Opinião|Momentos finais de Antonio Candido guiam documentário contido e refinado


Filme de Eduardo Escorel, em cartaz nos cinemas, também mostra o lado ativista do escritor, adepto do socialismo democrático e crítico do capitalismo

Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

“Uma coisa boa é reduzir a vida a palavras. Elas podem ser uma espécie de sobrevida”. Esse pensamento figura em um dos cadernos de anotações legados por Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017) à posteridade.

Dessa vida, longa e intensa entre palavras, talvez o legado mais singelo seja composto por esses cadernos, mantidos da infância à “velhice extrema”, expressão usada para descrever sua situação de nonagenário. - ele morreu às vésperas de completar 99 anos. Nessa quadra da existência, ele escreve os dois últimos manuscritos, material para o documentário Antonio Candido - Anotações Finais, de Eduardo Escorel, que estreia nos cinemas.

O personagem é muito especial. Num país de memória curta, não custa lembrá-lo. Ao morrer, em 2017, Antonio Candido deixou uma herança cultural e tanto. Numa trajetória que não pode ser resumida em uma linha e nem em muitas linhas, legou à inteligência do País obras incontornáveis como Formação da Literatura Brasileira e Parceiros do Rio Bonito, para citar apenas dois dos livros mais famosos.

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Professor universitário, criador de publicações que marcaram época como a revista Clima e o Suplemento Literário do Estado de S. Paulo, Candido deixou marca indelével no pensamento brasileiro e uma legião de discípulos e seguidores. Seu pensamento continua vivo entre nós, embora em suas memórias finais ele já se visse como homem de outro tempo.

Documentário 'Antonio Candido - Anotações Finais' está em cartaz nos cinemas e registra os momentos derradeiros do escritor Foto: Arquivo Pessoal/Antonio Candido/Divulgação

Talvez fosse, mas não por culpa sua. Com o País entrando de cabeça numa era de negacionismo, brutalidade e desprezo pela razão e outras sutilezas, qualquer manifestação de inteligência já poderia ser considerada não apenas velharia mas algo de fato inútil, desprezível e até mesmo vergonhoso. Quem lacra não pensa e vivemos a época da qual Candido já antevia as sombras nos últimos anos de sua passagem por aqui.

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O filme guarda esse tom de outra era. A narração de Matheus Nachtergaele é sóbria, distanciada, como convém a um “defunto autor”, que, já do outro lado, contempla as vicissitudes de sua vida passada. A câmera percorre o amplo apartamento do escritor, com estantes bem arrumadas e distribuídas pela casa toda. Depois, retorna ao mesmo ambiente para registrar as prateleiras já esvaziadas, as obras doadas para a universidade, para novos leitores.

O material iconográfico acompanha a cadência musical do documentário. Fotos de uma São Paulo antiga, com amigos que já todos se foram, como os do grupo Clima, Paulo Emilio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Coelho, Décio de Almeida Prado, o próprio Antonio Candido. Reunidos numa foto alegre, todos então jovens, talentosos, filhos de um país por construir.

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Antonio Candido deixou marca indelével no pensamento brasileiro e uma legião de discípulos e seguidores Foto: Wilton Junior/Estadão

Ativista e crítico do capitalismo

O filme recupera também o Antonio Candido ativista, adepto de um socialismo democrático, filiado ao Partido Socialista, mais tarde um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, sempre crítico do capitalismo, da juventude à velhice. Em trechos de uma entrevista, diz que se fosse obrigado a escolher entre a liberdade e a igualdade, ficaria com esta última - porque a liberdade é individual e a igualdade, por definição, é coletiva. “Qual a liberdade de quem passa fome?”, se pergunta.

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Esse diário, escrito ao longo da vida, totaliza 74 cadernos mantidos inéditos. Alguns deles foram destruídos, em momentos de raiva ou tédio. A maior parte sobreviveu.

O filme se vale do recurso de um narrador póstumo, à maneira de um Brás Cubas no romance de Machado de Assis. A narração de Matheus Nachtergaele, a voz eleita de Candido, começa com a frase contundente e seca: “Dia 12 de maio de 2017, eu morri”. Segue-se um, por assim dizer, fluxo de consciência, palavras transcritas dos últimos cadernos de Candido, postas no papel com letra caprichada e firme, apesar da idade avançada.

O documentário mostra o lado ativista de Antonio Candido, adepto de um socialismo democrático, filiado ao Partido Socialista Foto: Acervo Estadão
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Da idade, ele fala com frequência, referindo-se de maneira altiva às limitações crescentes de quem havia atingido a tal “velhice extrema”. O uso da bengala, instrumento já parte do corpo, as caminhadas pelo bairro, cada vez mais curtas, os eventuais perrengues de uma saúde no geral boa, dadas as circunstâncias. A vida que se vai encurtando, inexoravelmente. Nesse termo final, permanece a saudade da a companheira de 60 anos de vida comum, mãe de suas três filhas, a grande intelectual Gilda Mello e Souza, que o deixou em 2005. “Conhecê-la foi o fato fundamental da minha vida”, escreve Candido. Existe maior declaração de amor?

Os cadernos revelam esses sentimentos e evocações de tempos idos, mas também os interesses intelectuais presentes em seu dia-a-dia. Expressam também suas preocupações com o momento histórico do País, à época a caminho do inferno astral com o impeachment de Dilma Rousseff e suas consequências. Adepto do socialismo democrático, doía a Candido ver o País flertar abertamente com o golpismo e o autoritarismo. Foi poupado da era das trevas que entre nós vigorou entre 2018 e 2022.

O material visual que acompanha as reflexões de Candido, evoca uma São Paulo mais antiga e quiçá mais civilizada, aquela dos tempos da Faculdade de Filosofia da USP, na rua Maria Antonia. Alma Mater de Candido, a USP, no entanto, não foi poupada pela violência política em 1968, na antevéspera do AI-5. A barbárie faz emergências periódicas entre nós.

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Mesmo intelectuais refinados, como Candido, estão sempre expostos, no Brasil, a essas oscilações históricas abruptas e a esta curiosa mescla de sofisticação e primarismo, argamassa do nosso devir histórico. Foi ele, Antonio Candido, afinal, um dos estudiosos deste país em transe, ao lado de gente como Sérgio Buarque,

Gilberto Freyre, Caio Prado e outros. Intérprete do Brasil, em geral pelo viés da literatura, via o País pela lente do romance - sociedade e literatura iluminando-se mutuamente, como em Dialética da Malandragem, outro dos seus textos seminais. O que fazer senão tentar entender esse caos - e fazê-lo através das armas da reflexão e da palavra nessa luta perdida pela civilidade?

Sempre as palavras que, por si sós, parecem incapazes de mudar o mundo, mas podem servir para compreendê-lo e para, ao menos, legar um ponto de vista luminoso para as gerações por vir. O estilo refinado, a emoção contida, a beleza sóbria com que o documentário trata os últimos passos desse grande pensador, colocam o filme à altura do personagem. Não é nada fácil conseguir esse tipo de sintonia.

Nesta sexta-feira, 27 de setembro, às 18h30, haverá uma sessão especial de Antonio Candido - Anotações Finais no Instituto Moreira Salles. A exibição do filme será seguida por um debate entre o diretor Eduardo Escorel, o crítico literário Roberto Schwarz e a cineasta Lina Chamie.

“Uma coisa boa é reduzir a vida a palavras. Elas podem ser uma espécie de sobrevida”. Esse pensamento figura em um dos cadernos de anotações legados por Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017) à posteridade.

Dessa vida, longa e intensa entre palavras, talvez o legado mais singelo seja composto por esses cadernos, mantidos da infância à “velhice extrema”, expressão usada para descrever sua situação de nonagenário. - ele morreu às vésperas de completar 99 anos. Nessa quadra da existência, ele escreve os dois últimos manuscritos, material para o documentário Antonio Candido - Anotações Finais, de Eduardo Escorel, que estreia nos cinemas.

O personagem é muito especial. Num país de memória curta, não custa lembrá-lo. Ao morrer, em 2017, Antonio Candido deixou uma herança cultural e tanto. Numa trajetória que não pode ser resumida em uma linha e nem em muitas linhas, legou à inteligência do País obras incontornáveis como Formação da Literatura Brasileira e Parceiros do Rio Bonito, para citar apenas dois dos livros mais famosos.

Professor universitário, criador de publicações que marcaram época como a revista Clima e o Suplemento Literário do Estado de S. Paulo, Candido deixou marca indelével no pensamento brasileiro e uma legião de discípulos e seguidores. Seu pensamento continua vivo entre nós, embora em suas memórias finais ele já se visse como homem de outro tempo.

Documentário 'Antonio Candido - Anotações Finais' está em cartaz nos cinemas e registra os momentos derradeiros do escritor Foto: Arquivo Pessoal/Antonio Candido/Divulgação

Talvez fosse, mas não por culpa sua. Com o País entrando de cabeça numa era de negacionismo, brutalidade e desprezo pela razão e outras sutilezas, qualquer manifestação de inteligência já poderia ser considerada não apenas velharia mas algo de fato inútil, desprezível e até mesmo vergonhoso. Quem lacra não pensa e vivemos a época da qual Candido já antevia as sombras nos últimos anos de sua passagem por aqui.

O filme guarda esse tom de outra era. A narração de Matheus Nachtergaele é sóbria, distanciada, como convém a um “defunto autor”, que, já do outro lado, contempla as vicissitudes de sua vida passada. A câmera percorre o amplo apartamento do escritor, com estantes bem arrumadas e distribuídas pela casa toda. Depois, retorna ao mesmo ambiente para registrar as prateleiras já esvaziadas, as obras doadas para a universidade, para novos leitores.

O material iconográfico acompanha a cadência musical do documentário. Fotos de uma São Paulo antiga, com amigos que já todos se foram, como os do grupo Clima, Paulo Emilio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Coelho, Décio de Almeida Prado, o próprio Antonio Candido. Reunidos numa foto alegre, todos então jovens, talentosos, filhos de um país por construir.

Antonio Candido deixou marca indelével no pensamento brasileiro e uma legião de discípulos e seguidores Foto: Wilton Junior/Estadão

Ativista e crítico do capitalismo

O filme recupera também o Antonio Candido ativista, adepto de um socialismo democrático, filiado ao Partido Socialista, mais tarde um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, sempre crítico do capitalismo, da juventude à velhice. Em trechos de uma entrevista, diz que se fosse obrigado a escolher entre a liberdade e a igualdade, ficaria com esta última - porque a liberdade é individual e a igualdade, por definição, é coletiva. “Qual a liberdade de quem passa fome?”, se pergunta.

Esse diário, escrito ao longo da vida, totaliza 74 cadernos mantidos inéditos. Alguns deles foram destruídos, em momentos de raiva ou tédio. A maior parte sobreviveu.

O filme se vale do recurso de um narrador póstumo, à maneira de um Brás Cubas no romance de Machado de Assis. A narração de Matheus Nachtergaele, a voz eleita de Candido, começa com a frase contundente e seca: “Dia 12 de maio de 2017, eu morri”. Segue-se um, por assim dizer, fluxo de consciência, palavras transcritas dos últimos cadernos de Candido, postas no papel com letra caprichada e firme, apesar da idade avançada.

O documentário mostra o lado ativista de Antonio Candido, adepto de um socialismo democrático, filiado ao Partido Socialista Foto: Acervo Estadão

Da idade, ele fala com frequência, referindo-se de maneira altiva às limitações crescentes de quem havia atingido a tal “velhice extrema”. O uso da bengala, instrumento já parte do corpo, as caminhadas pelo bairro, cada vez mais curtas, os eventuais perrengues de uma saúde no geral boa, dadas as circunstâncias. A vida que se vai encurtando, inexoravelmente. Nesse termo final, permanece a saudade da a companheira de 60 anos de vida comum, mãe de suas três filhas, a grande intelectual Gilda Mello e Souza, que o deixou em 2005. “Conhecê-la foi o fato fundamental da minha vida”, escreve Candido. Existe maior declaração de amor?

Os cadernos revelam esses sentimentos e evocações de tempos idos, mas também os interesses intelectuais presentes em seu dia-a-dia. Expressam também suas preocupações com o momento histórico do País, à época a caminho do inferno astral com o impeachment de Dilma Rousseff e suas consequências. Adepto do socialismo democrático, doía a Candido ver o País flertar abertamente com o golpismo e o autoritarismo. Foi poupado da era das trevas que entre nós vigorou entre 2018 e 2022.

O material visual que acompanha as reflexões de Candido, evoca uma São Paulo mais antiga e quiçá mais civilizada, aquela dos tempos da Faculdade de Filosofia da USP, na rua Maria Antonia. Alma Mater de Candido, a USP, no entanto, não foi poupada pela violência política em 1968, na antevéspera do AI-5. A barbárie faz emergências periódicas entre nós.

Mesmo intelectuais refinados, como Candido, estão sempre expostos, no Brasil, a essas oscilações históricas abruptas e a esta curiosa mescla de sofisticação e primarismo, argamassa do nosso devir histórico. Foi ele, Antonio Candido, afinal, um dos estudiosos deste país em transe, ao lado de gente como Sérgio Buarque,

Gilberto Freyre, Caio Prado e outros. Intérprete do Brasil, em geral pelo viés da literatura, via o País pela lente do romance - sociedade e literatura iluminando-se mutuamente, como em Dialética da Malandragem, outro dos seus textos seminais. O que fazer senão tentar entender esse caos - e fazê-lo através das armas da reflexão e da palavra nessa luta perdida pela civilidade?

Sempre as palavras que, por si sós, parecem incapazes de mudar o mundo, mas podem servir para compreendê-lo e para, ao menos, legar um ponto de vista luminoso para as gerações por vir. O estilo refinado, a emoção contida, a beleza sóbria com que o documentário trata os últimos passos desse grande pensador, colocam o filme à altura do personagem. Não é nada fácil conseguir esse tipo de sintonia.

Nesta sexta-feira, 27 de setembro, às 18h30, haverá uma sessão especial de Antonio Candido - Anotações Finais no Instituto Moreira Salles. A exibição do filme será seguida por um debate entre o diretor Eduardo Escorel, o crítico literário Roberto Schwarz e a cineasta Lina Chamie.

“Uma coisa boa é reduzir a vida a palavras. Elas podem ser uma espécie de sobrevida”. Esse pensamento figura em um dos cadernos de anotações legados por Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017) à posteridade.

Dessa vida, longa e intensa entre palavras, talvez o legado mais singelo seja composto por esses cadernos, mantidos da infância à “velhice extrema”, expressão usada para descrever sua situação de nonagenário. - ele morreu às vésperas de completar 99 anos. Nessa quadra da existência, ele escreve os dois últimos manuscritos, material para o documentário Antonio Candido - Anotações Finais, de Eduardo Escorel, que estreia nos cinemas.

O personagem é muito especial. Num país de memória curta, não custa lembrá-lo. Ao morrer, em 2017, Antonio Candido deixou uma herança cultural e tanto. Numa trajetória que não pode ser resumida em uma linha e nem em muitas linhas, legou à inteligência do País obras incontornáveis como Formação da Literatura Brasileira e Parceiros do Rio Bonito, para citar apenas dois dos livros mais famosos.

Professor universitário, criador de publicações que marcaram época como a revista Clima e o Suplemento Literário do Estado de S. Paulo, Candido deixou marca indelével no pensamento brasileiro e uma legião de discípulos e seguidores. Seu pensamento continua vivo entre nós, embora em suas memórias finais ele já se visse como homem de outro tempo.

Documentário 'Antonio Candido - Anotações Finais' está em cartaz nos cinemas e registra os momentos derradeiros do escritor Foto: Arquivo Pessoal/Antonio Candido/Divulgação

Talvez fosse, mas não por culpa sua. Com o País entrando de cabeça numa era de negacionismo, brutalidade e desprezo pela razão e outras sutilezas, qualquer manifestação de inteligência já poderia ser considerada não apenas velharia mas algo de fato inútil, desprezível e até mesmo vergonhoso. Quem lacra não pensa e vivemos a época da qual Candido já antevia as sombras nos últimos anos de sua passagem por aqui.

O filme guarda esse tom de outra era. A narração de Matheus Nachtergaele é sóbria, distanciada, como convém a um “defunto autor”, que, já do outro lado, contempla as vicissitudes de sua vida passada. A câmera percorre o amplo apartamento do escritor, com estantes bem arrumadas e distribuídas pela casa toda. Depois, retorna ao mesmo ambiente para registrar as prateleiras já esvaziadas, as obras doadas para a universidade, para novos leitores.

O material iconográfico acompanha a cadência musical do documentário. Fotos de uma São Paulo antiga, com amigos que já todos se foram, como os do grupo Clima, Paulo Emilio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Coelho, Décio de Almeida Prado, o próprio Antonio Candido. Reunidos numa foto alegre, todos então jovens, talentosos, filhos de um país por construir.

Antonio Candido deixou marca indelével no pensamento brasileiro e uma legião de discípulos e seguidores Foto: Wilton Junior/Estadão

Ativista e crítico do capitalismo

O filme recupera também o Antonio Candido ativista, adepto de um socialismo democrático, filiado ao Partido Socialista, mais tarde um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, sempre crítico do capitalismo, da juventude à velhice. Em trechos de uma entrevista, diz que se fosse obrigado a escolher entre a liberdade e a igualdade, ficaria com esta última - porque a liberdade é individual e a igualdade, por definição, é coletiva. “Qual a liberdade de quem passa fome?”, se pergunta.

Esse diário, escrito ao longo da vida, totaliza 74 cadernos mantidos inéditos. Alguns deles foram destruídos, em momentos de raiva ou tédio. A maior parte sobreviveu.

O filme se vale do recurso de um narrador póstumo, à maneira de um Brás Cubas no romance de Machado de Assis. A narração de Matheus Nachtergaele, a voz eleita de Candido, começa com a frase contundente e seca: “Dia 12 de maio de 2017, eu morri”. Segue-se um, por assim dizer, fluxo de consciência, palavras transcritas dos últimos cadernos de Candido, postas no papel com letra caprichada e firme, apesar da idade avançada.

O documentário mostra o lado ativista de Antonio Candido, adepto de um socialismo democrático, filiado ao Partido Socialista Foto: Acervo Estadão

Da idade, ele fala com frequência, referindo-se de maneira altiva às limitações crescentes de quem havia atingido a tal “velhice extrema”. O uso da bengala, instrumento já parte do corpo, as caminhadas pelo bairro, cada vez mais curtas, os eventuais perrengues de uma saúde no geral boa, dadas as circunstâncias. A vida que se vai encurtando, inexoravelmente. Nesse termo final, permanece a saudade da a companheira de 60 anos de vida comum, mãe de suas três filhas, a grande intelectual Gilda Mello e Souza, que o deixou em 2005. “Conhecê-la foi o fato fundamental da minha vida”, escreve Candido. Existe maior declaração de amor?

Os cadernos revelam esses sentimentos e evocações de tempos idos, mas também os interesses intelectuais presentes em seu dia-a-dia. Expressam também suas preocupações com o momento histórico do País, à época a caminho do inferno astral com o impeachment de Dilma Rousseff e suas consequências. Adepto do socialismo democrático, doía a Candido ver o País flertar abertamente com o golpismo e o autoritarismo. Foi poupado da era das trevas que entre nós vigorou entre 2018 e 2022.

O material visual que acompanha as reflexões de Candido, evoca uma São Paulo mais antiga e quiçá mais civilizada, aquela dos tempos da Faculdade de Filosofia da USP, na rua Maria Antonia. Alma Mater de Candido, a USP, no entanto, não foi poupada pela violência política em 1968, na antevéspera do AI-5. A barbárie faz emergências periódicas entre nós.

Mesmo intelectuais refinados, como Candido, estão sempre expostos, no Brasil, a essas oscilações históricas abruptas e a esta curiosa mescla de sofisticação e primarismo, argamassa do nosso devir histórico. Foi ele, Antonio Candido, afinal, um dos estudiosos deste país em transe, ao lado de gente como Sérgio Buarque,

Gilberto Freyre, Caio Prado e outros. Intérprete do Brasil, em geral pelo viés da literatura, via o País pela lente do romance - sociedade e literatura iluminando-se mutuamente, como em Dialética da Malandragem, outro dos seus textos seminais. O que fazer senão tentar entender esse caos - e fazê-lo através das armas da reflexão e da palavra nessa luta perdida pela civilidade?

Sempre as palavras que, por si sós, parecem incapazes de mudar o mundo, mas podem servir para compreendê-lo e para, ao menos, legar um ponto de vista luminoso para as gerações por vir. O estilo refinado, a emoção contida, a beleza sóbria com que o documentário trata os últimos passos desse grande pensador, colocam o filme à altura do personagem. Não é nada fácil conseguir esse tipo de sintonia.

Nesta sexta-feira, 27 de setembro, às 18h30, haverá uma sessão especial de Antonio Candido - Anotações Finais no Instituto Moreira Salles. A exibição do filme será seguida por um debate entre o diretor Eduardo Escorel, o crítico literário Roberto Schwarz e a cineasta Lina Chamie.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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