Pense numa revisão de William Shakespeare. Otelo como seu Iago, sem necessidade do amigo (?) que lhe insufle no ouvido a dúvida sobre a fidelidade de Desdêmona. O filme é Touro Indomável/Raging Bull. Touro raivoso. O maior Martin Scorsese, que volta neste fim de semana (sábado, 25, e domingo, 26) nos clássicos restaurados da rede Cinemark, com direito a exibição suplementar na quarta que vem, 29. Scorsese já havia recebido a Palma de Ouro por Taxi Driver. Criara, com a complicidade de Robert De Niro, aquele momento antológico. Travis, o motorista de táxi, diante do espelho, repetindo a pergunta até torná-la ininteligivel - 'Are you talking to me/ 'talking to me? 'me?'
Scorsese e De Niro já haviam sido parceiros - em Caminhos Perigosos, Taxi Driver, New York New York. Continuariam sendo em O Rei da Comédia, Os Bons Companheiros, Cabo do Medo, Cassino. Mas algo se passou quando eles fizeram Touro Indomável e não foi por acaso que De Niro, tantas vezes indicado para o prêmio da Academia, finalmente ganhou seu Oscar pelo papel do pugilista Jake La Motta. O cara é o touro raivoso. Destroi os oponentes no ringue. Fora dele, destrói-se, consumido por um ciúme patológico. Não adianta a mulher jurar fidelidade. Jake, com aquele Iago dentro dele, acredita que ela o trai. E é a ruína de ambos.
De Niro adquiriu massa física para criar o personagem e, nas cenas finais, está irreconhecível, de tão gordo e com a cara arrebentada por anos de golpes certeiros. Tão difícil quanto a transformação física deve ter sido, para ele, o esforço para criar um (anti)herói que, no limite, não é nem um pouco simpático para o espectador. Tal como ele surge no roteiro de Paul Shrader, e na realização vigorosa de Scorsese, Jake chega a ser antipático. Um filme não precisa de vilão quando o mocinho faz de tudo para se (auto)destruir. No processo, destrói os outros ao redor - os que o amam. Só que o homem violento, o antipático, o raivoso, busca as compreensão e até a compaixão do espectador. Jake não luta mais, lá pelas tantas, por glória. Luta contra o que o consome, o que odeia. Luta pela graça.
Tanto Scorsese quanto Shrader são cinéfilos de carteirinha. Passaram-se 34 anos desde que fizeram Touro Indomável, em 1980. Já eram parceiros, e a colaboração artística terminou porque Shrader, que não trilhava mais o caminho de Scorsese, achou que seria melhor tentar preservar a amizade. O roteiro é forte, a direção, raivosa (como La Motta), a interpretação (de De Niro), antológica. Tudo isso é verdade, mas não se pode deixar de assinalar duas grandes virtudes de Touro Indomável. A montagem de Thelma Shoonmaker e a fotografia, em preto e branco, de Michael Chapman, ambas vencedoras do Oscar. Nenhum outro filme, e obras-primas foram feitas sobre pugilismo, colocaram a gente com essa intensidade dentro do ringue. A impressão é de que nós, o público, poderemos ser atingidos por aqueles socos. No final, é possível que você se pergunte - mas qual é mesmo o tema de Scorsese em Touro Indomável? A obsessão, a graça, a violência? Mesmo se não chegar a conclusão nenhuma, você estará chapado. Se Touro Indomável é mesmo o maior Scorsese, é por essa experiência rara que proporciona de viajar na mente enferma (conturbada?) de um homem que pensa com os punhos.