Martin Hodara esteve em São Paulo na semana passada, trazido pela distribuidora Paris para promover o lançamento de seu filme Neve Negra. O suspense estrelado por Ricardo Darín e Leonardo Sbaraglia estreia nesta quinta, 8, em 100 salas. Não é um megalançamento, mas uma aposta segura - o cinema argentino costuma atrair o público brasileiro e Neve Negra, para um drama, acumulou respeitáveis 700 mil espectadores na Argentina, país em que 100 mil pagantes já configuram um sucesso.
Hodara conversou com o repórter por telefone, desde Buenos Aires. Disse que o inverno já chegou e que faz bastante frio em toda a Argentina. “Nel sur, em toda a Patagônia, tem nevado muito.” Justamente a neve - ela não está no título do filme por acaso. A neve é personagem, como Salvador (Darín) ou Marcos (Sbaraglia). E foi justamente a neve que, a despeito da suposta ambientação na Patagônia, fez com que os exteriores fossem filmados em Andorra, pequeno país encravado na cordilheira dos Pireneus, na fronteira da Espanha com a França.
Desde o primeiro ‘borrador’ (rascunho) de Neve Negra, até a estreia nos cinemas argentinos, em janeiro, passaram-se seis anos. Hodara apresentou o projeto para Ricardo Darín em 2010 e logo conseguiu seu aval. Leonardo Sbaraglia incorporou-se semanas mais tarde. Ambos foram seduzidos pela ideia de um drama familiar com acentos de suspense. Um filme com esse perfil, e com esse elenco, não deveria ter tido problemas para se viabilizar. “Mas, na verdade, foi bem complicado; o filme tomou muito mais tempo que imaginava.” Um pouco disso se deveu às agendas de Darín e Sbaraglia. “Enquanto levantava a produção, não podia fixar datas com eles. Há três anos, quase filmei. Tinha o dinheiro, os dois. Faltou-me a neve. Foi aí que começamos a encarar a possibilidade de uma filmagem no exterior, até porque tínhamos produtores espanhóis interessados.”
Com a ‘plata’ espanhola veio a atriz Laia Costa. “Mas isso já foi bem em cima da filmagem. Havia visto Laia num filme alemão - Victoria - que me impressionou muitíssimo.” Na trama, Marcos/Sbaraglia e a mulher grávida chegam a essa região remota, e gelada, em que vive Salvador/Darín. Querem convencê-lo a vender a propriedade. Salvador resiste. Há um forte antagonismo entre Marcos e ele. Dos embates verbais e até físicos, eclodem segredos de família. “Que família não os têm?”, pergunta Hodara. “Creio que reside nisso a universalidade da história.”
No começo de sua carreira, nos anos 1980/90, Martin Hodara fez dois curtas que o aproximaram do prestigiado diretor Fabian Bielinsky, de obras como Aura e Nove Rainhas. Hodara tornou-se assistente de direção e diretor de segunda unidade. Quando Bielinsky morreu, prematuramente (em São Paulo, 2006), Hodara ajudou o amigo Ricardo Darín a dirigir o projeto no qual ele trabalhava - O Sinal. Passaram-se mais de dez anos antes que Hodara concluísse sua primeira direção de longa em solo. Neve Negra estreou em janeiro deste ano na Argentina. Na entrevista na capa, o diretor conta que já vinha trabalhando no filme, e com o aval de Darín, desde 2010.
“Ricardo embarcou nessa história desde que lhe falei no tipo de filme que queria fazer. Somos amigos, e ele me apoiaria, como fazem os amigos. Mas o fato de haver decidido interpretar o filme, e haver esperado tanto tempo, indicam muito mais - seu comprometimento pessoal”, avalia o diretor. “Creio que o mais interessante para Ricardo foi o próprio papel. Salvador não é o tipo de personagem que ele está acostumado a interpretar. Diria até que é inesperado.” Numa entrevista por telefone, desde Buenos Aires, Hodara conta que Neve Negra nasceu como um projeto pessoal. “É um filme de mercado, mas creio que consegui harmonizar as exigências comerciais com uma pegada mais pessoal e até autoral. Minha primeira ideia foi um filme invernal, em que a neve fosse personagem. O restante veio vindo naturalmente - poucos personagens, conflitos familiares, segredos escuros. Qual família não tem esqueletos no armário?”
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Hodara, nascido em 1968, admite que sua formação foi feita no cinema clássico. Neve Negra seria, ou é, o clássico drama em três atos, mas a verdade é que, sob certos aspectos, é bem subversivo. O Salvador de Ricardo Darín não é só inesperado, para os numerosos fãs do ator, porque ele usa barba e, mais que um solitário, talvez seja um misantropo. Qualquer espectador que conheça um mínimo de cinema argentino sabe que Darín é um astro. Agora mesmo, estava em Cannes, na mostra Un Certain Regard, com La Cordillera, de Santiago Mitre, em que faz o presidente da Argentina. “Você viu? Estou muito curioso. Ricardo ficou muito tentado pelo personagem e Santiago, que começou como diretor autoral, faz seu filme mais ambicioso de mercado”, Hodara analisa.
Darín acumula os protagonistas - mas não em Neve Negra. Do ponto de vista estrutural, Hodara admite que Neve Negra encerra uma ousadia, e um desafio. “Os protagonistas vão se sucedendo. Marco chega com a mulher e introduz o drama. Somos apresentados a Salvador e o passado intervém.” Na verdade, e não vai nisso nenhum spoiler, se há um ‘rol protagónico’ é a da mulher, Laia Costa. “Seu olhar é o do espectador. No começo, ela não sabe nada, mas vai acumulando informação e, no desfecho surpreendente, quando se revela a verdade sobre uma morte ocorrida no passado, a chave é a personagem de Laia.” Conflitos familiares, segredos. Nada nem ninguém é o que parece. Carrascos podem ser vítimas, e vice-versa. “Se existe um problema para o espectador, é descobrir quem é o menos mau nessa história”, sintetiza Hodara.
Se ninguém presta, o filme expressa o desencanto do diretor pela humanidade? “Você quer saber se sou pessimista? Acho que sou mais realista. É só ver o estado do mundo. O que ocorre na Argentina, no Brasil, na ‘América’, com (o presidente Donald) Trump. Estamos vivendo uma era de individualismo exacerbado, sem projetos coletivos. O filme expressa isso por meio de um conflito familiar que atravessa o tempo. Toda família tem seus segredos. Sinto que não é uma história argentina, é universal. Em toda parte, as pessoas podem se identificar com essas situações, esses personagens.” Justamente ‘situações’ - se você pesquisar na internet encontrará muitas críticas a certas facilidades do roteiro, na hora de apresentar (e resolver) o impasse familiar.
O diretor, que também é roteirista (com Leonel D’Agostino), defende-se. “Tivemos críticas ótimas, outras boas e também críticas ruins. Nem todo mundo gostou de Neve Negra. Mas não é que eu subestime, ou não leve em consideração o que dizem os críticos. O problema é que, se eu sou humano e erro, os críticos também. Adoro o cinema de gênero. O filme recente de que mais gostei foi Corra!, de Jordan Peele. Trabalho com o suspense em Neve Negra. O gênero tem seus códigos. E o que fazemos, Leonel (D’Agostino) e eu, foi recorrer a códigos de gênero. Como todo cinema de gênero, a questão é - Neve Negra funciona? Creio que sim. É uma combinação de elenco, ambientação. O inverno, a música, tudo é meio lúgubre. Para mim, o verdadeiro tema de Neve Negra é o passado opressor, por isso todos esses flash-backs que projetam luz sobre a história. Falta a chave. O twist final, e isso é bem de gênero.”
Para encerrar, Federico Luppi. “Federico é um grande ator. Com sua experiência, poderia me dar lições, mas estava mais interessado na minha visão. E ele enfrentou o inverno sem queixas, considerando-se sua idade (81 anos).” E Dolores Fonzi, que faz a irmã? “Já a conhecia, e ela é muito amiga de Ricardo (Darín). Dolores é uma grande atriz. Só tenho de lhe agradecer por sua generosidade. Ela tem só uma cena, mas é fundamental. Outra talvez não tivesse essa disponibilidade.”