'Noite Mágica’ evoca final da era romântica de uma das grandes cinematografias do mundo


Longa de Paolo Virzì revisita bastidores do cinema italiano da década de 1990

Por Luiz Zanin Oricchio

É apenas coincidência que duas estreias da semana falem, de maneira nostálgica, do cinema do passado. Era Uma Vez... em Hollywood, Tarantino evoca o final dos anos 1960, enquanto em Noite Mágica, Paolo Virzì visa aos bastidores do cinema italiano de 1990. Nostalgia sem sentido negativo. Trata-se apenas de lembrança de um tempo em que o cinema era ainda dominado mais pelo amor à arte que pela racionalidade econômica.

Giancarlo Giannini em cena de 'Noite Mágica' Foto: Imovision

Noite Mágica começa com um automóvel precipitando-se nas águas do Tibre, em Roma. Dentro, o cadáver do produtor Leandro Saponaro (Giancarlo Giannini). No inquérito policial que se segue, três jovens roteiristas são conduzidos à delegacia para prestar depoimento, pois foram as últimas pessoas a estar com o morto. Dirigindo-se ao delegado, Antonino (Mauro Lamantia), Luciano (Giovanni Toscano) e Eugenia (Irene Vetere) relembram o que aconteceu nos meses anteriores. 

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Antonino veio da Sicília, Luciano da Toscana, e Eugenia é romana. Os três foram finalistas do prêmio Solinas, que seleciona aspirantes a roteiristas. Os jovens aproveitam-se com garra dessa maravilhosa porta de entrada. Mas logo descobrem que o início de carreira resume-se a fazer o trabalho duro a ser assinado por colegas mais velhos e de nome feito na praça, como Furio (Roberto Herlitzka) e Ennio (Paolo Bonacelli), que remetem a personagens reais, Furio Scarpelli (1919-2010) e Ennio De Concini (1923-2008), mestres da idade de ouro de Cinecittà.

Entre as agruras dos iniciantes incluía-se também se submeter aos caprichos de produtores da velha guarda, como Saponaro, sempre com uma aspirante a estrela a tiracolo e contas a pagar. Tanto assim que Saponaro tenta se apropriar das 20 milhões de liras do jovem vencedor do prêmio Solinas para rolar suas próprias dívidas. Numa ocasião, o produtor leva seus discípulos a um set de filmagem mitológico, o de A Voz da Lua, último filme de Federico Fellini. Trata-se de uma transgressão cronológica consciente. Embora A Voz da Lua tenha sido lançado em 1990 – ano em que se desenrola Noite Mágica – suas filmagens foram feitas em 1989. 

Pouco importa, é uma licença poética numa obra que fala de um ambiente real, mas usando a ficção como forma de retratá-lo. Assim como é uma licença que, a certa altura, um “mestre da incomunicabilidade” (Michelangelo Antonioni, provavelmente) convide uma personagem feminina a habitar sua casa vazia e amenizar-lhe a solidão. O convite se dá num momento de transição, o do crepúsculo, fronteira entre o dia e a noite em que surge a luz favorita dos fotógrafos e cineastas – a chamada “hora mágica”. 

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Essa indefinição que, por paradoxo, cria o momento de maior nitidez fotográfica, é o filtro através do qual Virzì sonda o seu próprio passado. Um dos personagens, Luciano, apresenta-se com uma carta de recomendação como aconteceu com o jovem Virzì quando tenta seu ingresso no Centro Sperimentale. É dos seus verdes anos que se trata, portanto. Mas é também o fim de uma época para o cinema da Itália. Tempo não idealizado e retratado em Noite Mágica em seus inúmeros defeitos, preconceitos e abusos, mas também de uma paixão jamais reencontrada. Esta foi para o fundo do Tibre, junto com o corpo do venal e encantador Leandro Saponaro, magnífica criação de Giancarlo Giannini. 

Dinâmico

Paolo Virzì, nascido em Livorno em 1964, mostra-se, aos 55 anos, um diretor em pleno domínio do seu ofício. Sua filmografia revela um diretor competente e pouco rotineiro. Em A Primeira Coisa Bela, Micaela Ramazzotti interpreta a mãe que envergonha o filho ao ser eleita Miss Mamma. A mãe não tem lá um comportamento muito ortodoxo para a Livorno dos anos 1970 e o filho, já adulto, terá de fazer algum esforço para reconciliar-se. 

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Loucas de Alegria essa espécie de “comédia triste” da qual os italianos detêm o segredo, reúne a tímida Donatella (Ramazzotti, mais uma vez) e a extravagante Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi). Ambas estão internadas num hospital psiquiátrico e decidim fugir. Road movie de maluquetes. Em Ella e John, seu filme norte-americano, Virzì põe em cena um casal de idosos, Ella (Helen Mirren) e John (Donald Sutherland) que, contra o conselho de todos, começa uma viagem de carro através do país. O destino: a antiga casa do escritor Ernest Hemingway, na Flórida. 

Virzì faz um cinema dinâmico, em busca do prazer do espectador, mas sem lhe servir o prato frio de sempre. Sem serem revolucionários, seus personagens não se conformam às regras de uma sociedade vista como conservadora. Transgridem. Revoltam-se, de forma explícita ou em silêncio, e decidem fazer o que lhes vem à cabeça, sem dar satisfações a ninguém, e pagando o preço pela rebeldia.

É apenas coincidência que duas estreias da semana falem, de maneira nostálgica, do cinema do passado. Era Uma Vez... em Hollywood, Tarantino evoca o final dos anos 1960, enquanto em Noite Mágica, Paolo Virzì visa aos bastidores do cinema italiano de 1990. Nostalgia sem sentido negativo. Trata-se apenas de lembrança de um tempo em que o cinema era ainda dominado mais pelo amor à arte que pela racionalidade econômica.

Giancarlo Giannini em cena de 'Noite Mágica' Foto: Imovision

Noite Mágica começa com um automóvel precipitando-se nas águas do Tibre, em Roma. Dentro, o cadáver do produtor Leandro Saponaro (Giancarlo Giannini). No inquérito policial que se segue, três jovens roteiristas são conduzidos à delegacia para prestar depoimento, pois foram as últimas pessoas a estar com o morto. Dirigindo-se ao delegado, Antonino (Mauro Lamantia), Luciano (Giovanni Toscano) e Eugenia (Irene Vetere) relembram o que aconteceu nos meses anteriores. 

Antonino veio da Sicília, Luciano da Toscana, e Eugenia é romana. Os três foram finalistas do prêmio Solinas, que seleciona aspirantes a roteiristas. Os jovens aproveitam-se com garra dessa maravilhosa porta de entrada. Mas logo descobrem que o início de carreira resume-se a fazer o trabalho duro a ser assinado por colegas mais velhos e de nome feito na praça, como Furio (Roberto Herlitzka) e Ennio (Paolo Bonacelli), que remetem a personagens reais, Furio Scarpelli (1919-2010) e Ennio De Concini (1923-2008), mestres da idade de ouro de Cinecittà.

Entre as agruras dos iniciantes incluía-se também se submeter aos caprichos de produtores da velha guarda, como Saponaro, sempre com uma aspirante a estrela a tiracolo e contas a pagar. Tanto assim que Saponaro tenta se apropriar das 20 milhões de liras do jovem vencedor do prêmio Solinas para rolar suas próprias dívidas. Numa ocasião, o produtor leva seus discípulos a um set de filmagem mitológico, o de A Voz da Lua, último filme de Federico Fellini. Trata-se de uma transgressão cronológica consciente. Embora A Voz da Lua tenha sido lançado em 1990 – ano em que se desenrola Noite Mágica – suas filmagens foram feitas em 1989. 

Pouco importa, é uma licença poética numa obra que fala de um ambiente real, mas usando a ficção como forma de retratá-lo. Assim como é uma licença que, a certa altura, um “mestre da incomunicabilidade” (Michelangelo Antonioni, provavelmente) convide uma personagem feminina a habitar sua casa vazia e amenizar-lhe a solidão. O convite se dá num momento de transição, o do crepúsculo, fronteira entre o dia e a noite em que surge a luz favorita dos fotógrafos e cineastas – a chamada “hora mágica”. 

Essa indefinição que, por paradoxo, cria o momento de maior nitidez fotográfica, é o filtro através do qual Virzì sonda o seu próprio passado. Um dos personagens, Luciano, apresenta-se com uma carta de recomendação como aconteceu com o jovem Virzì quando tenta seu ingresso no Centro Sperimentale. É dos seus verdes anos que se trata, portanto. Mas é também o fim de uma época para o cinema da Itália. Tempo não idealizado e retratado em Noite Mágica em seus inúmeros defeitos, preconceitos e abusos, mas também de uma paixão jamais reencontrada. Esta foi para o fundo do Tibre, junto com o corpo do venal e encantador Leandro Saponaro, magnífica criação de Giancarlo Giannini. 

Dinâmico

Paolo Virzì, nascido em Livorno em 1964, mostra-se, aos 55 anos, um diretor em pleno domínio do seu ofício. Sua filmografia revela um diretor competente e pouco rotineiro. Em A Primeira Coisa Bela, Micaela Ramazzotti interpreta a mãe que envergonha o filho ao ser eleita Miss Mamma. A mãe não tem lá um comportamento muito ortodoxo para a Livorno dos anos 1970 e o filho, já adulto, terá de fazer algum esforço para reconciliar-se. 

Loucas de Alegria essa espécie de “comédia triste” da qual os italianos detêm o segredo, reúne a tímida Donatella (Ramazzotti, mais uma vez) e a extravagante Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi). Ambas estão internadas num hospital psiquiátrico e decidim fugir. Road movie de maluquetes. Em Ella e John, seu filme norte-americano, Virzì põe em cena um casal de idosos, Ella (Helen Mirren) e John (Donald Sutherland) que, contra o conselho de todos, começa uma viagem de carro através do país. O destino: a antiga casa do escritor Ernest Hemingway, na Flórida. 

Virzì faz um cinema dinâmico, em busca do prazer do espectador, mas sem lhe servir o prato frio de sempre. Sem serem revolucionários, seus personagens não se conformam às regras de uma sociedade vista como conservadora. Transgridem. Revoltam-se, de forma explícita ou em silêncio, e decidem fazer o que lhes vem à cabeça, sem dar satisfações a ninguém, e pagando o preço pela rebeldia.

É apenas coincidência que duas estreias da semana falem, de maneira nostálgica, do cinema do passado. Era Uma Vez... em Hollywood, Tarantino evoca o final dos anos 1960, enquanto em Noite Mágica, Paolo Virzì visa aos bastidores do cinema italiano de 1990. Nostalgia sem sentido negativo. Trata-se apenas de lembrança de um tempo em que o cinema era ainda dominado mais pelo amor à arte que pela racionalidade econômica.

Giancarlo Giannini em cena de 'Noite Mágica' Foto: Imovision

Noite Mágica começa com um automóvel precipitando-se nas águas do Tibre, em Roma. Dentro, o cadáver do produtor Leandro Saponaro (Giancarlo Giannini). No inquérito policial que se segue, três jovens roteiristas são conduzidos à delegacia para prestar depoimento, pois foram as últimas pessoas a estar com o morto. Dirigindo-se ao delegado, Antonino (Mauro Lamantia), Luciano (Giovanni Toscano) e Eugenia (Irene Vetere) relembram o que aconteceu nos meses anteriores. 

Antonino veio da Sicília, Luciano da Toscana, e Eugenia é romana. Os três foram finalistas do prêmio Solinas, que seleciona aspirantes a roteiristas. Os jovens aproveitam-se com garra dessa maravilhosa porta de entrada. Mas logo descobrem que o início de carreira resume-se a fazer o trabalho duro a ser assinado por colegas mais velhos e de nome feito na praça, como Furio (Roberto Herlitzka) e Ennio (Paolo Bonacelli), que remetem a personagens reais, Furio Scarpelli (1919-2010) e Ennio De Concini (1923-2008), mestres da idade de ouro de Cinecittà.

Entre as agruras dos iniciantes incluía-se também se submeter aos caprichos de produtores da velha guarda, como Saponaro, sempre com uma aspirante a estrela a tiracolo e contas a pagar. Tanto assim que Saponaro tenta se apropriar das 20 milhões de liras do jovem vencedor do prêmio Solinas para rolar suas próprias dívidas. Numa ocasião, o produtor leva seus discípulos a um set de filmagem mitológico, o de A Voz da Lua, último filme de Federico Fellini. Trata-se de uma transgressão cronológica consciente. Embora A Voz da Lua tenha sido lançado em 1990 – ano em que se desenrola Noite Mágica – suas filmagens foram feitas em 1989. 

Pouco importa, é uma licença poética numa obra que fala de um ambiente real, mas usando a ficção como forma de retratá-lo. Assim como é uma licença que, a certa altura, um “mestre da incomunicabilidade” (Michelangelo Antonioni, provavelmente) convide uma personagem feminina a habitar sua casa vazia e amenizar-lhe a solidão. O convite se dá num momento de transição, o do crepúsculo, fronteira entre o dia e a noite em que surge a luz favorita dos fotógrafos e cineastas – a chamada “hora mágica”. 

Essa indefinição que, por paradoxo, cria o momento de maior nitidez fotográfica, é o filtro através do qual Virzì sonda o seu próprio passado. Um dos personagens, Luciano, apresenta-se com uma carta de recomendação como aconteceu com o jovem Virzì quando tenta seu ingresso no Centro Sperimentale. É dos seus verdes anos que se trata, portanto. Mas é também o fim de uma época para o cinema da Itália. Tempo não idealizado e retratado em Noite Mágica em seus inúmeros defeitos, preconceitos e abusos, mas também de uma paixão jamais reencontrada. Esta foi para o fundo do Tibre, junto com o corpo do venal e encantador Leandro Saponaro, magnífica criação de Giancarlo Giannini. 

Dinâmico

Paolo Virzì, nascido em Livorno em 1964, mostra-se, aos 55 anos, um diretor em pleno domínio do seu ofício. Sua filmografia revela um diretor competente e pouco rotineiro. Em A Primeira Coisa Bela, Micaela Ramazzotti interpreta a mãe que envergonha o filho ao ser eleita Miss Mamma. A mãe não tem lá um comportamento muito ortodoxo para a Livorno dos anos 1970 e o filho, já adulto, terá de fazer algum esforço para reconciliar-se. 

Loucas de Alegria essa espécie de “comédia triste” da qual os italianos detêm o segredo, reúne a tímida Donatella (Ramazzotti, mais uma vez) e a extravagante Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi). Ambas estão internadas num hospital psiquiátrico e decidim fugir. Road movie de maluquetes. Em Ella e John, seu filme norte-americano, Virzì põe em cena um casal de idosos, Ella (Helen Mirren) e John (Donald Sutherland) que, contra o conselho de todos, começa uma viagem de carro através do país. O destino: a antiga casa do escritor Ernest Hemingway, na Flórida. 

Virzì faz um cinema dinâmico, em busca do prazer do espectador, mas sem lhe servir o prato frio de sempre. Sem serem revolucionários, seus personagens não se conformam às regras de uma sociedade vista como conservadora. Transgridem. Revoltam-se, de forma explícita ou em silêncio, e decidem fazer o que lhes vem à cabeça, sem dar satisfações a ninguém, e pagando o preço pela rebeldia.

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