Indústria cultural argentina tenta evitar cortes de Milei e teme paralisia no setor; entenda embate


País tido como potência cultural pode ver cinema e outros setores prejudicados e sem financiamento com propostas da ‘Lei Ônibus’. Produtores argentinos avaliam cenário, enquanto Milei diz que ‘não há dinheiro’

Por Danilo Tomaz
Atualização:

Dois Oscars num total de oito indicações – um recorde de vitórias na comparação com os pares latino-americanos. Uma capital com o maior número de livrarias per capita no mundo – 25 por 100 mil habitantes, conforme a World Cities Cultural Forum – e uma cena teatral com cerca de 400 espetáculos por ano, como Nova York, Paris e Londres.

Esses números que fazem da Argentina uma potência cultural imune à decadência socioeconômica podem se tornar passado com as mudanças previstas pela “Lei Ônibus” do governo de Javier Milei (Libertad Avanza), todas em uma linha liberal e de diminuição do peso estatal, como ele defendeu durante a campanha.

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A “Lei Ônibus” é parte da política argentina. Trata-se de um expediente no qual o Executivo reúne uma série de propostas para serem aprovadas de uma vez pelo Legislativo.

Uma das propostas de Milei para o setor cultural é a extinção da Lei de Direitos Autorais, de 1933. Trata-se de uma medida de impacto: o dinheiro recolhido por esta via sustenta associações, que promovem trabalhos sociais para artistas e produtores culturais, e parte da própria cultura argentina.

Política de Javier Milei pode prejudicar setor cultural da Argentina, referência no audiovisual e na literatura.  Foto: GIAN EHRENZELLER/EPA/KEYSTONE/EFE
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O diretor e roteirista Martin Salinas, membro do conselho da Academia de Cinema da Argentina e do Conselho de Cinema da Argentina, uma sociedade de direitos autorais, vê a extinção da Lei como “um ataque direto à subsistência”, uma vez que os autores não terão mais controle do recebimento de seus direitos. “Uma série de ajudas [aos profissionais] serão cortadas”, afirma.

Na Argentina, essas sociedades prestam auxílios aos profissionais. Outro problema apontado por Salinas é em relação à formação de novos artistas. “Vamos perder a possibilidade de autores novos surgirem”, diz.

O Fundo Nacional das Artes, criado em 1958, é parcialmente financiado por esta lei. A sua função é distribuir bolsas e financiamento para artistas e produtores culturais do país de diversas áreas de atuação e fases da carreira.

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Pela proposta de Milei, o Fundo seria extinto, assim como o Instituto Nacional do Teatro, criado em 1997, durante o governo de Carlos Menem – que Milei considera o melhor presidente do país.

Uma das bolsas dadas pelo Fundo Nacional da Cultura é de 200 mil pesos ao mês - menos de R$ 1 mil, pelo câmbio paralelo, e 40% do que necessita uma pessoa para não ser considerada pobre.

“Não há dinheiro. Tenho que decidir para onde vai o dinheiro”, afirmou Milei em uma entrevista de rádio na segunda-feira, 22. Disse também que o setor está fazendo “a defesa de um privilégio“.

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Milei vê a produção artística dominada pelo “marxismo cultural”, conforme mostrou em seu discurso em Davos, na Suiça, onde ocorreu o 54º Fórum Econômico Mundial.

Na última sexta-feira, 19, o jornal Clarín noticiou que parte das propostas, como o fim do Fundo Nacional das Artes e do Instituto Nacional de Teatro, sairão do projeto. Entretanto, é cedo para celebrar, segundo Salinas.

O que se está conseguindo é que, em vez de se tratar [desses temas] na ‘Lei Ônibus’, se trate em sessões ordinárias mais à frente. Ou seja, se detém o avanço do tanque de guerra com uma barricada, mas ele segue aí, ameaçador. Não há garantia.

Martin Salinas

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No caso do audiovisual, Milei afirmou que “ou financiamos filmes que ninguém vê ou damos de comer às pessoas”. O financiamento do setor vem de um percentual pago com as bilheterias dos cinemas e um valor pago pelas TVs. Com a mudança proposta, o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA) ficaria apenas com os 10% proveniente das bilheterias. Seu orçamento seria reduzido, assim, em 70%.

A mudança inviabiliza a produção local. O instituto é o primeiro financiador do cinema argentino, cuja situação, como de todo setor artístico, vem se deteriorando por causa da inflação e da desvalorização cambial.

Até o final da paridade peso-dólar, em 2001, o INCAA chegava a financiar o correspondente à metade do orçamento dos filmes. Com a desvalorização do peso e a escalada inflacionária, esse número passou a equivaler a 20%. Ainda assim, a quantia permitia a busca por outras formas de financiamento, mesmo fora do país.

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Setor cultural da Argentina vive momento de crise com políticas do governo Milei. Foto: Carolina Marins/Estadão

“A partir de uma certa base [de financiamento local] é que se pode sair em busca de parcerias de coprodução”, diz a produtora Vanessa Ragoni, ganhadora do Oscar por O Segredo de seus olhos (2001). Ragoni considera que o maior impacto das mudanças estariam no fim da produção independente, carro-chefe do audiovisual local.

O país vem, desde 2016, produzindo mais de 200 filmes por ano, com exceção dos anos da pandemia. “Sem o INCAA, as coproduções não serão mais realizadas”, afirma Liliana Mazure, que presidiu o instituto entre 2008 e 2013, durante o governo Cristina Kirchner.

Os diretores e produtores Marcelo Schapces e Hugo Castro comparam o desfinanciamento do INCAA não à paralisação da Ancine no governo Bolsonaro, mas ao fim da Embrafilme, estatal que concentrava todos os processos da produção de cinema. “É muito parecida com o que aconteceu no Brasil com Collor de Mello”, afirma Castro. “O cinema argentino como marca vai desaparecer”, afirma Schapces.

Além de financiar e regular a produção, o INCAA é responsável também pela “Escuela Nacional de Experimentación y Realización Cinematrográfica” (ENERC), gratuita, pela qual passaram importantes nomes, como a diretora Lucrecia Martel.

O meio cultural tem atuado no Legislativo, nas redes e se fará presente na Greve Geral desta quarta-feira, 24. No último fim de semana, circulou um abaixo-assinado firmado por mais de 300 profissionais do audiovisual, entre eles o cineasta Pedro Almodóvar e o ator Gael García Bernal, em defesa do setor.

Circulou também um vídeo que contou com o ator Ricardo Darín. “Não são privilégios, são direitos”, afirmou o protagonista de Argentina 1985. Ganhador de 15 prêmios, entre os 20 a que foi indicado, o filme foi o 10º mais visto no país em 2023.

Dois Oscars num total de oito indicações – um recorde de vitórias na comparação com os pares latino-americanos. Uma capital com o maior número de livrarias per capita no mundo – 25 por 100 mil habitantes, conforme a World Cities Cultural Forum – e uma cena teatral com cerca de 400 espetáculos por ano, como Nova York, Paris e Londres.

Esses números que fazem da Argentina uma potência cultural imune à decadência socioeconômica podem se tornar passado com as mudanças previstas pela “Lei Ônibus” do governo de Javier Milei (Libertad Avanza), todas em uma linha liberal e de diminuição do peso estatal, como ele defendeu durante a campanha.

A “Lei Ônibus” é parte da política argentina. Trata-se de um expediente no qual o Executivo reúne uma série de propostas para serem aprovadas de uma vez pelo Legislativo.

Uma das propostas de Milei para o setor cultural é a extinção da Lei de Direitos Autorais, de 1933. Trata-se de uma medida de impacto: o dinheiro recolhido por esta via sustenta associações, que promovem trabalhos sociais para artistas e produtores culturais, e parte da própria cultura argentina.

Política de Javier Milei pode prejudicar setor cultural da Argentina, referência no audiovisual e na literatura.  Foto: GIAN EHRENZELLER/EPA/KEYSTONE/EFE

O diretor e roteirista Martin Salinas, membro do conselho da Academia de Cinema da Argentina e do Conselho de Cinema da Argentina, uma sociedade de direitos autorais, vê a extinção da Lei como “um ataque direto à subsistência”, uma vez que os autores não terão mais controle do recebimento de seus direitos. “Uma série de ajudas [aos profissionais] serão cortadas”, afirma.

Na Argentina, essas sociedades prestam auxílios aos profissionais. Outro problema apontado por Salinas é em relação à formação de novos artistas. “Vamos perder a possibilidade de autores novos surgirem”, diz.

O Fundo Nacional das Artes, criado em 1958, é parcialmente financiado por esta lei. A sua função é distribuir bolsas e financiamento para artistas e produtores culturais do país de diversas áreas de atuação e fases da carreira.

Pela proposta de Milei, o Fundo seria extinto, assim como o Instituto Nacional do Teatro, criado em 1997, durante o governo de Carlos Menem – que Milei considera o melhor presidente do país.

Uma das bolsas dadas pelo Fundo Nacional da Cultura é de 200 mil pesos ao mês - menos de R$ 1 mil, pelo câmbio paralelo, e 40% do que necessita uma pessoa para não ser considerada pobre.

“Não há dinheiro. Tenho que decidir para onde vai o dinheiro”, afirmou Milei em uma entrevista de rádio na segunda-feira, 22. Disse também que o setor está fazendo “a defesa de um privilégio“.

Milei vê a produção artística dominada pelo “marxismo cultural”, conforme mostrou em seu discurso em Davos, na Suiça, onde ocorreu o 54º Fórum Econômico Mundial.

Na última sexta-feira, 19, o jornal Clarín noticiou que parte das propostas, como o fim do Fundo Nacional das Artes e do Instituto Nacional de Teatro, sairão do projeto. Entretanto, é cedo para celebrar, segundo Salinas.

O que se está conseguindo é que, em vez de se tratar [desses temas] na ‘Lei Ônibus’, se trate em sessões ordinárias mais à frente. Ou seja, se detém o avanço do tanque de guerra com uma barricada, mas ele segue aí, ameaçador. Não há garantia.

Martin Salinas

No caso do audiovisual, Milei afirmou que “ou financiamos filmes que ninguém vê ou damos de comer às pessoas”. O financiamento do setor vem de um percentual pago com as bilheterias dos cinemas e um valor pago pelas TVs. Com a mudança proposta, o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA) ficaria apenas com os 10% proveniente das bilheterias. Seu orçamento seria reduzido, assim, em 70%.

A mudança inviabiliza a produção local. O instituto é o primeiro financiador do cinema argentino, cuja situação, como de todo setor artístico, vem se deteriorando por causa da inflação e da desvalorização cambial.

Até o final da paridade peso-dólar, em 2001, o INCAA chegava a financiar o correspondente à metade do orçamento dos filmes. Com a desvalorização do peso e a escalada inflacionária, esse número passou a equivaler a 20%. Ainda assim, a quantia permitia a busca por outras formas de financiamento, mesmo fora do país.

Setor cultural da Argentina vive momento de crise com políticas do governo Milei. Foto: Carolina Marins/Estadão

“A partir de uma certa base [de financiamento local] é que se pode sair em busca de parcerias de coprodução”, diz a produtora Vanessa Ragoni, ganhadora do Oscar por O Segredo de seus olhos (2001). Ragoni considera que o maior impacto das mudanças estariam no fim da produção independente, carro-chefe do audiovisual local.

O país vem, desde 2016, produzindo mais de 200 filmes por ano, com exceção dos anos da pandemia. “Sem o INCAA, as coproduções não serão mais realizadas”, afirma Liliana Mazure, que presidiu o instituto entre 2008 e 2013, durante o governo Cristina Kirchner.

Os diretores e produtores Marcelo Schapces e Hugo Castro comparam o desfinanciamento do INCAA não à paralisação da Ancine no governo Bolsonaro, mas ao fim da Embrafilme, estatal que concentrava todos os processos da produção de cinema. “É muito parecida com o que aconteceu no Brasil com Collor de Mello”, afirma Castro. “O cinema argentino como marca vai desaparecer”, afirma Schapces.

Além de financiar e regular a produção, o INCAA é responsável também pela “Escuela Nacional de Experimentación y Realización Cinematrográfica” (ENERC), gratuita, pela qual passaram importantes nomes, como a diretora Lucrecia Martel.

O meio cultural tem atuado no Legislativo, nas redes e se fará presente na Greve Geral desta quarta-feira, 24. No último fim de semana, circulou um abaixo-assinado firmado por mais de 300 profissionais do audiovisual, entre eles o cineasta Pedro Almodóvar e o ator Gael García Bernal, em defesa do setor.

Circulou também um vídeo que contou com o ator Ricardo Darín. “Não são privilégios, são direitos”, afirmou o protagonista de Argentina 1985. Ganhador de 15 prêmios, entre os 20 a que foi indicado, o filme foi o 10º mais visto no país em 2023.

Dois Oscars num total de oito indicações – um recorde de vitórias na comparação com os pares latino-americanos. Uma capital com o maior número de livrarias per capita no mundo – 25 por 100 mil habitantes, conforme a World Cities Cultural Forum – e uma cena teatral com cerca de 400 espetáculos por ano, como Nova York, Paris e Londres.

Esses números que fazem da Argentina uma potência cultural imune à decadência socioeconômica podem se tornar passado com as mudanças previstas pela “Lei Ônibus” do governo de Javier Milei (Libertad Avanza), todas em uma linha liberal e de diminuição do peso estatal, como ele defendeu durante a campanha.

A “Lei Ônibus” é parte da política argentina. Trata-se de um expediente no qual o Executivo reúne uma série de propostas para serem aprovadas de uma vez pelo Legislativo.

Uma das propostas de Milei para o setor cultural é a extinção da Lei de Direitos Autorais, de 1933. Trata-se de uma medida de impacto: o dinheiro recolhido por esta via sustenta associações, que promovem trabalhos sociais para artistas e produtores culturais, e parte da própria cultura argentina.

Política de Javier Milei pode prejudicar setor cultural da Argentina, referência no audiovisual e na literatura.  Foto: GIAN EHRENZELLER/EPA/KEYSTONE/EFE

O diretor e roteirista Martin Salinas, membro do conselho da Academia de Cinema da Argentina e do Conselho de Cinema da Argentina, uma sociedade de direitos autorais, vê a extinção da Lei como “um ataque direto à subsistência”, uma vez que os autores não terão mais controle do recebimento de seus direitos. “Uma série de ajudas [aos profissionais] serão cortadas”, afirma.

Na Argentina, essas sociedades prestam auxílios aos profissionais. Outro problema apontado por Salinas é em relação à formação de novos artistas. “Vamos perder a possibilidade de autores novos surgirem”, diz.

O Fundo Nacional das Artes, criado em 1958, é parcialmente financiado por esta lei. A sua função é distribuir bolsas e financiamento para artistas e produtores culturais do país de diversas áreas de atuação e fases da carreira.

Pela proposta de Milei, o Fundo seria extinto, assim como o Instituto Nacional do Teatro, criado em 1997, durante o governo de Carlos Menem – que Milei considera o melhor presidente do país.

Uma das bolsas dadas pelo Fundo Nacional da Cultura é de 200 mil pesos ao mês - menos de R$ 1 mil, pelo câmbio paralelo, e 40% do que necessita uma pessoa para não ser considerada pobre.

“Não há dinheiro. Tenho que decidir para onde vai o dinheiro”, afirmou Milei em uma entrevista de rádio na segunda-feira, 22. Disse também que o setor está fazendo “a defesa de um privilégio“.

Milei vê a produção artística dominada pelo “marxismo cultural”, conforme mostrou em seu discurso em Davos, na Suiça, onde ocorreu o 54º Fórum Econômico Mundial.

Na última sexta-feira, 19, o jornal Clarín noticiou que parte das propostas, como o fim do Fundo Nacional das Artes e do Instituto Nacional de Teatro, sairão do projeto. Entretanto, é cedo para celebrar, segundo Salinas.

O que se está conseguindo é que, em vez de se tratar [desses temas] na ‘Lei Ônibus’, se trate em sessões ordinárias mais à frente. Ou seja, se detém o avanço do tanque de guerra com uma barricada, mas ele segue aí, ameaçador. Não há garantia.

Martin Salinas

No caso do audiovisual, Milei afirmou que “ou financiamos filmes que ninguém vê ou damos de comer às pessoas”. O financiamento do setor vem de um percentual pago com as bilheterias dos cinemas e um valor pago pelas TVs. Com a mudança proposta, o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA) ficaria apenas com os 10% proveniente das bilheterias. Seu orçamento seria reduzido, assim, em 70%.

A mudança inviabiliza a produção local. O instituto é o primeiro financiador do cinema argentino, cuja situação, como de todo setor artístico, vem se deteriorando por causa da inflação e da desvalorização cambial.

Até o final da paridade peso-dólar, em 2001, o INCAA chegava a financiar o correspondente à metade do orçamento dos filmes. Com a desvalorização do peso e a escalada inflacionária, esse número passou a equivaler a 20%. Ainda assim, a quantia permitia a busca por outras formas de financiamento, mesmo fora do país.

Setor cultural da Argentina vive momento de crise com políticas do governo Milei. Foto: Carolina Marins/Estadão

“A partir de uma certa base [de financiamento local] é que se pode sair em busca de parcerias de coprodução”, diz a produtora Vanessa Ragoni, ganhadora do Oscar por O Segredo de seus olhos (2001). Ragoni considera que o maior impacto das mudanças estariam no fim da produção independente, carro-chefe do audiovisual local.

O país vem, desde 2016, produzindo mais de 200 filmes por ano, com exceção dos anos da pandemia. “Sem o INCAA, as coproduções não serão mais realizadas”, afirma Liliana Mazure, que presidiu o instituto entre 2008 e 2013, durante o governo Cristina Kirchner.

Os diretores e produtores Marcelo Schapces e Hugo Castro comparam o desfinanciamento do INCAA não à paralisação da Ancine no governo Bolsonaro, mas ao fim da Embrafilme, estatal que concentrava todos os processos da produção de cinema. “É muito parecida com o que aconteceu no Brasil com Collor de Mello”, afirma Castro. “O cinema argentino como marca vai desaparecer”, afirma Schapces.

Além de financiar e regular a produção, o INCAA é responsável também pela “Escuela Nacional de Experimentación y Realización Cinematrográfica” (ENERC), gratuita, pela qual passaram importantes nomes, como a diretora Lucrecia Martel.

O meio cultural tem atuado no Legislativo, nas redes e se fará presente na Greve Geral desta quarta-feira, 24. No último fim de semana, circulou um abaixo-assinado firmado por mais de 300 profissionais do audiovisual, entre eles o cineasta Pedro Almodóvar e o ator Gael García Bernal, em defesa do setor.

Circulou também um vídeo que contou com o ator Ricardo Darín. “Não são privilégios, são direitos”, afirmou o protagonista de Argentina 1985. Ganhador de 15 prêmios, entre os 20 a que foi indicado, o filme foi o 10º mais visto no país em 2023.

Dois Oscars num total de oito indicações – um recorde de vitórias na comparação com os pares latino-americanos. Uma capital com o maior número de livrarias per capita no mundo – 25 por 100 mil habitantes, conforme a World Cities Cultural Forum – e uma cena teatral com cerca de 400 espetáculos por ano, como Nova York, Paris e Londres.

Esses números que fazem da Argentina uma potência cultural imune à decadência socioeconômica podem se tornar passado com as mudanças previstas pela “Lei Ônibus” do governo de Javier Milei (Libertad Avanza), todas em uma linha liberal e de diminuição do peso estatal, como ele defendeu durante a campanha.

A “Lei Ônibus” é parte da política argentina. Trata-se de um expediente no qual o Executivo reúne uma série de propostas para serem aprovadas de uma vez pelo Legislativo.

Uma das propostas de Milei para o setor cultural é a extinção da Lei de Direitos Autorais, de 1933. Trata-se de uma medida de impacto: o dinheiro recolhido por esta via sustenta associações, que promovem trabalhos sociais para artistas e produtores culturais, e parte da própria cultura argentina.

Política de Javier Milei pode prejudicar setor cultural da Argentina, referência no audiovisual e na literatura.  Foto: GIAN EHRENZELLER/EPA/KEYSTONE/EFE

O diretor e roteirista Martin Salinas, membro do conselho da Academia de Cinema da Argentina e do Conselho de Cinema da Argentina, uma sociedade de direitos autorais, vê a extinção da Lei como “um ataque direto à subsistência”, uma vez que os autores não terão mais controle do recebimento de seus direitos. “Uma série de ajudas [aos profissionais] serão cortadas”, afirma.

Na Argentina, essas sociedades prestam auxílios aos profissionais. Outro problema apontado por Salinas é em relação à formação de novos artistas. “Vamos perder a possibilidade de autores novos surgirem”, diz.

O Fundo Nacional das Artes, criado em 1958, é parcialmente financiado por esta lei. A sua função é distribuir bolsas e financiamento para artistas e produtores culturais do país de diversas áreas de atuação e fases da carreira.

Pela proposta de Milei, o Fundo seria extinto, assim como o Instituto Nacional do Teatro, criado em 1997, durante o governo de Carlos Menem – que Milei considera o melhor presidente do país.

Uma das bolsas dadas pelo Fundo Nacional da Cultura é de 200 mil pesos ao mês - menos de R$ 1 mil, pelo câmbio paralelo, e 40% do que necessita uma pessoa para não ser considerada pobre.

“Não há dinheiro. Tenho que decidir para onde vai o dinheiro”, afirmou Milei em uma entrevista de rádio na segunda-feira, 22. Disse também que o setor está fazendo “a defesa de um privilégio“.

Milei vê a produção artística dominada pelo “marxismo cultural”, conforme mostrou em seu discurso em Davos, na Suiça, onde ocorreu o 54º Fórum Econômico Mundial.

Na última sexta-feira, 19, o jornal Clarín noticiou que parte das propostas, como o fim do Fundo Nacional das Artes e do Instituto Nacional de Teatro, sairão do projeto. Entretanto, é cedo para celebrar, segundo Salinas.

O que se está conseguindo é que, em vez de se tratar [desses temas] na ‘Lei Ônibus’, se trate em sessões ordinárias mais à frente. Ou seja, se detém o avanço do tanque de guerra com uma barricada, mas ele segue aí, ameaçador. Não há garantia.

Martin Salinas

No caso do audiovisual, Milei afirmou que “ou financiamos filmes que ninguém vê ou damos de comer às pessoas”. O financiamento do setor vem de um percentual pago com as bilheterias dos cinemas e um valor pago pelas TVs. Com a mudança proposta, o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA) ficaria apenas com os 10% proveniente das bilheterias. Seu orçamento seria reduzido, assim, em 70%.

A mudança inviabiliza a produção local. O instituto é o primeiro financiador do cinema argentino, cuja situação, como de todo setor artístico, vem se deteriorando por causa da inflação e da desvalorização cambial.

Até o final da paridade peso-dólar, em 2001, o INCAA chegava a financiar o correspondente à metade do orçamento dos filmes. Com a desvalorização do peso e a escalada inflacionária, esse número passou a equivaler a 20%. Ainda assim, a quantia permitia a busca por outras formas de financiamento, mesmo fora do país.

Setor cultural da Argentina vive momento de crise com políticas do governo Milei. Foto: Carolina Marins/Estadão

“A partir de uma certa base [de financiamento local] é que se pode sair em busca de parcerias de coprodução”, diz a produtora Vanessa Ragoni, ganhadora do Oscar por O Segredo de seus olhos (2001). Ragoni considera que o maior impacto das mudanças estariam no fim da produção independente, carro-chefe do audiovisual local.

O país vem, desde 2016, produzindo mais de 200 filmes por ano, com exceção dos anos da pandemia. “Sem o INCAA, as coproduções não serão mais realizadas”, afirma Liliana Mazure, que presidiu o instituto entre 2008 e 2013, durante o governo Cristina Kirchner.

Os diretores e produtores Marcelo Schapces e Hugo Castro comparam o desfinanciamento do INCAA não à paralisação da Ancine no governo Bolsonaro, mas ao fim da Embrafilme, estatal que concentrava todos os processos da produção de cinema. “É muito parecida com o que aconteceu no Brasil com Collor de Mello”, afirma Castro. “O cinema argentino como marca vai desaparecer”, afirma Schapces.

Além de financiar e regular a produção, o INCAA é responsável também pela “Escuela Nacional de Experimentación y Realización Cinematrográfica” (ENERC), gratuita, pela qual passaram importantes nomes, como a diretora Lucrecia Martel.

O meio cultural tem atuado no Legislativo, nas redes e se fará presente na Greve Geral desta quarta-feira, 24. No último fim de semana, circulou um abaixo-assinado firmado por mais de 300 profissionais do audiovisual, entre eles o cineasta Pedro Almodóvar e o ator Gael García Bernal, em defesa do setor.

Circulou também um vídeo que contou com o ator Ricardo Darín. “Não são privilégios, são direitos”, afirmou o protagonista de Argentina 1985. Ganhador de 15 prêmios, entre os 20 a que foi indicado, o filme foi o 10º mais visto no país em 2023.

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