Especial para o Estadão - O diretor mexicano Guillermo del Toro encontra na fábula de Pinóquio o veículo ideal para o seu gosto gótico. De fato, a história de Carlo Collodi (1826-1890) revela-se ideal para provocar calafrios. Em especial no público infantil, mas continua perturbador vida afora, falando algo em surdina para a criança que subsiste em nós.
Del Toro faz seu filme usando a técnica de stop motion. Os bonecos são muito bonitos. E, ao mesmo tempo, bastante estranhos. Gepeto é o artesão que perde um filho durante a 1ª Guerra Mundial. Solitário, cria um boneco de madeira para fazer-lhe companhia. Mas o boneco não sai exatamente do jeito que ele espera. Parece um tanto tosco, o que não é de espantar, visto que Gepeto estava bêbado quando o esculpiu. E eis que chega um Pinóquio desordeiro, subversivo, nada obediente, que, logo ao ganhar vida, põe a casa do pai de cabeça para baixo. No fundo, é um libertário, porque num momento histórico em que obedecer é regra para quem tem juízo, o negócio, para ele, é subverter as normas.
Daí ter sido muito boa a ideia de Del Toro de levar a história do século 19 para os anos 1930, época do fascismo de Benito Mussolini. Por isso aparece logo no filme o chamado “catecismo” do fascismo italiano, resumido em três verbos: “Credere, obedire, combattere”. Crer, obedecer, combater. Crer no líder sem qualquer sombra de dúvida. Obedecer ao superior hierárquico, em todas as situações. Estar pronto a combater o inimigo e a dar a vida pela pátria. O fascismo, em sua base, é uma proposta de militarização da existência humana, que permanece latente através dos tempos e vez por outra põe a cabeça para fora. Como está acontecendo exatamente neste momento. Daí a precisão de timing de Del Toro.
O Pinóquio do diretor mexicano é o avesso de todo esse entulho autoritário. Numa época em que todos os humanos se comportam como marionetes, a marionete age como um ser humano, com suas contradições e aspiração à liberdade. Essa inversão é a beleza maior deste Pinóquio em tom sombrio e politizado pela escolha de ambientá-lo no período de autoritarismo mais obscuro do século 20 e que conduziu ao morticínio da 2ª Guerra Mundial.
Essa camada política mais exposta não anula outras. Pinóquio, mesmo nas versões mais edulcoradas como a da Disney, tem elementos que mexem fundo no inconsciente de todos nós. Trabalha com medos difusos e com a culpa, essa vertente tão cristã da experiência humana. Daí a figura importante e um tanto asquerosa do Grilo Falante, emblema da consciência que, segundo Hamlet, nos transforma a todos em covardes. O dono do circo é outra figura melíflua, junto com seu auxiliar, o macaco Spazzatura (“lixo”, em italiano). O ser marinho, no interior do qual Gepeto e Pinóquio se reencontram, não é a amena baleia da Disney, mas um monstro de fato horrendo. Del Toro não teme ser sombrio. Pelo contrário. Busca a sombra para valorizar a luz.
O tom de Collodi é moralizante, mas aqui o espírito transgressivo de Del Toro o supera, sem negá-lo. A força inconsciente desse conto infantil e gótico permanece sob qualquer roupagem. A esse núcleo sólido deve-se sua longa sobrevivência na história da literatura e o contínuo fascínio que exerce sobre o cinema.