Instinto Materno, o novo filme de Anne Hathaway e Jessica Chastain em cartaz nos cinemas, não esconde que poderia ser melhor do que é. O longa foi dirigido e filmado em 24 dias pelo estreante na função Benoît Delhomme, que caiu no projeto de paraquedas. Ou melhor, sem paraquedas, como ele mesmo definiu em entrevista ao Estadão.
Experiente como diretor de fotografia, com títulos como A Teoria de Tudo (2014), O Menino do Pijama Listrado (2008) e O Mercador de Veneza (2004) entre os cerca de 40 que já filmou, esta foi a primeira vez que uma produção esteve totalmente sob o comando dele. Um tanto em função do acaso e, na realidade, nem tanto sob o comando.
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A história de Alice (Jessica Chastain) e Celine (Anne Hathaway), as duas mães da década de 1960, amigas e vizinhas, devastadas pela morte precoce do filho de uma delas, tem origem no livro de mesmo nome da escritora belga Barbara Abel. A saga de culpa, luto e suspeitas já foi adaptada para o cinema em 2018, pelo diretor também belga Olivier Masset-Depasse. Era ele quem faria a refilmagem americana, mas precisou deixar o projeto.
Delhomme já estava escalado como diretor de fotografia. “Três dias antes do início das filmagens, Anne e Jessica, disseram: Benoît, se você não fizer, o filme vai colapsar. Se aceitar dirigir também, poderemos seguir em frente’”, revelou. Obviamente, ele disse que sim. “Eu precisava aproveitar a oportunidade”, reconhece.
Este foi um dos motivos do cronograma apertado. A equipe tinha 24 dias de agenda para fazer o filme acontecer, e ele se lançou ao trabalho. Entretanto, Delhomme afirma ter deixado muito das decisões criativas para as próprias atrizes, que ele descreve como cineastas, e ambas donas de um Oscar cada.
“Elas conhecem a personagem melhor do que você como diretor, porque elas já vêm vivendo com essa mulher talvez por meses. Elas sabem como contar uma história”, afirma. Para ele, era mais importante indicar aos atores a estrutura das cenas do que efetivamente dizer-lhes o que fazer.
Essa confiança de ter a personagem consolidada no próprio imaginário emerge quando Chastain fala de Alice, inclusive no contexto de repressão feminina da década de 60. “Eu sempre a vi como uma leoa, então eu nunca senti que precisaria reduzir a minha própria força para interpretá-la”, disse em entrevista em vídeo à edição britânica da revista Elle.
Esforço de equipe
Habitualmente por trás das lentes, Delhomme diz já ter visto muitos diretores interferirem demais no trabalho de atores, ditando exatamente o que queriam na tela. A abordagem dele foi diferente, mais humilde, como ele classifica.
“Eu tive dois dias de preparação para esse filme. Não cheguei no primeiro dia como se eu fosse um grande diretor. Cheguei dizendo ‘vamos fazer isso juntos’”, explica. Mas havia um pensamento recorrente de autoafirmação: “Vou provar a eles que sou um diretor dia após dia.”
Uma vantagem de acumular as duas funções, tanto na direção quanto operando a câmera, é a de não necessitar dar instruções ao outro profissional. O diálogo técnico estava todo dentro da própria cabeça. “Foi mais fácil para mim. Eu podia falar sozinho: ‘Benoît-câmera: pode fazer isso? Benoît-diretor, pode fazer aquilo?’”
Proximidade com as atrizes
Delhomme é um artista dentro e fora do set. Em casa, dedica-se à pintura, dom que por um tempo preferiu deixar oculto — mesmo que a atividade complemente a cinematografia com o domínio do enquadramento. No Instagram, brinca com desenhos, ilustrações e inscrições tipográficas, que faz em cadernos de anotação, fotografa e posta.
E embora assumisse a posição mais estratégica de configurar os quadros no set, ele diz que sempre foi além. “Sinto que como um operador de câmera eu não estava interessado apenas na iluminação e no enquadramento, mas também em contar a história. Eu me aproximava dos atores”, confidencia.
Foi assim que estabeleceu a ligação com Chastain, com quem ele conta já ter trabalhado diversas vezes. Uma delas, no filme Salomé (2013). A aproximação com Hathaway foi semelhante, quando ele a capturou em One Day (2011). Agora a experiência era diferente, mesmo no passado já tendo precisado construir todas as tomadas para diretores.
Desta vez, tinha que falar com os atores não somente como um colega que reafirma uma cena bem feita, ou que aconselha a tentar de novo. Agora teria de conversar sobre as personagens, coisa que antes era até impedido de fazer.
Ele lembra que toda manhã tinha um diálogo interno. “Eu sou o diretor e esse é o meu filme. Os atores estão atuando para mim primeiro”, revela. “Portanto, é uma grande responsabilidade. Porque você tem de guiar os atores. Mesmo que trabalhe com grandes estrelas de cinema, elas ainda esperam que você as oriente”, diz.
Ao mesmo tempo em que Delhomme elogia Hathaway e Chastain, que são também produtoras do longa, as palavras dele sugerem um certo escrutínio sobre o trabalho. “Elas sabem exatamente o que querem fazer. Tenho certeza de que farão um filme como diretoras em breve, são muito inteligentes, são cineastas. Elas sabem se a câmera está em um bom lugar ou não.”
A perspectiva de Hathaway sobre Chastain reforça essa percepção. “Desde o primeiro dia, Jessica entrou em cena, completamente autossuficiente, e disse como [o filme] deveria ser. E eu a vi dar um passo após o outro para tornar isso realidade”, afirmou Hathaway, em entrevista ao canal Buzz, no YouTube.
O veterano das lentes chega a deixar entender que, embora coubesse a ele a função de dirigir, talvez o papel que desempenhou fosse dispensável. “Honestamente, elas são atrizes tão incríveis que eu acho que elas não precisam de um diretor”, afirma.
Recepção e críticas
Pode ser, porém, que justamente o punho do diretor tenha faltado e custado resultados preciosos que as premiadas atrizes pudessem entregar. O Estadão assistiu à película mesmo antes do lançamento e há uma carência em Instinto Materno. As protagonistas tentam, mas não conseguem alcançar a profundidade necessária das emoções complexas de trauma, remorso e medo.
Pintada inicialmente como um conto de duas famílias de propaganda de margarina, vivendo alegremente em um subúrbio confortável dos Estados Unidos, não demora muito para o peso da tragédia reverberar. Dali em diante, a trama vira um thriller, em que eventos suspeitos começam a acontecer e a sanidade de uma das mulheres é questionada.
Com um drama difícil de segurar e um suspense que demora a engatar, nem os contornos de terror que brotam com a reviravolta um tanto previsível convenceram o público e a crítica. No IMDB, o filme é avaliado com nota 6,6 de 10. O “tomatômetro” do Rotten Tomatoes dá apenas 56 de 100. E no Metacritic, a pontuação chega somente a 44 de 100. Esses, os principais sites de medição crítica do mundo.
O jornal The Guardian diz que o filme “não tem a autoconsciência necessária para evitar que seja totalmente absurdo”. Já a revista Variety chama a refilmagem de “psicodrama suburbano desleixado” capaz de causar risos.
‘Não é culpa minha’
Com os recursos escassos, Delhomme acabou por se apoiar nessa maturidade das atrizes para ganhar tempo nas gravações e terminou por não colocar tanto de si. Ele revela que com tão poucos dias para filmar todo o roteiro, precisou ser rígido no set e não desperdiçar as únicas duas tomadas por cena que poderia fazer para não estourar o cronograma.
Mesmo com tudo acontecendo tão rápido, ele diz não se arrepender de ter aceitado “o envelope” como ele veio. No caso, a proposta de dirigir nessas condições. “Eu tive de pular de um penhasco sem paraquedas. Sempre fui muito instintivo, posso mudar os planos muito rapidamente. Se vejo que os atores oferecem algo melhor, eu aposto nisso”, afirma.
Ele considera que, de uma próxima vez, não quer trabalhar com uma agenda tão corrida. Mas disse que a empreitada foi positiva também para os atores, que precisavam entregar as melhores performances logo de cara, mesmo com pouco ensaio.
“Eu amaria fazer 10 ou 15 tomadas, ou 50, como David Fincher, mas não sou David Fincher, não tenho três meses para fazer o filme. Isso dá uma urgência muito interessante no set. Também para as atrizes. Acho que dá algo especial a esse filme”, defende. Mas admite: “Eu gostaria de ter tido mais tempo.”
O prazo limitado, no entanto, foi libertador para ele em um sentido. “Dão-me esse trabalho super difícil para fazer funcionar, sem preparação. Então, se eu falhar, de certa forma não é culpa minha”, afirmou. E talvez nem dê mesmo para discordar.