Marieta Severo: ‘Falar de Alzheimer, memória e afeto é necessário’


Atriz de 77 anos estrela ‘Domingo à Noite’, filme sobre mulher que se isola para cuidar do marido com Alzheimer e começa a perceber nela mesma os sinais da doença

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Marieta Severo define-se como uma mulher atenta aos sinais. “Não aos sinais de religiosidade, mas aos sinais que a vida nos emite.” Foi assim quando recebeu o roteiro de Domingo à Noite, que estreia nesta quinta-feira, 4. “Estava naquele momento difícil. No começo da pandemia, havíamos nos isolado num sítio. Aderbal (o diretor de teatro Aderbal Freire Filho, seu parceiro na arte e na vida, que morreu em agosto de 2023), filhos, netos, todo mundo.”

“O Aderbal foi ao Rio, teve um AVC e começou o pesadelo. O estado dele foi deteriorando, não conseguia mais se comunicar. Foi quando me chegou o roteiro. A mulher que se isola para cuidar do marido com Alzheimer, ela própria que é diagnosticada com a síndrome. Aquilo me bateu – o que a vida está querendo me dizer? Por que, nesse momento, esse papel? Embarquei!”, conta hoje, aos 77 anos.

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Vale falar um pouco nesse roteiro. Para Bruno Gil Gonzalez, ele começou a nascer em 2011/12. “Ainda nem era roteirista. Nasceu meu primeiro filho, e no mesmo período meu avô estava morrendo. O Alzheimer é muito cruel. Toda doença é dolorosa, mas essa atinge muito a família toda. Logo em seguida foi minha avó quem ficou doente. Quando virei roteirista, aquilo tudo voltou. Era uma história que eu queria, que precisava contar.”

A atriz Marieta Severo, na pré-estreia do filme, na Cinemateca Brasileira Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Bruno enviou o roteiro à produtora Márcia Nepomuceno. Ela lhe deu retorno quase imediato, dizendo que achava quem iria se interessar. O diretor André Bushatsky – outro jovem – entrou no esquema. “O roteiro me cativou porque, para além da doença, aborda temas que me interessam muito. O tempo, a memória, o afeto.” André fez o documentário Um Pouco de Mim, Um Pouco de Nós (2023), que revisita a 2ª Guerra Mundial pelo ângulo de depoimentos de sobreviventes do Holocausto.

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O trio começou a trabalhar. De cara, uma ideia se impôs. Quem poderia fazer o papel? Marieta! Todo o elenco foi montado em torno dela. A matriarca, atriz, Margot. O marido, Antônio, escritor, vivido por Zé Carlos Machado. A filha, também atriz, Natália Lage. O filho, o único que não pertence ao mundo da arte, mas ao mercado financeiro, Johnnas Oliva.

“Tivemos alguns encontros, eu dei algumas sugestões. Não tivemos preparação de elenco.” A produção avançou, a locação foi escolhida, e era a casa de Hélio Pellegrino Filho, no Alto da Gávea. Uma casa que parecia um museu, cheia de objetos de arte. “Eu havia transformado minha casa num hospital, para poder cuidar do Aderbal. E o curioso é que a locação ficava a não mais de 5 minutos da minha casa. Podia dar umas corridinhas até lá para ver se estava tudo bem.”

Zé Carlos havia sofrido uma covid grave. “Curei-me naquela casa maravilhosa. Para mim foi um repouso.” Embora a história, os temas, fossem duros, difíceis – até tristes, a finitude humana -, o clima no set era ameno. Marieta traduz: “Todo mundo na mesma vibe, pegando junto. Todos muito profissionais, mas também comprometidos, se ajudando”.

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Marieta Severo e Zé Carlos Machado em 'Domingo À Noite'. Foto: Christian Rodrigues/Divulgação

Comprometimento é uma palavra que bate fundo em Marieta. “Essa história talvez ressoasse em mim de forma diferente, pela particularidade do momento que vivia. Mas a memória, o afeto são temas universais, todo mundo podia se identificar com a disfuncionalidade daquela família.” Embora o filme seja profundamente – pungentemente – humano, Marieta destaca uma dimensão política. “Falar sobre memória é muito importante nesse País.”

E ela prossegue, agora dirigindo-se ao repórter. “Você também atravessou os anos da ditadura. Sabe o horror que foi. Mas hoje tem gente mistificando e que se vale da falta de memória coletiva para vender uma falsa fábula. É preciso lembrar, lembrar para que os jovens, principalmente, não sejam arrastados a uma aventura que pode ser terrível.”

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Foco no cinema

Com o mesmo empenho com que fez Domingo à Noite, Marieta participa da divulgação - ela conversou com a reportagem em São Paulo. “Tenho viajado muito, e não somente com o filme. Minha casa foi durante tanto tempo um hospital. Está voltando a ser uma casa, a minha casa.” O cinema, que já lhe deu tanta satisfação, está de novo em sua vida. “Tenho outro filme para estrear até o fim do ano, estou em quatro roteiros em fase de captação”, conta.

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Nada de televisão à vista. Sua prioridade atual é o cinema. “Já vivi tantas retomadas. Gosto de estar empenhada em mais essa. O cinema é mais que importante. Necessário. Nos retrata, permite o entendimento de nós mesmos.” Foi o que ocorreu com ela em Domingo à Noite. E o teatro? “Fiz uma peça para comemorar o aniversário do (Teatro) Poeira (no Rio). Foi uma experiência muito rica, mas também estranha. Não tenho nada programado agora.”

Tem a ver com a perda do companheiro? “Com certeza. Foram muitos de convivência, muitos sonhos compartilhados. Tínhamos projetos, ainda dói, sabe?” Marieta sorri, lembra outros encontros com o repórter. “Parece que a gente tem sempre de falar das mesmas coisas.”

Talvez seja uma lembrança do baú, mas lá atrás, nos anos 1960, a jovem Marieta foi a vilã – a Rata – de uma novela emblemática da época, O Sheik de Agadir. Nunca mais parou de atuar. Filmes, peças, novelas. Durante anos invadiu os lares brasileiros como a Nenê da série A Grande Família, na qual formou aquela dupla com o Lineu de Marco Nanini. A matriarca de Domingo à Noite tem algo de Nenê. “Claro, sou eu que faço!”

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Mas é mais. A mãe/mulher de Domingo à Noite procura estar no controle. As coisas estão desmoronando, mas ela repete, como um mantra que “vai ficar tudo bem”. Boa parte de seus conflitos com a filha, também atriz, vem desse choque de personalidades. A filha cobra da mãe nunca terem feito nada juntas, no palco. Na vida, Marieta é mãe de Sílvia Buarque, também atriz.

“Eu nunca interferi na carreira da Silvinha. Sempre foram escolhas dela. Nossa família é de artistas, não preciso nem lembrar.” E como seria possível esquecer? Durante anos, décadas, Marieta viveu aquela união com Chico Buarque. Pertencem, como dupla, à história. Cada um seguiu seu caminho e eles seguiram fazendo história no palco e na política - na linha de frente contra a ditadura militar e, mais recentemente, contra o governo Bolsonaro.

Marieta Severo posa na Cinemateca. em São Paulo, em evento de lançamento do filme 'Domingo à Noite'. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Domingo à Noite possui belas ideias de mise-en-scène. A casa de vidro não tinha cortinas, era toda transparente. “O André colocou todas aquelas cortinas que voltam a história para dentro. Não é um filme de paisagem.”

A ideia é que tudo se passe num fim de semana, com o fecho no domingo à noite. O filme não tem o perfil das comédias blockbusters que arrastam milhões de espectadores aos cinemas. “O comportamento do público mudou muito. Hoje, a maioria das pessoas talvez prefira ver aos filmes em casa. Mas é importante ver um filme como Domingo à Noite no cinema. Falar de Alzheimer, de etarismo, de memória, de afeto é necessário. A experiência cria um entendimento com a pessoa do lado.”

Ela segue: “Muita gente jovem, meus netos e os amigos de meus netos foram ver o filme e gostaram. O cinema tem disso. Provoca a empatia, independentemente de idade, de geração.”

Uma das melhores – a melhor? – cena do filme é quando os irmãos estão sozinhos no quarto e ela diz: “Não estou pronta para perder os dois.” O pai e a mãe. Apesar de todas as brigas, existe o afeto. Se os ‘velhos’ morrerem sem que o abismo seja transposto, sempre haverá um buraco que não poderá ser preenchido. A hora é agora.

Marieta Severo define-se como uma mulher atenta aos sinais. “Não aos sinais de religiosidade, mas aos sinais que a vida nos emite.” Foi assim quando recebeu o roteiro de Domingo à Noite, que estreia nesta quinta-feira, 4. “Estava naquele momento difícil. No começo da pandemia, havíamos nos isolado num sítio. Aderbal (o diretor de teatro Aderbal Freire Filho, seu parceiro na arte e na vida, que morreu em agosto de 2023), filhos, netos, todo mundo.”

“O Aderbal foi ao Rio, teve um AVC e começou o pesadelo. O estado dele foi deteriorando, não conseguia mais se comunicar. Foi quando me chegou o roteiro. A mulher que se isola para cuidar do marido com Alzheimer, ela própria que é diagnosticada com a síndrome. Aquilo me bateu – o que a vida está querendo me dizer? Por que, nesse momento, esse papel? Embarquei!”, conta hoje, aos 77 anos.

Vale falar um pouco nesse roteiro. Para Bruno Gil Gonzalez, ele começou a nascer em 2011/12. “Ainda nem era roteirista. Nasceu meu primeiro filho, e no mesmo período meu avô estava morrendo. O Alzheimer é muito cruel. Toda doença é dolorosa, mas essa atinge muito a família toda. Logo em seguida foi minha avó quem ficou doente. Quando virei roteirista, aquilo tudo voltou. Era uma história que eu queria, que precisava contar.”

A atriz Marieta Severo, na pré-estreia do filme, na Cinemateca Brasileira Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Bruno enviou o roteiro à produtora Márcia Nepomuceno. Ela lhe deu retorno quase imediato, dizendo que achava quem iria se interessar. O diretor André Bushatsky – outro jovem – entrou no esquema. “O roteiro me cativou porque, para além da doença, aborda temas que me interessam muito. O tempo, a memória, o afeto.” André fez o documentário Um Pouco de Mim, Um Pouco de Nós (2023), que revisita a 2ª Guerra Mundial pelo ângulo de depoimentos de sobreviventes do Holocausto.

O trio começou a trabalhar. De cara, uma ideia se impôs. Quem poderia fazer o papel? Marieta! Todo o elenco foi montado em torno dela. A matriarca, atriz, Margot. O marido, Antônio, escritor, vivido por Zé Carlos Machado. A filha, também atriz, Natália Lage. O filho, o único que não pertence ao mundo da arte, mas ao mercado financeiro, Johnnas Oliva.

“Tivemos alguns encontros, eu dei algumas sugestões. Não tivemos preparação de elenco.” A produção avançou, a locação foi escolhida, e era a casa de Hélio Pellegrino Filho, no Alto da Gávea. Uma casa que parecia um museu, cheia de objetos de arte. “Eu havia transformado minha casa num hospital, para poder cuidar do Aderbal. E o curioso é que a locação ficava a não mais de 5 minutos da minha casa. Podia dar umas corridinhas até lá para ver se estava tudo bem.”

Zé Carlos havia sofrido uma covid grave. “Curei-me naquela casa maravilhosa. Para mim foi um repouso.” Embora a história, os temas, fossem duros, difíceis – até tristes, a finitude humana -, o clima no set era ameno. Marieta traduz: “Todo mundo na mesma vibe, pegando junto. Todos muito profissionais, mas também comprometidos, se ajudando”.

Marieta Severo e Zé Carlos Machado em 'Domingo À Noite'. Foto: Christian Rodrigues/Divulgação

Comprometimento é uma palavra que bate fundo em Marieta. “Essa história talvez ressoasse em mim de forma diferente, pela particularidade do momento que vivia. Mas a memória, o afeto são temas universais, todo mundo podia se identificar com a disfuncionalidade daquela família.” Embora o filme seja profundamente – pungentemente – humano, Marieta destaca uma dimensão política. “Falar sobre memória é muito importante nesse País.”

E ela prossegue, agora dirigindo-se ao repórter. “Você também atravessou os anos da ditadura. Sabe o horror que foi. Mas hoje tem gente mistificando e que se vale da falta de memória coletiva para vender uma falsa fábula. É preciso lembrar, lembrar para que os jovens, principalmente, não sejam arrastados a uma aventura que pode ser terrível.”

Foco no cinema

Com o mesmo empenho com que fez Domingo à Noite, Marieta participa da divulgação - ela conversou com a reportagem em São Paulo. “Tenho viajado muito, e não somente com o filme. Minha casa foi durante tanto tempo um hospital. Está voltando a ser uma casa, a minha casa.” O cinema, que já lhe deu tanta satisfação, está de novo em sua vida. “Tenho outro filme para estrear até o fim do ano, estou em quatro roteiros em fase de captação”, conta.

Nada de televisão à vista. Sua prioridade atual é o cinema. “Já vivi tantas retomadas. Gosto de estar empenhada em mais essa. O cinema é mais que importante. Necessário. Nos retrata, permite o entendimento de nós mesmos.” Foi o que ocorreu com ela em Domingo à Noite. E o teatro? “Fiz uma peça para comemorar o aniversário do (Teatro) Poeira (no Rio). Foi uma experiência muito rica, mas também estranha. Não tenho nada programado agora.”

Tem a ver com a perda do companheiro? “Com certeza. Foram muitos de convivência, muitos sonhos compartilhados. Tínhamos projetos, ainda dói, sabe?” Marieta sorri, lembra outros encontros com o repórter. “Parece que a gente tem sempre de falar das mesmas coisas.”

Talvez seja uma lembrança do baú, mas lá atrás, nos anos 1960, a jovem Marieta foi a vilã – a Rata – de uma novela emblemática da época, O Sheik de Agadir. Nunca mais parou de atuar. Filmes, peças, novelas. Durante anos invadiu os lares brasileiros como a Nenê da série A Grande Família, na qual formou aquela dupla com o Lineu de Marco Nanini. A matriarca de Domingo à Noite tem algo de Nenê. “Claro, sou eu que faço!”

Mas é mais. A mãe/mulher de Domingo à Noite procura estar no controle. As coisas estão desmoronando, mas ela repete, como um mantra que “vai ficar tudo bem”. Boa parte de seus conflitos com a filha, também atriz, vem desse choque de personalidades. A filha cobra da mãe nunca terem feito nada juntas, no palco. Na vida, Marieta é mãe de Sílvia Buarque, também atriz.

“Eu nunca interferi na carreira da Silvinha. Sempre foram escolhas dela. Nossa família é de artistas, não preciso nem lembrar.” E como seria possível esquecer? Durante anos, décadas, Marieta viveu aquela união com Chico Buarque. Pertencem, como dupla, à história. Cada um seguiu seu caminho e eles seguiram fazendo história no palco e na política - na linha de frente contra a ditadura militar e, mais recentemente, contra o governo Bolsonaro.

Marieta Severo posa na Cinemateca. em São Paulo, em evento de lançamento do filme 'Domingo à Noite'. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Domingo à Noite possui belas ideias de mise-en-scène. A casa de vidro não tinha cortinas, era toda transparente. “O André colocou todas aquelas cortinas que voltam a história para dentro. Não é um filme de paisagem.”

A ideia é que tudo se passe num fim de semana, com o fecho no domingo à noite. O filme não tem o perfil das comédias blockbusters que arrastam milhões de espectadores aos cinemas. “O comportamento do público mudou muito. Hoje, a maioria das pessoas talvez prefira ver aos filmes em casa. Mas é importante ver um filme como Domingo à Noite no cinema. Falar de Alzheimer, de etarismo, de memória, de afeto é necessário. A experiência cria um entendimento com a pessoa do lado.”

Ela segue: “Muita gente jovem, meus netos e os amigos de meus netos foram ver o filme e gostaram. O cinema tem disso. Provoca a empatia, independentemente de idade, de geração.”

Uma das melhores – a melhor? – cena do filme é quando os irmãos estão sozinhos no quarto e ela diz: “Não estou pronta para perder os dois.” O pai e a mãe. Apesar de todas as brigas, existe o afeto. Se os ‘velhos’ morrerem sem que o abismo seja transposto, sempre haverá um buraco que não poderá ser preenchido. A hora é agora.

Marieta Severo define-se como uma mulher atenta aos sinais. “Não aos sinais de religiosidade, mas aos sinais que a vida nos emite.” Foi assim quando recebeu o roteiro de Domingo à Noite, que estreia nesta quinta-feira, 4. “Estava naquele momento difícil. No começo da pandemia, havíamos nos isolado num sítio. Aderbal (o diretor de teatro Aderbal Freire Filho, seu parceiro na arte e na vida, que morreu em agosto de 2023), filhos, netos, todo mundo.”

“O Aderbal foi ao Rio, teve um AVC e começou o pesadelo. O estado dele foi deteriorando, não conseguia mais se comunicar. Foi quando me chegou o roteiro. A mulher que se isola para cuidar do marido com Alzheimer, ela própria que é diagnosticada com a síndrome. Aquilo me bateu – o que a vida está querendo me dizer? Por que, nesse momento, esse papel? Embarquei!”, conta hoje, aos 77 anos.

Vale falar um pouco nesse roteiro. Para Bruno Gil Gonzalez, ele começou a nascer em 2011/12. “Ainda nem era roteirista. Nasceu meu primeiro filho, e no mesmo período meu avô estava morrendo. O Alzheimer é muito cruel. Toda doença é dolorosa, mas essa atinge muito a família toda. Logo em seguida foi minha avó quem ficou doente. Quando virei roteirista, aquilo tudo voltou. Era uma história que eu queria, que precisava contar.”

A atriz Marieta Severo, na pré-estreia do filme, na Cinemateca Brasileira Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Bruno enviou o roteiro à produtora Márcia Nepomuceno. Ela lhe deu retorno quase imediato, dizendo que achava quem iria se interessar. O diretor André Bushatsky – outro jovem – entrou no esquema. “O roteiro me cativou porque, para além da doença, aborda temas que me interessam muito. O tempo, a memória, o afeto.” André fez o documentário Um Pouco de Mim, Um Pouco de Nós (2023), que revisita a 2ª Guerra Mundial pelo ângulo de depoimentos de sobreviventes do Holocausto.

O trio começou a trabalhar. De cara, uma ideia se impôs. Quem poderia fazer o papel? Marieta! Todo o elenco foi montado em torno dela. A matriarca, atriz, Margot. O marido, Antônio, escritor, vivido por Zé Carlos Machado. A filha, também atriz, Natália Lage. O filho, o único que não pertence ao mundo da arte, mas ao mercado financeiro, Johnnas Oliva.

“Tivemos alguns encontros, eu dei algumas sugestões. Não tivemos preparação de elenco.” A produção avançou, a locação foi escolhida, e era a casa de Hélio Pellegrino Filho, no Alto da Gávea. Uma casa que parecia um museu, cheia de objetos de arte. “Eu havia transformado minha casa num hospital, para poder cuidar do Aderbal. E o curioso é que a locação ficava a não mais de 5 minutos da minha casa. Podia dar umas corridinhas até lá para ver se estava tudo bem.”

Zé Carlos havia sofrido uma covid grave. “Curei-me naquela casa maravilhosa. Para mim foi um repouso.” Embora a história, os temas, fossem duros, difíceis – até tristes, a finitude humana -, o clima no set era ameno. Marieta traduz: “Todo mundo na mesma vibe, pegando junto. Todos muito profissionais, mas também comprometidos, se ajudando”.

Marieta Severo e Zé Carlos Machado em 'Domingo À Noite'. Foto: Christian Rodrigues/Divulgação

Comprometimento é uma palavra que bate fundo em Marieta. “Essa história talvez ressoasse em mim de forma diferente, pela particularidade do momento que vivia. Mas a memória, o afeto são temas universais, todo mundo podia se identificar com a disfuncionalidade daquela família.” Embora o filme seja profundamente – pungentemente – humano, Marieta destaca uma dimensão política. “Falar sobre memória é muito importante nesse País.”

E ela prossegue, agora dirigindo-se ao repórter. “Você também atravessou os anos da ditadura. Sabe o horror que foi. Mas hoje tem gente mistificando e que se vale da falta de memória coletiva para vender uma falsa fábula. É preciso lembrar, lembrar para que os jovens, principalmente, não sejam arrastados a uma aventura que pode ser terrível.”

Foco no cinema

Com o mesmo empenho com que fez Domingo à Noite, Marieta participa da divulgação - ela conversou com a reportagem em São Paulo. “Tenho viajado muito, e não somente com o filme. Minha casa foi durante tanto tempo um hospital. Está voltando a ser uma casa, a minha casa.” O cinema, que já lhe deu tanta satisfação, está de novo em sua vida. “Tenho outro filme para estrear até o fim do ano, estou em quatro roteiros em fase de captação”, conta.

Nada de televisão à vista. Sua prioridade atual é o cinema. “Já vivi tantas retomadas. Gosto de estar empenhada em mais essa. O cinema é mais que importante. Necessário. Nos retrata, permite o entendimento de nós mesmos.” Foi o que ocorreu com ela em Domingo à Noite. E o teatro? “Fiz uma peça para comemorar o aniversário do (Teatro) Poeira (no Rio). Foi uma experiência muito rica, mas também estranha. Não tenho nada programado agora.”

Tem a ver com a perda do companheiro? “Com certeza. Foram muitos de convivência, muitos sonhos compartilhados. Tínhamos projetos, ainda dói, sabe?” Marieta sorri, lembra outros encontros com o repórter. “Parece que a gente tem sempre de falar das mesmas coisas.”

Talvez seja uma lembrança do baú, mas lá atrás, nos anos 1960, a jovem Marieta foi a vilã – a Rata – de uma novela emblemática da época, O Sheik de Agadir. Nunca mais parou de atuar. Filmes, peças, novelas. Durante anos invadiu os lares brasileiros como a Nenê da série A Grande Família, na qual formou aquela dupla com o Lineu de Marco Nanini. A matriarca de Domingo à Noite tem algo de Nenê. “Claro, sou eu que faço!”

Mas é mais. A mãe/mulher de Domingo à Noite procura estar no controle. As coisas estão desmoronando, mas ela repete, como um mantra que “vai ficar tudo bem”. Boa parte de seus conflitos com a filha, também atriz, vem desse choque de personalidades. A filha cobra da mãe nunca terem feito nada juntas, no palco. Na vida, Marieta é mãe de Sílvia Buarque, também atriz.

“Eu nunca interferi na carreira da Silvinha. Sempre foram escolhas dela. Nossa família é de artistas, não preciso nem lembrar.” E como seria possível esquecer? Durante anos, décadas, Marieta viveu aquela união com Chico Buarque. Pertencem, como dupla, à história. Cada um seguiu seu caminho e eles seguiram fazendo história no palco e na política - na linha de frente contra a ditadura militar e, mais recentemente, contra o governo Bolsonaro.

Marieta Severo posa na Cinemateca. em São Paulo, em evento de lançamento do filme 'Domingo à Noite'. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Domingo à Noite possui belas ideias de mise-en-scène. A casa de vidro não tinha cortinas, era toda transparente. “O André colocou todas aquelas cortinas que voltam a história para dentro. Não é um filme de paisagem.”

A ideia é que tudo se passe num fim de semana, com o fecho no domingo à noite. O filme não tem o perfil das comédias blockbusters que arrastam milhões de espectadores aos cinemas. “O comportamento do público mudou muito. Hoje, a maioria das pessoas talvez prefira ver aos filmes em casa. Mas é importante ver um filme como Domingo à Noite no cinema. Falar de Alzheimer, de etarismo, de memória, de afeto é necessário. A experiência cria um entendimento com a pessoa do lado.”

Ela segue: “Muita gente jovem, meus netos e os amigos de meus netos foram ver o filme e gostaram. O cinema tem disso. Provoca a empatia, independentemente de idade, de geração.”

Uma das melhores – a melhor? – cena do filme é quando os irmãos estão sozinhos no quarto e ela diz: “Não estou pronta para perder os dois.” O pai e a mãe. Apesar de todas as brigas, existe o afeto. Se os ‘velhos’ morrerem sem que o abismo seja transposto, sempre haverá um buraco que não poderá ser preenchido. A hora é agora.

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