Em The Post - A Guerra Secreta, o filme de 2017 sobre a perseguição do Washington Post aos Pentagon Papers, Meryl Streep interpreta a editora Katharine Graham por trás de um imenso par de óculos. Streep está sempre colocando os óculos para ler o jornal e os tirando quando para de ler. Ou então cochilando na sua mesa com os óculos pendurados no braço, ou apertando os olhos enquanto manuseia as hastes dos óculos, ou girando os óculos distraidamente no colo. Quando assisti ao filme, eu me inclinei para meu companheiro e disse: metade da atuação de Meryl Streep é “esse lance dos óculos”.
Minha intenção era insultar. Não estava gostando do filme e acabei descontando na Meryl Streep. Mas, nos anos seguintes, fiquei ligada nas formas aparentemente ilimitadas com que Streep manipula os óculos na tela. É impressionante a frequência com que nossa atriz de cinema mais célebre construiu suas performances em uma das partes mais hackeadas do ofício. Agora sigo essa tendência não com incredulidade, mas com reverência. Comecei a ver os pares de óculos no rosto de Streep como uma arma de Chekhov: em algum momento, você sabe que eles vão aparecer - e vai ser fabuloso.
O lance dos óculos representa uma mistura de motivos cinematográficos. Usar um par de óculos funciona como um disfarce contundente (agora o Super-Homem é o desajeitado repórter Clark Kent). Removê-lo revela um fascínio oculto (a nerd Laney Boggs, de Ela É Demais/ She’s All That, agora é supersexy). O dramático tirar de óculos é a expressão de surpresa menos surpreendente das atuações. É algo que você faria se vivesse em uma ficção fantástica - se você fosse uma bibliotecária de Sunnydale High diante da atividade sobrenatural que emana da Boca do Inferno, ou então um paleontólogo proeminente vendo um braquiossauro geneticamente modificado pela primeira vez.
A remoção dos óculos é um sinal de gravidade tão desgastado que, certa vez, durante uma audiência no Senado, Orrin Hatch teve o reflexo de tirar um par de óculos que ele nem estava usando. O praticante moderno mais dedicado do lance dos óculos provavelmente é David Caruso, que, como investigador forense Horatio Caine em CSI: Miami, passou uma década usando seus óculos de sol para delinear trocadilhos grosseiros sobre cadáveres frescos.
Streep não se intimida com esses clichês. Em vez disso, ela os trabalha sem medo, deleitando-se com sua excentricidade em um momento, depois os imbuindo de uma delicadeza inesperada no próximo. Ela parece entender que o tirar de óculos é tão repisado porque é imensamente gratificante de ver.
Em O Diabo Veste Prada, em que Streep interpreta a exigente editora Miranda Priestly, não há quase nenhuma cena em que ela não se entregue ao lance dos óculos, acariciando desdenhosamente seus óculos escuros ao desaparecer dentro de uma limusine, ou abaixando impiedosamente os óculos de leitura para examinar a nova contratada, Andy Sachs.
Miranda é baseada em Anna Wintour, editora-chefe da Vogue, que raramente é vista sem óculos escuros cobrindo os olhos. Os óculos, disse Wintour à CNN, são “incrivelmente úteis porque você evita que as pessoas saibam o que você está pensando”. Ela acrescentou: “Talvez tenham virado uma muleta”.
Se Wintour usa óculos para esconder sua vida interior, Streep faz o contrário. Ela manipula os óculos com segurança para acentuar o poder de Miranda, que é seu olhar perspicaz. (Seu olhar para moda, que inclui os acessórios, que incluem os óculos).
Uma das cenas mais poderosas de O Diabo Veste Prada é quando Andy encontra Miranda com os olhos turvos em seu quarto de hotel, o rosto inesperadamente despido de óculos, pois é o instante em que ela se recupera da notícia de que seu marido pediu o divórcio. Streep consegue usar os óculos como uma cortina, valendo-se deles para reter acesso total a suas personagens até que ela avance para uma camada mais íntima da performance.
Ela também consegue usar óculos mais sutilmente: em Adaptação, interpreta a escritora nova-iorquina Susan Orlean com um par de armações ovais de arame, e aqui o lance dos óculos fica implícito. Deitada na cama em um momento melancólico, os óculos aparecem no seu rosto em uma cena e desaparecem na próxima, sugerindo uma súbita variação no humor. Ou então ela brinca com os óculos de um jeito mais aberto: em Ela É o Diabo, ela ajusta a ponte de seus óculos com o dedo médio.
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Há momentos na carreira de uma atriz em que dá para ver quando ela sobe mais um degrau no nível de atuação. Isso me veio enquanto assistia Streep em Big Little Lies, no qual ela aparece na segunda temporada como Mary Louise, a sogra de Celeste (Nicole Kidman). Fiquei emocionada quando Streep apareceu, seus olhos esbugalhados atrás de um par de armações douradas de olhos de gato. Mas aí, no segundo episódio, ela inesperadamente traz um novo acessório: em um confronto com a amiga de Celeste, Madeline (Reese Witherspoon), Streep levanta o colar que está usando, deixa a corrente bem esticada no queixo e acaricia a pequena cruz com o dedo.
Não é um movimento sutil e, ainda assim, é penetrante em sua revelação da personagem bizarra de Mary Louise - um tipo feroz de santidade. Parece que Streep está se desafiando a fazer uma teatralidade cada vez mais ampla parecer gloriosamente peculiar. Neste ponto de sua carreira, por que ela deixaria qualquer adereço intocado? / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU