O papo com o roteirista de cinema e escritor Lusa Silvestre - feito via aplicativo Zoom - começa pelas vantagens e desvantagens sobre o home office. Coincidentemente, este foi o tema de uma crônica que ele escreveu para seu blog no E+, em 2017, bem antes da modalidade ser imperativa para parte da população com a chegada da pandemia de coronavírus, em 2020.
Lusa, que nesta quinta, 11, estreia como colunista do Estadão (os textos vão ser publicados quinzenalmente - às quintas no portal e às sextas no jornal impresso), não é entusiasta do trabalho remoto. Para escrever seus roteiros e crônicas, considera que a convivência é essencial. Seja num papo ao pegar um café no ambiente de trabalho ou na academia. “Caso contrário, começamos a ter uma impressão da sociedade por meio das mídias sociais. Começamos a ser pautados pelos algoritmos. E a vida não é algorítmica”, diz, sem titubear.
Outros textos de Lusa Silvestre
Responsável pelo roteiro de filmes como O Sequestro do Voo 375, Amigas de Sorte, O Silêncio da Chuva, E Aí... Comeu? e Medida Provisória, entre outros, ele trabalha, no momento, em 12 outros projetos - e aguarda o lançamento de Estômago 2 - O Poderoso Chef, do diretor Marcos Jorge, previsto para chegar aos cinemas em agosto e que acaba de ser selecionado para a mostra competitiva do Festival de Gramado.
Lusa assina novamente o roteiro, depois de 16 anos do primeiro, e tem um carinho especial pelo filme. Foi sua estreia no cinema, com uma produção desenvolvida a partir de um conto que ele havia escrito anos antes - e trata de gastronomia, outra paixão de vida.
Desta vez, Estômago vai acrescentar um tema que, aparentemente, parece distante do original: a máfia italiana. Também apara algumas arestas, como a questão das mulheres na história que tem o cozinheiro Raimundo Nonato, papel do ator João Miguel, como personagem central.
Em 2017, você escreveu uma crônica para o ‘Estadão’ sobre seu início de experiência com o trabalho remoto. Foi antes da pandemia impor ou oferecer essa possibilidade para as pessoas. De lá para cá, qual é a sua conclusão?
Eu preciso sair mais. Em resumo, eu não curto, não. Uma coisa é você acordar, tomar café da manhã e ir para algum lugar. Você pega trânsito, você chega lá, você toma um café, conhece pessoas, conversa... Você vê a vida acontecer. No home office, você não vê a vida acontecendo. Quando escrevo um roteiro, sempre fico muito absorvido. É muito comum eu não pisar na calçada na frente da minha casa. E tem a dificuldade de eu entender a que horas acabou o dia. Porque [quando você sai para trabalhar] tem o rito de passagem quando você volta para casa. No home office não. Além disso, você não vê gente. Vejo as pessoas virtualmente. E tem as coisas banais. Por exemplo: eu não tenho roupa, basicamente. Eu tenho dois tipos de roupa - a de sair, que é 5% do meu armário, e o resto. E esse resto é muito amplo. Os pijamas conceituais, por exemplo. Sabe aquela história dos anos 1950, que o cara chegava e a mulher estava cheirando gordura em casa, mal vestida? Esse sou eu. Uso qualquer motivo para sair. Vale até academia, que não me dá muito prazer, embora entenda a necessidade. A academia virou um lugar onde eu convivo. O ser humano é um ser social. O home office, se for dois dias em cinco, é legal. Se for cinco dias em cinco, não é.
Para seu trabalho, ver gente, sair, conviver é importante?
É superimportante. Caso contrário, começamos a ter uma impressão da sociedade por meio das mídias sociais. Começamos a ser pautados pelos algoritmos. E a vida não é algorítmica. As coisas que estamos vivendo agora ainda não foram capturadas pelo algoritmo. Pode ser que semana que vem elas sejam. É por isso que os roteiristas mais veteranos são os melhores. Para escrever sobre a vida, você tem que ter vivido um pouco. E essa vida não se dá por meio da tela do computador, seja nas mídias sociais ou no Zoom. É muito importante que quem trabalha com conteúdo de entretenimento saia de casa, viaje, vá para outros lugares, para o mato.
Você escreve crônicas e vai escrevê-las para o ‘Estadão’. Vivemos em tempos de vídeos e textos curtos, feitos para uma audiência específica das redes sociais. Nesse contexto, qual a função da crônica atualmente?
A função da crônica sempre foi, por meio desses cronistas que têm o olhar mais apurado, perceber onde está a emoção, o afeto e o lirismo das histórias. Nós sempre precisamos de cronistas, sabe? O [Giovanni] Boccaccio era cronista. O Machado de Assis era cronista. Dessa forma, a crônica constrói um pouco a literatura. Apesar de ser um gênero literário menos aceito, tratado até como uma certa desimportância, tivemos cronistas maravilhosos que ajudaram a moldar a alfabetização de muita gente. O Luis Fernando Verissimo, por exemplo, é um cronista maravilhoso. Se eu não tivesse lido Verissimo, eu jamais teria escrito roteiros. Eu acabei de ler Os Sabiás da Crônica (Autêntica). São seis cronistas juntos - Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Stanislaw Ponte Preta e José Caros Oliveira. Cronistas com atuação nas décadas de 1950, 1960 e um pouco menos na década de 1970. O que eles trazem nos textos, além de ser um retrato dessas épocas, são motivações humanas muito parecidas com as que temos agora. Então, ao longo dos séculos, continuamos falando das mesmas coisas, só que em textos mais ligeiros. No meu caso, a crônica é algo que me encanta porque eu consigo começá-la e terminá-la no mesmo dia. Evidentemente, sou um cara que burila muito o texto. Então, eu escrevo, reescrevo e reescrevo. Se fosse um texto muito grande, eu não conseguiria fazê-lo. A crônica é vital para entendermos a realidade e a retrata de maneira rápida.
Você busca temas nas redes sociais?
Às vezes, busco tema em restaurante, o que escuto da mesa do lado. Às vezes, meus filhos [Silvestre é pai de dois filhos, de 23 e 24 anos] trazem algum tipo de demanda que eles ouviram nos lugares - e a nossa família, que janta junto quase todo dia, discute. Às vezes, me pauto muito também pelas matérias de jornal que leio. Eu, pessoalmente, tenho para mim que jornalismo é uma profissão extremamente nobre. Por isso, me agrada tanto escrever no Estadão. E uma das nobrezas do jornalismo é trazer questões. Recentemente, escrevi um texto sobre o [Franz] Kafka cancelado...
Teve bastante repercussão..
Ah, tem sido um sucesso, o que é uma coisa muito ruim. Eu sou músico também, tenho banda. Quando você vai fazer um show para muita gente, você olha para aquela multidão e a encara como um corpo só, entendeu? Quando vou escrever uma crônica, também encaro um corpo só, uma multidão só. E procuro depois não ler muito as repercussões porque as mídias sociais trazem esse tipo de gente. Não quero ter 18 mil compartilhamentos. Eu quero agradar, a princípio, vocês que estão me lendo no jornal, que eu sei que vão me ler. Se vocês gostarem, está bom. Se o público não gostar... Hoje em dia, eu sinto que os cronistas escrevem muito para ter uma atração. Eles escrevem muito para que o texto seja compartilhado, para suscitar discussões, polaridades e violências. Pretendo não me pautar por isso. Eu quero escrever sobre temas que eu acho importantes e me divertir. E levar leveza para quem vai ler. Acho que as pessoas já têm tudo muito problematizado hoje.
Nesse mundo de polarizações e violências, onde está a leveza?
A leveza está em você pegar um tema, que pode ser até violento, e tratar de um jeito bem humorado. Tentando suavizar isso. Mas o principal é tratar com bom humor. Isso não diminui a importância, não diminui a relevância, nem a agudeza de alguma crítica que faço. Mas procuro fazer com humor. E sem querer lacrar. Eu não escrevo buscando likes e compartilhamentos. Se acontecer é porque tem muita gente que concorda ou discorda de mim. E tem muita gente que discorda de mim e que também compartilha. Há alguns anos, escrevi um texto que era meio bobinho na época. Escrevi que mulher é que nem onda. Para achar as melhores, você tinha que passar a arrebentação. Eu não sei se eu faria esse título hoje. Quis dizer que do mesmo jeito que você encontra as melhores ondas lá no fundo, depois da arrebentação, você encontra o melhor das mulheres. Era a percepção de passar pela bumpy road [algo como uma estrada cheia de percalços]. Esse texto teve bastante repercussão também. Mas uma das críticas que eu recebi foi: “acordar de manhã e já ver um texto desse? Tomara que o cronista morra”. Isso entra por um ouvido e sai pelo outro. Porque eu escrevi um filme chamado E aí, Comeu? que teve três milhões de espectadores. Se 1% dessas pessoas não gostarem do filme, já seria um hating maravilhoso. Por isso, me blindo. Eu não estou muito aí para eles [os haters]. Eu só quero escrever um texto legal. Eu não penso em lacração. Jamais!
Isso se aplica tanto na crônica quanto nos roteiros que você faz para os filmes?
Atualmente, meus filmes têm objetivos. Eles têm business plan [plano de negócios] por trás deles. Então, procuro escrever considerando os business plans. Se for uma coisa muito autoral, eu quero que seja foda. O Estômago 2, por exemplo, fizemos de maneira independente. Não teve canal querendo dar nota. Esse filme é uma coprodução italiana. Os produtores italianos também não passaram notas dizendo “esse personagem não têm arco”. Fizemos como queríamos. E o resultado vai estar na tela. Acho que ficou um bom filme. Quando faço um filme com dono [produtora ou streaming], eu já penso para qual prateleira ele vai. Se é uma comédia, é de um jeito. Horror, de outro. Hoje pela manhã, antes de a gente conversar, eu estava tratando de uma distopia com produtores. A distopia tem suas regras de jogo que precisamos obedecer. Tem convenções do gênero que não são clichês, mas sim convenções. Filme de horror, por exemplo, tem sempre criança. Não sei por que, mas dá medo. Se a história puder se passar em casa, é pior [para o espectador] porque é onde ele se sente seguro. Normalmente também tem um mago, um pajé ou uma bruxa velha que explica como é que faz pra matar o monstro. São alguns tipos de pilares que precisamos seguir.
Você falou sobre ‘Estômago 2 - O Poderoso Chef’. O que você pode adiantar sobre ele?
É um filme que flerta com um gênero superclássico, mas não é muito comum para o brasileiro, que é a máfia. A metade italiana é sobre a máfia. A metade brasileira é sobre prisão. Eu acho que ficou muito legal. Sinceramente. E eu sou muito crítico. Ficamos muito tempo escrevendo, finalizando, montando, botando o som...É um filme que vai corresponder à expectativa. Do ponto de vista autoral, é muito legal você voltar a um personagem criado em 2003 e apresentar algo novo. Vai ter crítica positiva e negativa, mas, assim: se um roteirista ou um cronista se preocupa muito com as críticas negativas, ele muda de profissão. Vai ser outra coisa. Porque, mesmo na crônica, abrimos o peito e falamos o que achamos.
As críticas a ‘Estômago 2 - O Poderoso Chef’ são previsíveis? Você já consegue identificá-las?
Acho que sim. Muitas vezes eu erro muito nisso também, sabe? Em O Sequestro do Voo 375 [filme do qual ele também é roteirista], eu achava que viriam críticas por uma questão específica. Mas ninguém falou sobre o assunto [Silvestre prefere não expor]. Sobre Estômago 2, as principais críticas que virão são algo como “o primeiro era melhor” ou “por que fizeram esse filme de novo?”. Em O Estômago [1] criticaram um pouco a posição da mulher. Porque ela é puta - e só tinha puta no filme. No segundo, isso está bem resolvido. Tem uma mulher que é protagonista. Mas, quando a gente começa a mexer com mulher e empoderamento, sempre vai ter alguém que vai encher o saco. Então, talvez venha daí uma crítica. Eu acompanho as críticas de todos os filmes. Concordo com algumas. Com outras, não. Às vezes, acho que os críticos atuais são muito blogueiros. Há muita ingenuidade. E pode ser que essa ingenuidade atrapalhe a chegada do filme.
‘Estômago 1′ fez uma trajetória interessante. Ele é de 2007, mas permaneceu. E foi sendo redescoberto ao longo do tempo. Foi isso que levou vocês a criar essa continuação?
Não sei te responder. Eu sou muito amigo do diretor, do Marcos Jorge. Fomos comer uma pizza e ele veio com essa ideia. Eu não deixei nem ele acabar de falar. Porque eu gosto muito do universo gastronômico. Eu cozinho bem, a minha mulher cozinha bem. Esses dias fizemos penne com ragu de ossobuco. Nos metemos com coisas importantes! Sendo assim, poder voltar a um filme de sucesso, retomar a parceria com atores que adoramos, falando de comida, 16 anos depois, é um privilégio.
Você já tinha essa continuação na cabeça? Ao longo dos anos, tinha desenvolvido uma ideia da sequência de ‘Estômago’?
Não, eu nunca tinha pensado nisso. Não sou muito de voltar. Já fiz, terminei, pronto e vamos para o próximo. Estômago foi o meu primeiro filme, e foi um puta sucesso. A minha missão era ter um pôster na parede para mostrar para os meus filhos e falar assim: ‘estão vendo? O papai já fez isso, agora vão tomar banho”. Era só isso que eu queria. Foi um deslumbramento. De certa maneira, a continuação encerra um ciclo, sabe ? Porque fizemos Estômago em 2007, e agora, depois de 18 longas, talvez ele encerre um ciclo. Talvez a partir dele eu faça outros tipos de filme, talvez eu deixe de ser roteirista para ser mais produtor. Escreva menos e trabalhe mais com o Estadão. Eu gosto muito de rádio, por exemplo, talvez eu vá trabalhar mais em rádio. Um dia quero ter um clube de jazz - há poucos em São Paulo. Encaro Estômago 2 meio como um fim de ciclo. Não sei o que isso significa também. Espero que algum orixá me ilumine sobre isso.
Você está dizendo que vai deixar ou está quase deixando os roteiros, é isso?
Não, não acho isso. Até porque eu tenho um monte de encomenda. Preciso entregar todos esses filmes. Eu perdi um pouco o controle. Tenho uma dúzia de projetos em diferentes estados de maturação. Acho que esse fim de ciclo talvez signifique me mudar para o interior ou para Ubatuba. Eu gostaria de fazer menos filmes para ter um pouco mais de qualidade de vida. Quero dormir melhor. Eu me perco com frequência. Tenho que ir para algum lugar e vou para outro. Costumo dizer que isso ocorre porque tenho muitos personagens na cabeça. E tenho mesmo! Se cada filme tem 10 personagens - e eu já fiz 18 - , no mínimo, inventei 180 personagens. Quero continuar a escrever roteiros por muito anos.