Federico Fellini nasceu há exatos 103 anos, completos nesta sexta-feira, 20, e morreu em 1993. Mas não há nenhum engano em dizer que ele é um cineasta para hoje. Não apenas pela influência constante de seus filmes sobre a obra de outros artistas, mas pela atualidade dos temas por ele abordados ao longo de sua trajetória.
Para ficar em títulos mais notórios: em A Grande Beleza (2013), Paolo Sorrentino refaz, à sua maneira, o clássico A Doce Vida (1960). Outro filme referência de Fellini, Oito e Meio (1963), é homenageado em Manhattan (1979), de Woody Allen, e serve de matriz a Bardo - Falsa Crônica de Umas Quantas Verdades (2022), do mexicano Alejandro González Iñárritu.
Não se trata apenas da influência deste que é considerado um dos grandes mestres do cinema de todos os tempos. Fellini não apenas deu acento muito pessoal a suas obras como as moldou de forma a discutir os aspectos mais agudos da atualidade.
Em A Doce Vida, entre outras coisas, comenta a força nascente do jornalismo de celebridades no alvorecer da sociedade do espetáculo. Essa expressão - “sociedade do espetáculo” - é o título da obra de Guy Debord, de 1968. Porém o conceito, por assim dizer, é antecipado por Fellini em oito anos, neste filme de 1960.
Romance
Ele nos conta, com toda intensidade, paixão, ironia e compaixão, a história desse jornalista que deseja escrever um romance a sério, porém se afunda cada vez mais no imediato da vida boêmia entre atrizes, milionários e celebridades. A vida devora Marcello (Marcello Mastroianni) e ele, gostosamente, se deixa devorar.
A Doce Vida tem esse caráter de antevisão. Ou melhor, de sensibilidade capaz de captar, ao vivo, em estado nascente, um novo ethos que se desenha na cultura ocidental e no qual estamos metidos até hoje. É um divisor de águas, não apenas do cinema, mas da cultura em seu conjunto.
Assim como Oito e Meio, que tematiza, como nenhum outro filme antes ou depois dele, a crise de identidade de um criador, na figura de Guido Anselmi (Marcello Mastroianni, mais uma vez). Guido vive um bloqueio criativo e se mostra impotente diante do filme que precisa realizar. Joga, nesse conflito, toda a sua vida pessoal, da infância em sua relação com os pais à atual divisão entre uma esposa vigilante (Anouk Aimée), a amante voluptuosa (Sandra Milo) e a mulher ideal (Claudia Cardinale). Entram os desacertos entre diretor e suas atrizes, seu produtor, um crítico cri-cri, etc. Tudo é fricção e conflito de interesses, reais ou imaginários.
O segredo de Oito e Meio é juntar todas essas contradições expostas no enredo num arco imaginário - a ciranda final com música de Nino Rota - em que tudo se recompõe e se harmoniza, pelo menos de forma temporária e onírica. Apenas no campo do sonho, que, no entanto, também faz parte da vida.
Inventor
Quando se fala de Fellini sempre vem à mente seu caráter de inventor. Criador de uma linguagem, de uma biografia imaginária, de uma forma de narrar o real de forma irreal, de mostrar a verdade através da mentira. Um pintor de imagens também, como se pode ver em praticamente todas as suas obras, mas de forma mais acentuada em trabalhos como Casanova (1976), Satyricon (1969), Amarcord (1973) e outros.
Fellini foi múltiplo. Tocou em temas universais, como a aspiração juvenil a uma experiência maior, além dos limites da província, como em Os Boas Vidas (1953). Do advento da sociedade do espetáculo, como vimos em A Doce Vida, e da dissolução da figura do autor em Oito e Meio. Em discussão até hoje contemporânea, embaraçou limites entre ficção e documentário em obras desconcertantes e de difícil classificação como Os Palhaços (1970), Roma (1972) e Entrevista (1987).
Mas também se ocupou de temas urgentes e palpáveis, como a questão democrática diante da violência e do autoritarismo em Ensaio de Orquestra (1978). O Estado italiano, que vivia então o desafio de combater a luta armada das Brigadas Vermelhas e preservar a democracia, é simbolizado no personagem do maestro que impõe ordem a uma orquestra rebelde. Mas o preço dessa ordem é o discurso autoritário, flerte com o nazismo e o fascismo. Aliás, o fascismo, ele já o tematizara de maneira sarcástica em seu Amarcord, memória transfigurada de sua infância em Rimini no tempo de Mussolini.
Ginger e Fred (1985) e Entrevista (1987), dois dos seus filmes da última fase, podem ser vistos como comentários sobre a alienação do homem na sociedade do espetáculo. O poder devorador da TV, no primeiro deles. As entrevistas meio sem sentido que se seguem à filmagem de uma obra imaginária mostrando o vazio dos expedientes publicitários.
Por fim, há seu último filme, o até hoje incompreendido A Voz da Lua. Os lunáticos, como os personagens de Paolo Villaggio e Roberto Benigni, os que sofrem de paranoia e ouvem vozes no fundo dos poços, são talvez os únicos capazes de ouvir a imensa balbúrdia e o ruído que se apossaram da existência social - e olhe que as redes sociais ainda não haviam sido inventadas! Este é, a meu ver, um filme a ser recuperado e reintegrado ao conjunto da obra de Fellini, esse imenso painel crítico da nossa sociedade contemporânea.
O que outros diretores disseram sobre Fellini
“Fellini teve uma enorme influência sobre o meu trabalho, mas também sobre a minha vida. A primeira ideia de ‘Nashville’ me foi sugerida por ‘La Dolce Vita’”
Robert Altman (Cineasta americano)
“Fellini é o cineasta que mais amo. Estou convencido, como ele, de que o universo inteiro é um mistério, que a verdade está no imaginário, e que é preciso fazer trabalhar a imaginação”
Luis Buñuel (Diretor espanhol)
“‘La Dolce Vita’ e ‘Oito e Meio’ tiveram uma formidável influência sobre uma série de cineastas americanos, a começar por este que escreve, mas também por Scorsese, Altman, Woody Allen e muitos outros”
Francis Ford Coppola (Cineasta americano)
“Como todos, eu havia adorado ‘Cidadão Kane’. Mas quando vi ‘Oito e Meio’ compreendi que esta obra-prima estava à altura daquela de Welles”
Roman Polanski (Diretor polonês)
“Os seus filmes são implacáveis representações das nossas doenças e nossos esquálidos delírios. Nesse sentido, se pode dizer que é o mais político de todos os diretores”
Elio Petri (Cineasta italiano)
“Desde ‘Os Boas Vidas’, que claramente inspirou o meu primeiro filme, ‘Caminhos Perigosos’, Fellini continuou a surpreender, a se superar. Com ‘La Dolce Vita’, ‘Oito e Meio’, ‘Amarcord’, conseguiu encontrar novas formas de narração. A sua incomparável habilidade técnica está sempre a serviço da emoção, da poesia”
Martin Scorsese (Diretor americano)
“Orson Welles e Fellini são os maiores cineastas do mundo. Conseguir colocar junto, na mesma imagem, a beleza e o humor, é uma coisa formidável”
François Truffaut (Cineasta francês)
“Tenho uma autêntica adoração por Federico Fellini. Junto com Akira Kurosawa, é o cineasta que admiro mais profundamente. Fellini é riqueza expressiva, generosidade, não redundância. Estou seguro de que permanecerá até o fim dos tempos porque seu cinema é magia pura”
Orson Welles (Cineasta americano)