A francesa Julia Ducournau, que conquistou neste sábado, 17, a Palma de Ouro do Festival de Cannes pelo filme Titane, é uma cineasta singular e ousada, fascinada pelos processos de transformação do corpo e cujo cinema transgressor é repleto de feminismo.
Antes de Titane, obra mais violenta em competição neste ano, a diretora, 37 anos, já havia sacudido o festival em 2016, com sua obra-prima, Raw, sobre uma estudante de veterinária que se convertia em canibal. "Um dos meus objetivos foi trazer o cinema de gênero ou os filmes 'ovni'aos festivais em geral, para deixar de marginalizar parte da produção francesa", disse Julia dias atrás.
Raw foi proibido para menores de 16 anos e causou desconforto durante a exibição na Croisette, devido a cenas sangrentas, como a de um corpo parcialmente devorado. Em Titane, não há cenas desse tipo, mas sim momentos de grande violência, como quando a protagonista se mutila no rosto ou faz sexo com um carro.
Nada nessa jovem cineasta, de aparência serena e trajetória intelectual, sugere um universo assim, à beira do "sangue". Mas essa filha de médicos cinéfilos era fascinada desde criança por esses aspectos de transformação do corpo humanos. “Desde pequena, ouço meus pais falarem sobre medicina sem tabus. Era a rotina deles. Eu bisbilhotava seus livros”, contou, na época do lançamento de Raw. Para ela, "a morte e a decomposição são normais".
De Edgar Allan Poe a Cronenberg
Influenciada pelo cinema de David Cronenberg, Brian de Palma, Pier Paolo Pasolini e do sul-coreano Na Hong-jin, essa fã dos filmes de gênero confessa que o filme de terror O Massacre da Serra Elétrica, ao qual assistiu escondida aos 6 anos, marcou-a, além da leitura de Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe.
Nascida em Paris, Julia Ducournau tem formação literária. Formada em letras modernas e inglês, ela começou no cinema em 2004, estudando roteiro na capital francesa. Em suas primeiras obras, já tratou de temas de mutação física. Seu curta Junior (2011), selecionado na Semana da Crítica do Festival de Cannes, mostra a metamorfose de um adolescente.
“Durante os estudos, fiz um curta sobre uma menina que se coçava até ficar com um buraco na testa. Foi a primeira vez que usei efeitos especiais”, um universo que ela consagra em Titane, com uma encenação cuidadosa. "É uma grande cineasta, não é preciso cortar nenhum plano", disse Gilles Jacob, ex-delegado geral do Festival de Cannes, após seu primeiro filme.