito da aliança entre EUA e URSS durante a Segunda Guerra; conheça histórias

Por Theo Zenou

Era noite de cinema no Kremlin. A data era 23 de maio de 1943. O Exército Vermelho tinha derrotado os alemães na Batalha de Stalingrado apenas três meses antes. Pela primeira vez, parecia que os Aliados poderiam vencer.

E agora, para celebrar a aliança entre a União Soviética e os Estados Unidos, Josef Stalin decidira oferecer um banquete no Kremlin. Apesar do racionamento dos tempos de guerra, não faltaram pratos deliciosos. A vodca corria livre, segundo o historiador Todd Bennett.

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Depois do jantar, Stalin levou os convidados ao seu cinema particular. Joseph E. Davies, ex-embaixador dos Estados Unidos na URSS e conselheiro do presidente Franklin D. Roosevelt, sentou-se ao lado de Stalin. Aí as luzes se apagaram e Missão em Moscou começou.

O líder soviético Joseph Stalin, à esquerda, aparece com o presidente Franklin D. Roosevelt na embaixada russa em Teerã em 1943. Foto: Library of Congress via The Washington Post

O filme era pura propaganda stalinista. Retratava o ditador como um líder benevolente e a União Soviética como uma sociedade fraterna, livre de qualquer repressão. Apresentava como justos os julgamentos-espetáculo de Moscou, durante os quais os rivais de Stalin foram incriminados. E acusava Leon Trótski – o bolchevique judeu assassinado por ordem de Stalin em 1940 – de ter sido um agente nazista.

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Mas Missão em Moscou não fora realizado pelos estúdios que obedeciam ao Kremlin nem examinado pelos censores de Stalin. Vinha de um estúdio de Hollywood, a Warner Bros. Pictures, e fora aprovado pelos censores do governo americano.

Hoje, os conservadores acusam Hollywood de espalhar propaganda esquerdista. Durante a Segunda Guerra Mundial, Hollywood fez exatamente isso. E teve apoio total do governo dos Estados Unidos.

Missão em Moscou fez parte de uma onda de filmes realizados entre 1942 e 1945 que elogiavam o regime soviético. Entre eles se encontravam A Estrela do Norte, da RKO, sobre ucranianos repelindo invasores nazistas; Três Heroínas Russas, da United Artists, sobre o romance de uma enfermeira russa com um soldado americano; e Contra-Ataque, da Columbia, sobre soldados do Exército Vermelho enfrentando a Wehrmacht.

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Pôster original de 'Missão em Moscou', filme de 1943. Foto: Warner Bros. Pictures

Missão em Moscou foi dirigido por Michael Curtiz, que já tinha dirigido Casablanca, mas era ideia de Davies. Baseado em suas memórias, o filme dramatizava sua passagem pela embaixada americana em Moscou antes da guerra. Walter Huston interpretou Davies. No prólogo do filme, o Davies da vida real garantia aos espectadores que estavam prestes a receber uma cartilha “honesta” sobre a União Soviética.

Stalin aprovou. Ele foi “muito generoso” em seus “elogios ao filme”, escreveu Davies em uma carta no dia seguinte. Logo depois, a Missão em Moscou estreou em toda a URSS.

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O filme foi lançado nos Estados Unidos com grande alarde em abril de 1943, segundo os historiadores Ronald e Allis Radosh. O orçamento de marketing foi de US$ 500 mil – perto de US$ 9 milhões em valor atual. Houve uma estreia luminosa em Washington, com a presença de políticos e repórteres.

O New York Times o definiu como “o filme mais franco sobre um tema político já feito por um estúdio americano”. Missão em Moscou certamente não escondia sua agenda: fazer com que os americanos apreciassem a União Soviética e angariar apoio para a aliança soviético-americana.

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Essa diretiva vinha diretamente da Casa Branca. Os cineastas tiveram “a bênção governamental”, revelou Davies anos depois. E ele consultou FDR várias vezes durante a produção. Segundo o produtor Robert Buckner, o presidente disse que Missão em Moscou deveria “mostrar às mães e aos pais americanos que, se seus filhos fossem mortos em combates ao lado dos russos pela nossa causa comum, então seria por uma boa causa, pois os russos são aliados dignos”.

Missão em Moscou e outros filmes pró-soviéticos da época foram feitos sob a égide do Escritório de Informação de Guerra, lançado por Roosevelt em 1942 para “promover, nos Estados Unidos e no exterior, a compreensão do status e o progresso do esforço de guerra e das políticas, atividades e objetivos de guerra do governo dos Estados Unidos”. Em outras palavras, supervisionava a propaganda americana durante a guerra.

Canção da Rússia, da MGM, um drama romântico lançado em 1944, foi feito em cooperação com o governo soviético. O diretor consultou o embaixador soviético antes de filmar, e o filme contava com imagens de noticiários da URSS.

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Pôster americano de 'Canção da Rússia', lançando em 1944. Foto: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM)

O longa conta a história de um maestro americano, interpretado por Robert Taylor, que viaja pela URSS. Sutileza não é o forte do filme. Em certa cena, ele janta em um restaurante movimentado de Moscou e exclama: “Que incrível! Todo mundo parece estar se divertindo muito”. Ele então se vira para sua companhia, uma bela pianista russa, e diz a ela: “Se eu não soubesse que a conheci em Moscou, você poderia muito bem ser uma moça americana” (A atriz, Susan Peters, nasceu em Spokane, Washington).

No meio de Canção da Rússia, os nazistas invadem a União Soviética e Stalin faz um discurso empolgante à nação. “Nossa guerra pela liberdade do nosso país irá se fundir com as lutas dos povos da América pela sua independência, pelas liberdades democráticas e contra a escravização pelos exércitos fascistas de Hitler”, proclama ele. (O verdadeiro Stalin nunca foi muito fã das liberdades democráticas americanas).

Os filmes pró-soviéticos desencadearam uma guerra cultural no front interno – sobretudo Missão em Moscou. Devido aos laços estreitos de Davies com FDR, o filme se tornou um para-raios no debate político.

O New York Times elogiou sua “ousadia” e disse que “deveria ser uma influência valiosa para um pensamento mais claro e profundo”. Vários ramos da Legião Americana, uma organização de veteranos, apoiaram o filme publicamente.

Mas as críticas foram severas. O filósofo John Dewey denunciou Missão em Moscou como “o primeiro exemplo de propaganda totalitária para o consumo de massa no nosso país”. O romancista James Agee o caracterizou como “uma mistura de stalinismo com New Deal e Hollywood (...) um retrato notável de como os produtores do filme imaginam que o público americano deveria pensar que a União Soviética é – uma grande gororoba enlatada de dois milhões de dólares”.

Pôster do filme 'Três Heroínas Russas', de 1943. Foto: United Artists

Os republicanos se enfureceram. O Comitê Nacional Republicano rejeitou o filme como “propaganda do New Deal”. O deputado Marion T. Bennett (Missouri) disse que Hollywood “perdeu completamente a cabeça e exagerou em sua tentativa de fazer o comunismo parecer bom”, insistindo que a aliança soviético-americana deveria ser apenas “temporária”.

Mas Roosevelt esperava que a aliança durasse para além da guerra contra os nazistas. Queria uma parceria com os soviéticos, não uma Guerra Fria.

“Penso que estamos todos de acordo quanto à necessidade de ter a URSS como um membro plenamente aceito e igualitário de qualquer associação das grandes potências formada com o propósito de prevenir a guerra internacional”, FDR escreveu ao primeiro-ministro britânico Winston Churchill em setembro de 1944. “Seria possível realizá-lo ajustando nossas diferenças por meio de um compromisso entre todas as partes envolvidas”, acrescentando que “isso deveria ajudar as coisas por alguns anos até que a criança aprenda a brincar”.

O assessor mais próximo de Roosevelt, Harry Hopkins, disse depois da Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945: “Os russos provaram que podiam ser razoáveis e clarividentes, e nem o presidente nem qualquer um de nós tinha a menor dúvida de que poderíamos conviver pacificamente com eles no futuro”.

Filmes como Canção da Rússia e Missão em Moscou serviram à política externa de FDR. Eles deixaram a aliança soviético-americana mais palatável para os americanos, muitos dos quais detestavam o comunismo, e abriram caminho para a continuação da aliança depois da guerra.

Os censores americanos foram explícitos a esse respeito. Missão a Moscou, disse o Escritório de Informação de Guerra em um relatório, “encorajaria a fé na viabilidade da cooperação pós-guerra”. Em outro relatório, o órgão saudou o filme como “uma magnífica contribuição para o programa cinematográfico do governo”.

A morte de Roosevelt, em abril de 1945, foi um golpe para uma aliança de longo prazo entre os Estados Unidos e a União Soviética e “enfraqueceu, talvez fatalmente, as perspectivas de evitar ou pelo menos mitigar a Guerra Fria”, escreveu Frank Costigliola no livro Roosevelt’s Lost Alliances [”As alianças perdidas de Roosevelt”, em tradução livre].

Harry S. Truman, sucessor de Roosevelt, não acreditava que Stalin fosse confiável. Confrontado com a expansão soviética no Leste Europeu, ele proclamou a Doutrina Truman. Os Estados Unidos, prometeu ele, “apoiariam os povos livres que resistem às tentativas de subjugação por minorias armadas ou por pressões externas”.

A Guerra Fria estava a caminho. Os filmes pró-soviéticos de Hollywood foram relegados à lata de lixo da história.

Mas eles não ficaram lá por muito tempo. Em 1947, o Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara investigou Hollywood, com o objetivo de erradicar a “infiltração comunista”. Os membros do comitê apresentaram Canção da Rússia e Missão em Moscou como prova de que Hollywood estava tomada por agentes comunistas e simpatizantes soviéticos.

O comitê convocou Ayn Rand – romancista anticomunista que fugira da URSS na década de 1920 – para testemunhar. Ela explicou como Canção da Rússia maquiava o regime de Stalin. “Não creio que fosse necessário enganar o povo americano sobre a natureza da Rússia”, disse ela.

O comitê também perguntou a Jack Warner, presidente da Warner Bros., por que ele havia produzido Missão em Moscou.

“O filme foi feito quando nosso país lutava por sua sobrevivência, tendo a Rússia como um dos nossos aliados”, disse Warner.

Então, com um ar de desafio, o magnata continuou: “Se fazer Missão em Moscou em 1942 era uma atividade subversiva, então os navios American Liberty, que transportaram alimentos e armas para os aliados russos, e os navios americanos que fizeram sua escolta também se envolveram em atividades subversivas”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Era noite de cinema no Kremlin. A data era 23 de maio de 1943. O Exército Vermelho tinha derrotado os alemães na Batalha de Stalingrado apenas três meses antes. Pela primeira vez, parecia que os Aliados poderiam vencer.

E agora, para celebrar a aliança entre a União Soviética e os Estados Unidos, Josef Stalin decidira oferecer um banquete no Kremlin. Apesar do racionamento dos tempos de guerra, não faltaram pratos deliciosos. A vodca corria livre, segundo o historiador Todd Bennett.

Depois do jantar, Stalin levou os convidados ao seu cinema particular. Joseph E. Davies, ex-embaixador dos Estados Unidos na URSS e conselheiro do presidente Franklin D. Roosevelt, sentou-se ao lado de Stalin. Aí as luzes se apagaram e Missão em Moscou começou.

O líder soviético Joseph Stalin, à esquerda, aparece com o presidente Franklin D. Roosevelt na embaixada russa em Teerã em 1943. Foto: Library of Congress via The Washington Post

O filme era pura propaganda stalinista. Retratava o ditador como um líder benevolente e a União Soviética como uma sociedade fraterna, livre de qualquer repressão. Apresentava como justos os julgamentos-espetáculo de Moscou, durante os quais os rivais de Stalin foram incriminados. E acusava Leon Trótski – o bolchevique judeu assassinado por ordem de Stalin em 1940 – de ter sido um agente nazista.

Mas Missão em Moscou não fora realizado pelos estúdios que obedeciam ao Kremlin nem examinado pelos censores de Stalin. Vinha de um estúdio de Hollywood, a Warner Bros. Pictures, e fora aprovado pelos censores do governo americano.

Hoje, os conservadores acusam Hollywood de espalhar propaganda esquerdista. Durante a Segunda Guerra Mundial, Hollywood fez exatamente isso. E teve apoio total do governo dos Estados Unidos.

Missão em Moscou fez parte de uma onda de filmes realizados entre 1942 e 1945 que elogiavam o regime soviético. Entre eles se encontravam A Estrela do Norte, da RKO, sobre ucranianos repelindo invasores nazistas; Três Heroínas Russas, da United Artists, sobre o romance de uma enfermeira russa com um soldado americano; e Contra-Ataque, da Columbia, sobre soldados do Exército Vermelho enfrentando a Wehrmacht.

Pôster original de 'Missão em Moscou', filme de 1943. Foto: Warner Bros. Pictures

Missão em Moscou foi dirigido por Michael Curtiz, que já tinha dirigido Casablanca, mas era ideia de Davies. Baseado em suas memórias, o filme dramatizava sua passagem pela embaixada americana em Moscou antes da guerra. Walter Huston interpretou Davies. No prólogo do filme, o Davies da vida real garantia aos espectadores que estavam prestes a receber uma cartilha “honesta” sobre a União Soviética.

Stalin aprovou. Ele foi “muito generoso” em seus “elogios ao filme”, escreveu Davies em uma carta no dia seguinte. Logo depois, a Missão em Moscou estreou em toda a URSS.

O filme foi lançado nos Estados Unidos com grande alarde em abril de 1943, segundo os historiadores Ronald e Allis Radosh. O orçamento de marketing foi de US$ 500 mil – perto de US$ 9 milhões em valor atual. Houve uma estreia luminosa em Washington, com a presença de políticos e repórteres.

O New York Times o definiu como “o filme mais franco sobre um tema político já feito por um estúdio americano”. Missão em Moscou certamente não escondia sua agenda: fazer com que os americanos apreciassem a União Soviética e angariar apoio para a aliança soviético-americana.

Essa diretiva vinha diretamente da Casa Branca. Os cineastas tiveram “a bênção governamental”, revelou Davies anos depois. E ele consultou FDR várias vezes durante a produção. Segundo o produtor Robert Buckner, o presidente disse que Missão em Moscou deveria “mostrar às mães e aos pais americanos que, se seus filhos fossem mortos em combates ao lado dos russos pela nossa causa comum, então seria por uma boa causa, pois os russos são aliados dignos”.

Missão em Moscou e outros filmes pró-soviéticos da época foram feitos sob a égide do Escritório de Informação de Guerra, lançado por Roosevelt em 1942 para “promover, nos Estados Unidos e no exterior, a compreensão do status e o progresso do esforço de guerra e das políticas, atividades e objetivos de guerra do governo dos Estados Unidos”. Em outras palavras, supervisionava a propaganda americana durante a guerra.

Canção da Rússia, da MGM, um drama romântico lançado em 1944, foi feito em cooperação com o governo soviético. O diretor consultou o embaixador soviético antes de filmar, e o filme contava com imagens de noticiários da URSS.

Pôster americano de 'Canção da Rússia', lançando em 1944. Foto: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM)

O longa conta a história de um maestro americano, interpretado por Robert Taylor, que viaja pela URSS. Sutileza não é o forte do filme. Em certa cena, ele janta em um restaurante movimentado de Moscou e exclama: “Que incrível! Todo mundo parece estar se divertindo muito”. Ele então se vira para sua companhia, uma bela pianista russa, e diz a ela: “Se eu não soubesse que a conheci em Moscou, você poderia muito bem ser uma moça americana” (A atriz, Susan Peters, nasceu em Spokane, Washington).

No meio de Canção da Rússia, os nazistas invadem a União Soviética e Stalin faz um discurso empolgante à nação. “Nossa guerra pela liberdade do nosso país irá se fundir com as lutas dos povos da América pela sua independência, pelas liberdades democráticas e contra a escravização pelos exércitos fascistas de Hitler”, proclama ele. (O verdadeiro Stalin nunca foi muito fã das liberdades democráticas americanas).

Os filmes pró-soviéticos desencadearam uma guerra cultural no front interno – sobretudo Missão em Moscou. Devido aos laços estreitos de Davies com FDR, o filme se tornou um para-raios no debate político.

O New York Times elogiou sua “ousadia” e disse que “deveria ser uma influência valiosa para um pensamento mais claro e profundo”. Vários ramos da Legião Americana, uma organização de veteranos, apoiaram o filme publicamente.

Mas as críticas foram severas. O filósofo John Dewey denunciou Missão em Moscou como “o primeiro exemplo de propaganda totalitária para o consumo de massa no nosso país”. O romancista James Agee o caracterizou como “uma mistura de stalinismo com New Deal e Hollywood (...) um retrato notável de como os produtores do filme imaginam que o público americano deveria pensar que a União Soviética é – uma grande gororoba enlatada de dois milhões de dólares”.

Pôster do filme 'Três Heroínas Russas', de 1943. Foto: United Artists

Os republicanos se enfureceram. O Comitê Nacional Republicano rejeitou o filme como “propaganda do New Deal”. O deputado Marion T. Bennett (Missouri) disse que Hollywood “perdeu completamente a cabeça e exagerou em sua tentativa de fazer o comunismo parecer bom”, insistindo que a aliança soviético-americana deveria ser apenas “temporária”.

Mas Roosevelt esperava que a aliança durasse para além da guerra contra os nazistas. Queria uma parceria com os soviéticos, não uma Guerra Fria.

“Penso que estamos todos de acordo quanto à necessidade de ter a URSS como um membro plenamente aceito e igualitário de qualquer associação das grandes potências formada com o propósito de prevenir a guerra internacional”, FDR escreveu ao primeiro-ministro britânico Winston Churchill em setembro de 1944. “Seria possível realizá-lo ajustando nossas diferenças por meio de um compromisso entre todas as partes envolvidas”, acrescentando que “isso deveria ajudar as coisas por alguns anos até que a criança aprenda a brincar”.

O assessor mais próximo de Roosevelt, Harry Hopkins, disse depois da Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945: “Os russos provaram que podiam ser razoáveis e clarividentes, e nem o presidente nem qualquer um de nós tinha a menor dúvida de que poderíamos conviver pacificamente com eles no futuro”.

Filmes como Canção da Rússia e Missão em Moscou serviram à política externa de FDR. Eles deixaram a aliança soviético-americana mais palatável para os americanos, muitos dos quais detestavam o comunismo, e abriram caminho para a continuação da aliança depois da guerra.

Os censores americanos foram explícitos a esse respeito. Missão a Moscou, disse o Escritório de Informação de Guerra em um relatório, “encorajaria a fé na viabilidade da cooperação pós-guerra”. Em outro relatório, o órgão saudou o filme como “uma magnífica contribuição para o programa cinematográfico do governo”.

A morte de Roosevelt, em abril de 1945, foi um golpe para uma aliança de longo prazo entre os Estados Unidos e a União Soviética e “enfraqueceu, talvez fatalmente, as perspectivas de evitar ou pelo menos mitigar a Guerra Fria”, escreveu Frank Costigliola no livro Roosevelt’s Lost Alliances [”As alianças perdidas de Roosevelt”, em tradução livre].

Harry S. Truman, sucessor de Roosevelt, não acreditava que Stalin fosse confiável. Confrontado com a expansão soviética no Leste Europeu, ele proclamou a Doutrina Truman. Os Estados Unidos, prometeu ele, “apoiariam os povos livres que resistem às tentativas de subjugação por minorias armadas ou por pressões externas”.

A Guerra Fria estava a caminho. Os filmes pró-soviéticos de Hollywood foram relegados à lata de lixo da história.

Mas eles não ficaram lá por muito tempo. Em 1947, o Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara investigou Hollywood, com o objetivo de erradicar a “infiltração comunista”. Os membros do comitê apresentaram Canção da Rússia e Missão em Moscou como prova de que Hollywood estava tomada por agentes comunistas e simpatizantes soviéticos.

O comitê convocou Ayn Rand – romancista anticomunista que fugira da URSS na década de 1920 – para testemunhar. Ela explicou como Canção da Rússia maquiava o regime de Stalin. “Não creio que fosse necessário enganar o povo americano sobre a natureza da Rússia”, disse ela.

O comitê também perguntou a Jack Warner, presidente da Warner Bros., por que ele havia produzido Missão em Moscou.

“O filme foi feito quando nosso país lutava por sua sobrevivência, tendo a Rússia como um dos nossos aliados”, disse Warner.

Então, com um ar de desafio, o magnata continuou: “Se fazer Missão em Moscou em 1942 era uma atividade subversiva, então os navios American Liberty, que transportaram alimentos e armas para os aliados russos, e os navios americanos que fizeram sua escolta também se envolveram em atividades subversivas”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Era noite de cinema no Kremlin. A data era 23 de maio de 1943. O Exército Vermelho tinha derrotado os alemães na Batalha de Stalingrado apenas três meses antes. Pela primeira vez, parecia que os Aliados poderiam vencer.

E agora, para celebrar a aliança entre a União Soviética e os Estados Unidos, Josef Stalin decidira oferecer um banquete no Kremlin. Apesar do racionamento dos tempos de guerra, não faltaram pratos deliciosos. A vodca corria livre, segundo o historiador Todd Bennett.

Depois do jantar, Stalin levou os convidados ao seu cinema particular. Joseph E. Davies, ex-embaixador dos Estados Unidos na URSS e conselheiro do presidente Franklin D. Roosevelt, sentou-se ao lado de Stalin. Aí as luzes se apagaram e Missão em Moscou começou.

O líder soviético Joseph Stalin, à esquerda, aparece com o presidente Franklin D. Roosevelt na embaixada russa em Teerã em 1943. Foto: Library of Congress via The Washington Post

O filme era pura propaganda stalinista. Retratava o ditador como um líder benevolente e a União Soviética como uma sociedade fraterna, livre de qualquer repressão. Apresentava como justos os julgamentos-espetáculo de Moscou, durante os quais os rivais de Stalin foram incriminados. E acusava Leon Trótski – o bolchevique judeu assassinado por ordem de Stalin em 1940 – de ter sido um agente nazista.

Mas Missão em Moscou não fora realizado pelos estúdios que obedeciam ao Kremlin nem examinado pelos censores de Stalin. Vinha de um estúdio de Hollywood, a Warner Bros. Pictures, e fora aprovado pelos censores do governo americano.

Hoje, os conservadores acusam Hollywood de espalhar propaganda esquerdista. Durante a Segunda Guerra Mundial, Hollywood fez exatamente isso. E teve apoio total do governo dos Estados Unidos.

Missão em Moscou fez parte de uma onda de filmes realizados entre 1942 e 1945 que elogiavam o regime soviético. Entre eles se encontravam A Estrela do Norte, da RKO, sobre ucranianos repelindo invasores nazistas; Três Heroínas Russas, da United Artists, sobre o romance de uma enfermeira russa com um soldado americano; e Contra-Ataque, da Columbia, sobre soldados do Exército Vermelho enfrentando a Wehrmacht.

Pôster original de 'Missão em Moscou', filme de 1943. Foto: Warner Bros. Pictures

Missão em Moscou foi dirigido por Michael Curtiz, que já tinha dirigido Casablanca, mas era ideia de Davies. Baseado em suas memórias, o filme dramatizava sua passagem pela embaixada americana em Moscou antes da guerra. Walter Huston interpretou Davies. No prólogo do filme, o Davies da vida real garantia aos espectadores que estavam prestes a receber uma cartilha “honesta” sobre a União Soviética.

Stalin aprovou. Ele foi “muito generoso” em seus “elogios ao filme”, escreveu Davies em uma carta no dia seguinte. Logo depois, a Missão em Moscou estreou em toda a URSS.

O filme foi lançado nos Estados Unidos com grande alarde em abril de 1943, segundo os historiadores Ronald e Allis Radosh. O orçamento de marketing foi de US$ 500 mil – perto de US$ 9 milhões em valor atual. Houve uma estreia luminosa em Washington, com a presença de políticos e repórteres.

O New York Times o definiu como “o filme mais franco sobre um tema político já feito por um estúdio americano”. Missão em Moscou certamente não escondia sua agenda: fazer com que os americanos apreciassem a União Soviética e angariar apoio para a aliança soviético-americana.

Essa diretiva vinha diretamente da Casa Branca. Os cineastas tiveram “a bênção governamental”, revelou Davies anos depois. E ele consultou FDR várias vezes durante a produção. Segundo o produtor Robert Buckner, o presidente disse que Missão em Moscou deveria “mostrar às mães e aos pais americanos que, se seus filhos fossem mortos em combates ao lado dos russos pela nossa causa comum, então seria por uma boa causa, pois os russos são aliados dignos”.

Missão em Moscou e outros filmes pró-soviéticos da época foram feitos sob a égide do Escritório de Informação de Guerra, lançado por Roosevelt em 1942 para “promover, nos Estados Unidos e no exterior, a compreensão do status e o progresso do esforço de guerra e das políticas, atividades e objetivos de guerra do governo dos Estados Unidos”. Em outras palavras, supervisionava a propaganda americana durante a guerra.

Canção da Rússia, da MGM, um drama romântico lançado em 1944, foi feito em cooperação com o governo soviético. O diretor consultou o embaixador soviético antes de filmar, e o filme contava com imagens de noticiários da URSS.

Pôster americano de 'Canção da Rússia', lançando em 1944. Foto: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM)

O longa conta a história de um maestro americano, interpretado por Robert Taylor, que viaja pela URSS. Sutileza não é o forte do filme. Em certa cena, ele janta em um restaurante movimentado de Moscou e exclama: “Que incrível! Todo mundo parece estar se divertindo muito”. Ele então se vira para sua companhia, uma bela pianista russa, e diz a ela: “Se eu não soubesse que a conheci em Moscou, você poderia muito bem ser uma moça americana” (A atriz, Susan Peters, nasceu em Spokane, Washington).

No meio de Canção da Rússia, os nazistas invadem a União Soviética e Stalin faz um discurso empolgante à nação. “Nossa guerra pela liberdade do nosso país irá se fundir com as lutas dos povos da América pela sua independência, pelas liberdades democráticas e contra a escravização pelos exércitos fascistas de Hitler”, proclama ele. (O verdadeiro Stalin nunca foi muito fã das liberdades democráticas americanas).

Os filmes pró-soviéticos desencadearam uma guerra cultural no front interno – sobretudo Missão em Moscou. Devido aos laços estreitos de Davies com FDR, o filme se tornou um para-raios no debate político.

O New York Times elogiou sua “ousadia” e disse que “deveria ser uma influência valiosa para um pensamento mais claro e profundo”. Vários ramos da Legião Americana, uma organização de veteranos, apoiaram o filme publicamente.

Mas as críticas foram severas. O filósofo John Dewey denunciou Missão em Moscou como “o primeiro exemplo de propaganda totalitária para o consumo de massa no nosso país”. O romancista James Agee o caracterizou como “uma mistura de stalinismo com New Deal e Hollywood (...) um retrato notável de como os produtores do filme imaginam que o público americano deveria pensar que a União Soviética é – uma grande gororoba enlatada de dois milhões de dólares”.

Pôster do filme 'Três Heroínas Russas', de 1943. Foto: United Artists

Os republicanos se enfureceram. O Comitê Nacional Republicano rejeitou o filme como “propaganda do New Deal”. O deputado Marion T. Bennett (Missouri) disse que Hollywood “perdeu completamente a cabeça e exagerou em sua tentativa de fazer o comunismo parecer bom”, insistindo que a aliança soviético-americana deveria ser apenas “temporária”.

Mas Roosevelt esperava que a aliança durasse para além da guerra contra os nazistas. Queria uma parceria com os soviéticos, não uma Guerra Fria.

“Penso que estamos todos de acordo quanto à necessidade de ter a URSS como um membro plenamente aceito e igualitário de qualquer associação das grandes potências formada com o propósito de prevenir a guerra internacional”, FDR escreveu ao primeiro-ministro britânico Winston Churchill em setembro de 1944. “Seria possível realizá-lo ajustando nossas diferenças por meio de um compromisso entre todas as partes envolvidas”, acrescentando que “isso deveria ajudar as coisas por alguns anos até que a criança aprenda a brincar”.

O assessor mais próximo de Roosevelt, Harry Hopkins, disse depois da Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945: “Os russos provaram que podiam ser razoáveis e clarividentes, e nem o presidente nem qualquer um de nós tinha a menor dúvida de que poderíamos conviver pacificamente com eles no futuro”.

Filmes como Canção da Rússia e Missão em Moscou serviram à política externa de FDR. Eles deixaram a aliança soviético-americana mais palatável para os americanos, muitos dos quais detestavam o comunismo, e abriram caminho para a continuação da aliança depois da guerra.

Os censores americanos foram explícitos a esse respeito. Missão a Moscou, disse o Escritório de Informação de Guerra em um relatório, “encorajaria a fé na viabilidade da cooperação pós-guerra”. Em outro relatório, o órgão saudou o filme como “uma magnífica contribuição para o programa cinematográfico do governo”.

A morte de Roosevelt, em abril de 1945, foi um golpe para uma aliança de longo prazo entre os Estados Unidos e a União Soviética e “enfraqueceu, talvez fatalmente, as perspectivas de evitar ou pelo menos mitigar a Guerra Fria”, escreveu Frank Costigliola no livro Roosevelt’s Lost Alliances [”As alianças perdidas de Roosevelt”, em tradução livre].

Harry S. Truman, sucessor de Roosevelt, não acreditava que Stalin fosse confiável. Confrontado com a expansão soviética no Leste Europeu, ele proclamou a Doutrina Truman. Os Estados Unidos, prometeu ele, “apoiariam os povos livres que resistem às tentativas de subjugação por minorias armadas ou por pressões externas”.

A Guerra Fria estava a caminho. Os filmes pró-soviéticos de Hollywood foram relegados à lata de lixo da história.

Mas eles não ficaram lá por muito tempo. Em 1947, o Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara investigou Hollywood, com o objetivo de erradicar a “infiltração comunista”. Os membros do comitê apresentaram Canção da Rússia e Missão em Moscou como prova de que Hollywood estava tomada por agentes comunistas e simpatizantes soviéticos.

O comitê convocou Ayn Rand – romancista anticomunista que fugira da URSS na década de 1920 – para testemunhar. Ela explicou como Canção da Rússia maquiava o regime de Stalin. “Não creio que fosse necessário enganar o povo americano sobre a natureza da Rússia”, disse ela.

O comitê também perguntou a Jack Warner, presidente da Warner Bros., por que ele havia produzido Missão em Moscou.

“O filme foi feito quando nosso país lutava por sua sobrevivência, tendo a Rússia como um dos nossos aliados”, disse Warner.

Então, com um ar de desafio, o magnata continuou: “Se fazer Missão em Moscou em 1942 era uma atividade subversiva, então os navios American Liberty, que transportaram alimentos e armas para os aliados russos, e os navios americanos que fizeram sua escolta também se envolveram em atividades subversivas”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Era noite de cinema no Kremlin. A data era 23 de maio de 1943. O Exército Vermelho tinha derrotado os alemães na Batalha de Stalingrado apenas três meses antes. Pela primeira vez, parecia que os Aliados poderiam vencer.

E agora, para celebrar a aliança entre a União Soviética e os Estados Unidos, Josef Stalin decidira oferecer um banquete no Kremlin. Apesar do racionamento dos tempos de guerra, não faltaram pratos deliciosos. A vodca corria livre, segundo o historiador Todd Bennett.

Depois do jantar, Stalin levou os convidados ao seu cinema particular. Joseph E. Davies, ex-embaixador dos Estados Unidos na URSS e conselheiro do presidente Franklin D. Roosevelt, sentou-se ao lado de Stalin. Aí as luzes se apagaram e Missão em Moscou começou.

O líder soviético Joseph Stalin, à esquerda, aparece com o presidente Franklin D. Roosevelt na embaixada russa em Teerã em 1943. Foto: Library of Congress via The Washington Post

O filme era pura propaganda stalinista. Retratava o ditador como um líder benevolente e a União Soviética como uma sociedade fraterna, livre de qualquer repressão. Apresentava como justos os julgamentos-espetáculo de Moscou, durante os quais os rivais de Stalin foram incriminados. E acusava Leon Trótski – o bolchevique judeu assassinado por ordem de Stalin em 1940 – de ter sido um agente nazista.

Mas Missão em Moscou não fora realizado pelos estúdios que obedeciam ao Kremlin nem examinado pelos censores de Stalin. Vinha de um estúdio de Hollywood, a Warner Bros. Pictures, e fora aprovado pelos censores do governo americano.

Hoje, os conservadores acusam Hollywood de espalhar propaganda esquerdista. Durante a Segunda Guerra Mundial, Hollywood fez exatamente isso. E teve apoio total do governo dos Estados Unidos.

Missão em Moscou fez parte de uma onda de filmes realizados entre 1942 e 1945 que elogiavam o regime soviético. Entre eles se encontravam A Estrela do Norte, da RKO, sobre ucranianos repelindo invasores nazistas; Três Heroínas Russas, da United Artists, sobre o romance de uma enfermeira russa com um soldado americano; e Contra-Ataque, da Columbia, sobre soldados do Exército Vermelho enfrentando a Wehrmacht.

Pôster original de 'Missão em Moscou', filme de 1943. Foto: Warner Bros. Pictures

Missão em Moscou foi dirigido por Michael Curtiz, que já tinha dirigido Casablanca, mas era ideia de Davies. Baseado em suas memórias, o filme dramatizava sua passagem pela embaixada americana em Moscou antes da guerra. Walter Huston interpretou Davies. No prólogo do filme, o Davies da vida real garantia aos espectadores que estavam prestes a receber uma cartilha “honesta” sobre a União Soviética.

Stalin aprovou. Ele foi “muito generoso” em seus “elogios ao filme”, escreveu Davies em uma carta no dia seguinte. Logo depois, a Missão em Moscou estreou em toda a URSS.

O filme foi lançado nos Estados Unidos com grande alarde em abril de 1943, segundo os historiadores Ronald e Allis Radosh. O orçamento de marketing foi de US$ 500 mil – perto de US$ 9 milhões em valor atual. Houve uma estreia luminosa em Washington, com a presença de políticos e repórteres.

O New York Times o definiu como “o filme mais franco sobre um tema político já feito por um estúdio americano”. Missão em Moscou certamente não escondia sua agenda: fazer com que os americanos apreciassem a União Soviética e angariar apoio para a aliança soviético-americana.

Essa diretiva vinha diretamente da Casa Branca. Os cineastas tiveram “a bênção governamental”, revelou Davies anos depois. E ele consultou FDR várias vezes durante a produção. Segundo o produtor Robert Buckner, o presidente disse que Missão em Moscou deveria “mostrar às mães e aos pais americanos que, se seus filhos fossem mortos em combates ao lado dos russos pela nossa causa comum, então seria por uma boa causa, pois os russos são aliados dignos”.

Missão em Moscou e outros filmes pró-soviéticos da época foram feitos sob a égide do Escritório de Informação de Guerra, lançado por Roosevelt em 1942 para “promover, nos Estados Unidos e no exterior, a compreensão do status e o progresso do esforço de guerra e das políticas, atividades e objetivos de guerra do governo dos Estados Unidos”. Em outras palavras, supervisionava a propaganda americana durante a guerra.

Canção da Rússia, da MGM, um drama romântico lançado em 1944, foi feito em cooperação com o governo soviético. O diretor consultou o embaixador soviético antes de filmar, e o filme contava com imagens de noticiários da URSS.

Pôster americano de 'Canção da Rússia', lançando em 1944. Foto: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM)

O longa conta a história de um maestro americano, interpretado por Robert Taylor, que viaja pela URSS. Sutileza não é o forte do filme. Em certa cena, ele janta em um restaurante movimentado de Moscou e exclama: “Que incrível! Todo mundo parece estar se divertindo muito”. Ele então se vira para sua companhia, uma bela pianista russa, e diz a ela: “Se eu não soubesse que a conheci em Moscou, você poderia muito bem ser uma moça americana” (A atriz, Susan Peters, nasceu em Spokane, Washington).

No meio de Canção da Rússia, os nazistas invadem a União Soviética e Stalin faz um discurso empolgante à nação. “Nossa guerra pela liberdade do nosso país irá se fundir com as lutas dos povos da América pela sua independência, pelas liberdades democráticas e contra a escravização pelos exércitos fascistas de Hitler”, proclama ele. (O verdadeiro Stalin nunca foi muito fã das liberdades democráticas americanas).

Os filmes pró-soviéticos desencadearam uma guerra cultural no front interno – sobretudo Missão em Moscou. Devido aos laços estreitos de Davies com FDR, o filme se tornou um para-raios no debate político.

O New York Times elogiou sua “ousadia” e disse que “deveria ser uma influência valiosa para um pensamento mais claro e profundo”. Vários ramos da Legião Americana, uma organização de veteranos, apoiaram o filme publicamente.

Mas as críticas foram severas. O filósofo John Dewey denunciou Missão em Moscou como “o primeiro exemplo de propaganda totalitária para o consumo de massa no nosso país”. O romancista James Agee o caracterizou como “uma mistura de stalinismo com New Deal e Hollywood (...) um retrato notável de como os produtores do filme imaginam que o público americano deveria pensar que a União Soviética é – uma grande gororoba enlatada de dois milhões de dólares”.

Pôster do filme 'Três Heroínas Russas', de 1943. Foto: United Artists

Os republicanos se enfureceram. O Comitê Nacional Republicano rejeitou o filme como “propaganda do New Deal”. O deputado Marion T. Bennett (Missouri) disse que Hollywood “perdeu completamente a cabeça e exagerou em sua tentativa de fazer o comunismo parecer bom”, insistindo que a aliança soviético-americana deveria ser apenas “temporária”.

Mas Roosevelt esperava que a aliança durasse para além da guerra contra os nazistas. Queria uma parceria com os soviéticos, não uma Guerra Fria.

“Penso que estamos todos de acordo quanto à necessidade de ter a URSS como um membro plenamente aceito e igualitário de qualquer associação das grandes potências formada com o propósito de prevenir a guerra internacional”, FDR escreveu ao primeiro-ministro britânico Winston Churchill em setembro de 1944. “Seria possível realizá-lo ajustando nossas diferenças por meio de um compromisso entre todas as partes envolvidas”, acrescentando que “isso deveria ajudar as coisas por alguns anos até que a criança aprenda a brincar”.

O assessor mais próximo de Roosevelt, Harry Hopkins, disse depois da Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945: “Os russos provaram que podiam ser razoáveis e clarividentes, e nem o presidente nem qualquer um de nós tinha a menor dúvida de que poderíamos conviver pacificamente com eles no futuro”.

Filmes como Canção da Rússia e Missão em Moscou serviram à política externa de FDR. Eles deixaram a aliança soviético-americana mais palatável para os americanos, muitos dos quais detestavam o comunismo, e abriram caminho para a continuação da aliança depois da guerra.

Os censores americanos foram explícitos a esse respeito. Missão a Moscou, disse o Escritório de Informação de Guerra em um relatório, “encorajaria a fé na viabilidade da cooperação pós-guerra”. Em outro relatório, o órgão saudou o filme como “uma magnífica contribuição para o programa cinematográfico do governo”.

A morte de Roosevelt, em abril de 1945, foi um golpe para uma aliança de longo prazo entre os Estados Unidos e a União Soviética e “enfraqueceu, talvez fatalmente, as perspectivas de evitar ou pelo menos mitigar a Guerra Fria”, escreveu Frank Costigliola no livro Roosevelt’s Lost Alliances [”As alianças perdidas de Roosevelt”, em tradução livre].

Harry S. Truman, sucessor de Roosevelt, não acreditava que Stalin fosse confiável. Confrontado com a expansão soviética no Leste Europeu, ele proclamou a Doutrina Truman. Os Estados Unidos, prometeu ele, “apoiariam os povos livres que resistem às tentativas de subjugação por minorias armadas ou por pressões externas”.

A Guerra Fria estava a caminho. Os filmes pró-soviéticos de Hollywood foram relegados à lata de lixo da história.

Mas eles não ficaram lá por muito tempo. Em 1947, o Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara investigou Hollywood, com o objetivo de erradicar a “infiltração comunista”. Os membros do comitê apresentaram Canção da Rússia e Missão em Moscou como prova de que Hollywood estava tomada por agentes comunistas e simpatizantes soviéticos.

O comitê convocou Ayn Rand – romancista anticomunista que fugira da URSS na década de 1920 – para testemunhar. Ela explicou como Canção da Rússia maquiava o regime de Stalin. “Não creio que fosse necessário enganar o povo americano sobre a natureza da Rússia”, disse ela.

O comitê também perguntou a Jack Warner, presidente da Warner Bros., por que ele havia produzido Missão em Moscou.

“O filme foi feito quando nosso país lutava por sua sobrevivência, tendo a Rússia como um dos nossos aliados”, disse Warner.

Então, com um ar de desafio, o magnata continuou: “Se fazer Missão em Moscou em 1942 era uma atividade subversiva, então os navios American Liberty, que transportaram alimentos e armas para os aliados russos, e os navios americanos que fizeram sua escolta também se envolveram em atividades subversivas”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Era noite de cinema no Kremlin. A data era 23 de maio de 1943. O Exército Vermelho tinha derrotado os alemães na Batalha de Stalingrado apenas três meses antes. Pela primeira vez, parecia que os Aliados poderiam vencer.

E agora, para celebrar a aliança entre a União Soviética e os Estados Unidos, Josef Stalin decidira oferecer um banquete no Kremlin. Apesar do racionamento dos tempos de guerra, não faltaram pratos deliciosos. A vodca corria livre, segundo o historiador Todd Bennett.

Depois do jantar, Stalin levou os convidados ao seu cinema particular. Joseph E. Davies, ex-embaixador dos Estados Unidos na URSS e conselheiro do presidente Franklin D. Roosevelt, sentou-se ao lado de Stalin. Aí as luzes se apagaram e Missão em Moscou começou.

O líder soviético Joseph Stalin, à esquerda, aparece com o presidente Franklin D. Roosevelt na embaixada russa em Teerã em 1943. Foto: Library of Congress via The Washington Post

O filme era pura propaganda stalinista. Retratava o ditador como um líder benevolente e a União Soviética como uma sociedade fraterna, livre de qualquer repressão. Apresentava como justos os julgamentos-espetáculo de Moscou, durante os quais os rivais de Stalin foram incriminados. E acusava Leon Trótski – o bolchevique judeu assassinado por ordem de Stalin em 1940 – de ter sido um agente nazista.

Mas Missão em Moscou não fora realizado pelos estúdios que obedeciam ao Kremlin nem examinado pelos censores de Stalin. Vinha de um estúdio de Hollywood, a Warner Bros. Pictures, e fora aprovado pelos censores do governo americano.

Hoje, os conservadores acusam Hollywood de espalhar propaganda esquerdista. Durante a Segunda Guerra Mundial, Hollywood fez exatamente isso. E teve apoio total do governo dos Estados Unidos.

Missão em Moscou fez parte de uma onda de filmes realizados entre 1942 e 1945 que elogiavam o regime soviético. Entre eles se encontravam A Estrela do Norte, da RKO, sobre ucranianos repelindo invasores nazistas; Três Heroínas Russas, da United Artists, sobre o romance de uma enfermeira russa com um soldado americano; e Contra-Ataque, da Columbia, sobre soldados do Exército Vermelho enfrentando a Wehrmacht.

Pôster original de 'Missão em Moscou', filme de 1943. Foto: Warner Bros. Pictures

Missão em Moscou foi dirigido por Michael Curtiz, que já tinha dirigido Casablanca, mas era ideia de Davies. Baseado em suas memórias, o filme dramatizava sua passagem pela embaixada americana em Moscou antes da guerra. Walter Huston interpretou Davies. No prólogo do filme, o Davies da vida real garantia aos espectadores que estavam prestes a receber uma cartilha “honesta” sobre a União Soviética.

Stalin aprovou. Ele foi “muito generoso” em seus “elogios ao filme”, escreveu Davies em uma carta no dia seguinte. Logo depois, a Missão em Moscou estreou em toda a URSS.

O filme foi lançado nos Estados Unidos com grande alarde em abril de 1943, segundo os historiadores Ronald e Allis Radosh. O orçamento de marketing foi de US$ 500 mil – perto de US$ 9 milhões em valor atual. Houve uma estreia luminosa em Washington, com a presença de políticos e repórteres.

O New York Times o definiu como “o filme mais franco sobre um tema político já feito por um estúdio americano”. Missão em Moscou certamente não escondia sua agenda: fazer com que os americanos apreciassem a União Soviética e angariar apoio para a aliança soviético-americana.

Essa diretiva vinha diretamente da Casa Branca. Os cineastas tiveram “a bênção governamental”, revelou Davies anos depois. E ele consultou FDR várias vezes durante a produção. Segundo o produtor Robert Buckner, o presidente disse que Missão em Moscou deveria “mostrar às mães e aos pais americanos que, se seus filhos fossem mortos em combates ao lado dos russos pela nossa causa comum, então seria por uma boa causa, pois os russos são aliados dignos”.

Missão em Moscou e outros filmes pró-soviéticos da época foram feitos sob a égide do Escritório de Informação de Guerra, lançado por Roosevelt em 1942 para “promover, nos Estados Unidos e no exterior, a compreensão do status e o progresso do esforço de guerra e das políticas, atividades e objetivos de guerra do governo dos Estados Unidos”. Em outras palavras, supervisionava a propaganda americana durante a guerra.

Canção da Rússia, da MGM, um drama romântico lançado em 1944, foi feito em cooperação com o governo soviético. O diretor consultou o embaixador soviético antes de filmar, e o filme contava com imagens de noticiários da URSS.

Pôster americano de 'Canção da Rússia', lançando em 1944. Foto: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM)

O longa conta a história de um maestro americano, interpretado por Robert Taylor, que viaja pela URSS. Sutileza não é o forte do filme. Em certa cena, ele janta em um restaurante movimentado de Moscou e exclama: “Que incrível! Todo mundo parece estar se divertindo muito”. Ele então se vira para sua companhia, uma bela pianista russa, e diz a ela: “Se eu não soubesse que a conheci em Moscou, você poderia muito bem ser uma moça americana” (A atriz, Susan Peters, nasceu em Spokane, Washington).

No meio de Canção da Rússia, os nazistas invadem a União Soviética e Stalin faz um discurso empolgante à nação. “Nossa guerra pela liberdade do nosso país irá se fundir com as lutas dos povos da América pela sua independência, pelas liberdades democráticas e contra a escravização pelos exércitos fascistas de Hitler”, proclama ele. (O verdadeiro Stalin nunca foi muito fã das liberdades democráticas americanas).

Os filmes pró-soviéticos desencadearam uma guerra cultural no front interno – sobretudo Missão em Moscou. Devido aos laços estreitos de Davies com FDR, o filme se tornou um para-raios no debate político.

O New York Times elogiou sua “ousadia” e disse que “deveria ser uma influência valiosa para um pensamento mais claro e profundo”. Vários ramos da Legião Americana, uma organização de veteranos, apoiaram o filme publicamente.

Mas as críticas foram severas. O filósofo John Dewey denunciou Missão em Moscou como “o primeiro exemplo de propaganda totalitária para o consumo de massa no nosso país”. O romancista James Agee o caracterizou como “uma mistura de stalinismo com New Deal e Hollywood (...) um retrato notável de como os produtores do filme imaginam que o público americano deveria pensar que a União Soviética é – uma grande gororoba enlatada de dois milhões de dólares”.

Pôster do filme 'Três Heroínas Russas', de 1943. Foto: United Artists

Os republicanos se enfureceram. O Comitê Nacional Republicano rejeitou o filme como “propaganda do New Deal”. O deputado Marion T. Bennett (Missouri) disse que Hollywood “perdeu completamente a cabeça e exagerou em sua tentativa de fazer o comunismo parecer bom”, insistindo que a aliança soviético-americana deveria ser apenas “temporária”.

Mas Roosevelt esperava que a aliança durasse para além da guerra contra os nazistas. Queria uma parceria com os soviéticos, não uma Guerra Fria.

“Penso que estamos todos de acordo quanto à necessidade de ter a URSS como um membro plenamente aceito e igualitário de qualquer associação das grandes potências formada com o propósito de prevenir a guerra internacional”, FDR escreveu ao primeiro-ministro britânico Winston Churchill em setembro de 1944. “Seria possível realizá-lo ajustando nossas diferenças por meio de um compromisso entre todas as partes envolvidas”, acrescentando que “isso deveria ajudar as coisas por alguns anos até que a criança aprenda a brincar”.

O assessor mais próximo de Roosevelt, Harry Hopkins, disse depois da Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945: “Os russos provaram que podiam ser razoáveis e clarividentes, e nem o presidente nem qualquer um de nós tinha a menor dúvida de que poderíamos conviver pacificamente com eles no futuro”.

Filmes como Canção da Rússia e Missão em Moscou serviram à política externa de FDR. Eles deixaram a aliança soviético-americana mais palatável para os americanos, muitos dos quais detestavam o comunismo, e abriram caminho para a continuação da aliança depois da guerra.

Os censores americanos foram explícitos a esse respeito. Missão a Moscou, disse o Escritório de Informação de Guerra em um relatório, “encorajaria a fé na viabilidade da cooperação pós-guerra”. Em outro relatório, o órgão saudou o filme como “uma magnífica contribuição para o programa cinematográfico do governo”.

A morte de Roosevelt, em abril de 1945, foi um golpe para uma aliança de longo prazo entre os Estados Unidos e a União Soviética e “enfraqueceu, talvez fatalmente, as perspectivas de evitar ou pelo menos mitigar a Guerra Fria”, escreveu Frank Costigliola no livro Roosevelt’s Lost Alliances [”As alianças perdidas de Roosevelt”, em tradução livre].

Harry S. Truman, sucessor de Roosevelt, não acreditava que Stalin fosse confiável. Confrontado com a expansão soviética no Leste Europeu, ele proclamou a Doutrina Truman. Os Estados Unidos, prometeu ele, “apoiariam os povos livres que resistem às tentativas de subjugação por minorias armadas ou por pressões externas”.

A Guerra Fria estava a caminho. Os filmes pró-soviéticos de Hollywood foram relegados à lata de lixo da história.

Mas eles não ficaram lá por muito tempo. Em 1947, o Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara investigou Hollywood, com o objetivo de erradicar a “infiltração comunista”. Os membros do comitê apresentaram Canção da Rússia e Missão em Moscou como prova de que Hollywood estava tomada por agentes comunistas e simpatizantes soviéticos.

O comitê convocou Ayn Rand – romancista anticomunista que fugira da URSS na década de 1920 – para testemunhar. Ela explicou como Canção da Rússia maquiava o regime de Stalin. “Não creio que fosse necessário enganar o povo americano sobre a natureza da Rússia”, disse ela.

O comitê também perguntou a Jack Warner, presidente da Warner Bros., por que ele havia produzido Missão em Moscou.

“O filme foi feito quando nosso país lutava por sua sobrevivência, tendo a Rússia como um dos nossos aliados”, disse Warner.

Então, com um ar de desafio, o magnata continuou: “Se fazer Missão em Moscou em 1942 era uma atividade subversiva, então os navios American Liberty, que transportaram alimentos e armas para os aliados russos, e os navios americanos que fizeram sua escolta também se envolveram em atividades subversivas”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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