Dois Oscars num total de oito indicações – um recorde de vitórias na comparação com os pares latino-americanos. Uma capital com o maior número de livrarias per capita no mundo – 25 por 100 mil habitantes, conforme a World Cities Cultural Forum – e uma cena teatral com cerca de 400 espetáculos por ano, como Nova York, Paris e Londres.
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Esses números que fazem da Argentina uma potência cultural imune à decadência socioeconômica podem se tornar passado com as mudanças previstas pela “Lei Ônibus” do governo de Javier Milei (Libertad Avanza), todas em uma linha liberal e de diminuição do peso estatal, como ele defendeu durante a campanha.
A “Lei Ônibus” é parte da política argentina. Trata-se de um expediente no qual o Executivo reúne uma série de propostas para serem aprovadas de uma vez pelo Legislativo.
Uma das propostas de Milei para o setor cultural é a extinção da Lei de Direitos Autorais, de 1933. Trata-se de uma medida de impacto: o dinheiro recolhido por esta via sustenta associações, que promovem trabalhos sociais para artistas e produtores culturais, e parte da própria cultura argentina.
O diretor e roteirista Martin Salinas, membro do conselho da Academia de Cinema da Argentina e do Conselho de Cinema da Argentina, uma sociedade de direitos autorais, vê a extinção da Lei como “um ataque direto à subsistência”, uma vez que os autores não terão mais controle do recebimento de seus direitos. “Uma série de ajudas [aos profissionais] serão cortadas”, afirma.
Na Argentina, essas sociedades prestam auxílios aos profissionais. Outro problema apontado por Salinas é em relação à formação de novos artistas. “Vamos perder a possibilidade de autores novos surgirem”, diz.
O Fundo Nacional das Artes, criado em 1958, é parcialmente financiado por esta lei. A sua função é distribuir bolsas e financiamento para artistas e produtores culturais do país de diversas áreas de atuação e fases da carreira.
Pela proposta de Milei, o Fundo seria extinto, assim como o Instituto Nacional do Teatro, criado em 1997, durante o governo de Carlos Menem – que Milei considera o melhor presidente do país.
Uma das bolsas dadas pelo Fundo Nacional da Cultura é de 200 mil pesos ao mês - menos de R$ 1 mil, pelo câmbio paralelo, e 40% do que necessita uma pessoa para não ser considerada pobre.
“Não há dinheiro. Tenho que decidir para onde vai o dinheiro”, afirmou Milei em uma entrevista de rádio na segunda-feira, 22. Disse também que o setor está fazendo “a defesa de um privilégio“.
Milei vê a produção artística dominada pelo “marxismo cultural”, conforme mostrou em seu discurso em Davos, na Suiça, onde ocorreu o 54º Fórum Econômico Mundial.
Na última sexta-feira, 19, o jornal Clarín noticiou que parte das propostas, como o fim do Fundo Nacional das Artes e do Instituto Nacional de Teatro, sairão do projeto. Entretanto, é cedo para celebrar, segundo Salinas.
Martin Salinas
No caso do audiovisual, Milei afirmou que “ou financiamos filmes que ninguém vê ou damos de comer às pessoas”. O financiamento do setor vem de um percentual pago com as bilheterias dos cinemas e um valor pago pelas TVs. Com a mudança proposta, o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA) ficaria apenas com os 10% proveniente das bilheterias. Seu orçamento seria reduzido, assim, em 70%.
A mudança inviabiliza a produção local. O instituto é o primeiro financiador do cinema argentino, cuja situação, como de todo setor artístico, vem se deteriorando por causa da inflação e da desvalorização cambial.
Até o final da paridade peso-dólar, em 2001, o INCAA chegava a financiar o correspondente à metade do orçamento dos filmes. Com a desvalorização do peso e a escalada inflacionária, esse número passou a equivaler a 20%. Ainda assim, a quantia permitia a busca por outras formas de financiamento, mesmo fora do país.
“A partir de uma certa base [de financiamento local] é que se pode sair em busca de parcerias de coprodução”, diz a produtora Vanessa Ragoni, ganhadora do Oscar por O Segredo de seus olhos (2001). Ragoni considera que o maior impacto das mudanças estariam no fim da produção independente, carro-chefe do audiovisual local.
O país vem, desde 2016, produzindo mais de 200 filmes por ano, com exceção dos anos da pandemia. “Sem o INCAA, as coproduções não serão mais realizadas”, afirma Liliana Mazure, que presidiu o instituto entre 2008 e 2013, durante o governo Cristina Kirchner.
Os diretores e produtores Marcelo Schapces e Hugo Castro comparam o desfinanciamento do INCAA não à paralisação da Ancine no governo Bolsonaro, mas ao fim da Embrafilme, estatal que concentrava todos os processos da produção de cinema. “É muito parecida com o que aconteceu no Brasil com Collor de Mello”, afirma Castro. “O cinema argentino como marca vai desaparecer”, afirma Schapces.
Além de financiar e regular a produção, o INCAA é responsável também pela “Escuela Nacional de Experimentación y Realización Cinematrográfica” (ENERC), gratuita, pela qual passaram importantes nomes, como a diretora Lucrecia Martel.
O meio cultural tem atuado no Legislativo, nas redes e se fará presente na Greve Geral desta quarta-feira, 24. No último fim de semana, circulou um abaixo-assinado firmado por mais de 300 profissionais do audiovisual, entre eles o cineasta Pedro Almodóvar e o ator Gael García Bernal, em defesa do setor.
Circulou também um vídeo que contou com o ator Ricardo Darín. “Não são privilégios, são direitos”, afirmou o protagonista de Argentina 1985. Ganhador de 15 prêmios, entre os 20 a que foi indicado, o filme foi o 10º mais visto no país em 2023.