'Nomadland': Amizade e solidão são os pólos entre os quais o filme oscila


Tensão entre estabilidade e desarranjos, entre o consolo ilusório do lar e a atração perigosa da estrada aberta, é o ponto central do terceiro filme íntimo e extenso de Chloé Zhao

Por A.O. Scott

“As pessoas querem ficar estabilizadas na vida”, escreveu Ralph Waldo Emerson. “Mas quando não estão é que existe alguma esperança para elas”.

Esta tensão entre estabilidade e desarranjos, entre o consolo ilusório do lar e a atração perigosa da estrada aberta, é o ponto central de Nomadland, terceiro filme íntimo e extenso de Chloé Zhao.

Baseado no livro de Jessica Bruder que leva o mesmo nome, Nomadland é protagonizado por Frances McDormand no papel de Fern, uma moradora de um local que outrora era real. O filme começa com o fim da Empire, de Nevada, uma cidade criada por uma companhia que oficialmente foi extinta no final de 2010 depois de a mina de gesso e a fábrica Sheetrock serem fechadas. Fern, que é viúva, pega a estrada numa van branca que batizou com o nome de Vanguard e adaptou, com um espaço para dormir, uma área de cozinha e um depósito para as poucas lembranças da sua vida pregressa. Fern e Vanguard se juntam a uma tribo dispersa, uma subcultura, um movimento de americanos itinerantes e seus veículos, uma nação nômade dentro das fronteiras dos Estados Unidos.

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Frances McDormand em cena do filme 'Nomadland'. Foto: Searchlight Pictures via AP

O livro de Bruder, que se desenvolve na esteira na Grande Depressão, enfatiza a convulsão econômica e a fratura social que levou pessoas como Fern, de meia idade ou mais velhas, de classe média, mais ou menos, a caírem na estrada. Debilitadas por causa do desemprego, casamentos rompidos, pensões perdidas e o colapso do valor de suas casas, elas trabalham longas horas em armazéns da Amazon durante os feriados no inverno e são mal pagas por algum trabalho em parques nacionais nos meses de verão. São pessoas descompromissadas, mas também desesperadas, oprimidas pela desigualdade crescente e uma rede de proteção social deteriorada.

Zhao suaviza um pouco essa crítica social, concentrando-se em aspectos práticos da vida vagabunda e as qualidades pessoais de cada um - resiliência, solidariedade, frugalidade. Exceto no caso de McDormand e alguns outros, quase todas as pessoas retratadas em Nomadland interpretam versões delas mesmas, numa transição um pouco mágica da não ficção para a tela do documentário. Entre elas está Bob Wells, o mentor barbudo das legiões de moradores de vans, que os convoca para um conclave anual - em parte um festival de cultura, em parte um seminário de autoajuda, em Quartzite, no Arizona. Swankie, um intrépido praticante de caiaque, solucionador de problemas e amante da natureza; e Linda May, uma figura central no livro de Bruder que quase rouba o filme como a melhor amiga de Fern.

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Amizade e solidão são os pólos entre os quais o filme de Zhao oscila. O filme tem uma estrutura episódica e solta e um clima de tenacidade que se equipara ao etos que explora. Zhao, que editou Nomadland além de criar o roteiro e dirigir, às vezes se fixa longamente nas majestosas paisagens do Oeste e às vezes passa rapidamente de um detalhe para o próximo. Como em Domando o Destino, seu filme de 2018 sobre um cowboy de rodeio na Dakota do Sul, está muito atenta à interação entre a emoção humana e a geografia - à maneira que o espaço, a luz e o vento revelam o personagem.

Zhao captura o trabalho e o tédio dos dias de Fern - as longas horas na direção ou no emprego: as perturbações causadas pelo clima, os conflitos interpessoais ou problemas com o seu veículo - sem pressa e nem delongas. Nomadland é paciente, compassivo e aberto, motivado por um impulso de perambular e observar em vez de julgar ou explicar.

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Fern, vamos descobrir, tem uma irmã (Melissa Smith) que a ajuda a sair de um congestionamento e a elogia como “a mais corajosa e mais honesta” da família. Acreditamos nessas palavras porque elas também se aplicam a McDormand, cuja força de caráter, empatia e disciplina nunca ficaram tão fortemente evidentes. Não quero sugerir que esta é uma mostra de técnica de atuação que implica um prêmio, a personificação de uma estrela de cinema de uma pessoa comum. É mais o oposto. Muito do que McDormand faz é ouvido, dando apoio emocional e moral a atores não profissionais quando eles contam suas histórias. Sua competência e sensibilidade o convence que o que você está vendo na tela não é apenas realista, mas é verdade.

O que me leva, um pouco relutante, a David Strathairn, que interpreta um andarilho amigo chamado Dave. É um tipo de fala mansa, grisalho que chama a atenção de Fern e gentilmente tenta conquistar sua afeição. Suas tentativas para ser prestativo são desajeitadas e nem sempre bem ponderadas. Ele oferece a ela um saco de palitos de alcaçuz quando o que ela quer é um maço de cigarros - e embora Fern goste muito dele, seus sentimentos são decididamente ambivalentes.

Os meus também. Straitharn é um ator maravilhoso e uma presença masculina interessante, não tóxica, mas o fato é que você sabe, tão logo o vê, que ele é um problema. Nosso primeiro vislumbre de Dave, aparecendo por trás de uma caixa de abridores de lata, numa reunião em que as pessoas fazem trocas, é quase um spoiler. O vasto horizonte da história se comprime numa trama. Ele promete - ou ameaça - que uma narrativa familiar de Fern repentinamente vai apanhá-la, e o filme, de surpresa.

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Frances McDormand, esquerda, e David Strathairn em 'Nomadland'. Foto: Searchlight Pictures via AP

Até certo ponto Nomadland deseja que as coisas se estabilizem - não necessariamente domesticar sua heroína, mas pelo menos tornar sua jornada mais ou menos previsível. Ao mesmo tempo, e num sutil espírito Emersoniano, o filme se rebela contra seus próprios impulsos convencionais, gravitando em torno de uma ideia de experiência que é mais complicada, mais indeterminada e mais contraditória do que muitos filmes americanos se dispõem a permitir.

A visão de Zhao do Oeste inclui formações rochosas de tirar o fôlego, antigas florestas e vistas amplas do deserto, e também parques de estacionamento cobertos de gelo, áreas de acampamento sujas e cavernosas, locais de trabalho sem alma. Diante de um pano de fundo como as Badlands ou de um centro de armazenamento e distribuição da Amazon, um indivíduo pode se reduzir a zero. A existência nômade é ao mesmo tempo o reconhecimento da impermanência humana e um protesto contra ela.

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Fern e seus amigos estão unidos pela experiência da perda e pelo espírito de aventura. Muitas histórias que eles compartilham são marcadas pelo sofrimento. É difícil descrever essa mistura de tristeza, assombro e gratidão que você sente na companhia deles - na companhia de Fern e através dos seus olhos e ouvidos. É como descobrir um novo país, um país que você deseja visitar mais de uma vez.

 Tradução de Terezinha Martino

“As pessoas querem ficar estabilizadas na vida”, escreveu Ralph Waldo Emerson. “Mas quando não estão é que existe alguma esperança para elas”.

Esta tensão entre estabilidade e desarranjos, entre o consolo ilusório do lar e a atração perigosa da estrada aberta, é o ponto central de Nomadland, terceiro filme íntimo e extenso de Chloé Zhao.

Baseado no livro de Jessica Bruder que leva o mesmo nome, Nomadland é protagonizado por Frances McDormand no papel de Fern, uma moradora de um local que outrora era real. O filme começa com o fim da Empire, de Nevada, uma cidade criada por uma companhia que oficialmente foi extinta no final de 2010 depois de a mina de gesso e a fábrica Sheetrock serem fechadas. Fern, que é viúva, pega a estrada numa van branca que batizou com o nome de Vanguard e adaptou, com um espaço para dormir, uma área de cozinha e um depósito para as poucas lembranças da sua vida pregressa. Fern e Vanguard se juntam a uma tribo dispersa, uma subcultura, um movimento de americanos itinerantes e seus veículos, uma nação nômade dentro das fronteiras dos Estados Unidos.

Frances McDormand em cena do filme 'Nomadland'. Foto: Searchlight Pictures via AP

O livro de Bruder, que se desenvolve na esteira na Grande Depressão, enfatiza a convulsão econômica e a fratura social que levou pessoas como Fern, de meia idade ou mais velhas, de classe média, mais ou menos, a caírem na estrada. Debilitadas por causa do desemprego, casamentos rompidos, pensões perdidas e o colapso do valor de suas casas, elas trabalham longas horas em armazéns da Amazon durante os feriados no inverno e são mal pagas por algum trabalho em parques nacionais nos meses de verão. São pessoas descompromissadas, mas também desesperadas, oprimidas pela desigualdade crescente e uma rede de proteção social deteriorada.

Zhao suaviza um pouco essa crítica social, concentrando-se em aspectos práticos da vida vagabunda e as qualidades pessoais de cada um - resiliência, solidariedade, frugalidade. Exceto no caso de McDormand e alguns outros, quase todas as pessoas retratadas em Nomadland interpretam versões delas mesmas, numa transição um pouco mágica da não ficção para a tela do documentário. Entre elas está Bob Wells, o mentor barbudo das legiões de moradores de vans, que os convoca para um conclave anual - em parte um festival de cultura, em parte um seminário de autoajuda, em Quartzite, no Arizona. Swankie, um intrépido praticante de caiaque, solucionador de problemas e amante da natureza; e Linda May, uma figura central no livro de Bruder que quase rouba o filme como a melhor amiga de Fern.

Amizade e solidão são os pólos entre os quais o filme de Zhao oscila. O filme tem uma estrutura episódica e solta e um clima de tenacidade que se equipara ao etos que explora. Zhao, que editou Nomadland além de criar o roteiro e dirigir, às vezes se fixa longamente nas majestosas paisagens do Oeste e às vezes passa rapidamente de um detalhe para o próximo. Como em Domando o Destino, seu filme de 2018 sobre um cowboy de rodeio na Dakota do Sul, está muito atenta à interação entre a emoção humana e a geografia - à maneira que o espaço, a luz e o vento revelam o personagem.

Zhao captura o trabalho e o tédio dos dias de Fern - as longas horas na direção ou no emprego: as perturbações causadas pelo clima, os conflitos interpessoais ou problemas com o seu veículo - sem pressa e nem delongas. Nomadland é paciente, compassivo e aberto, motivado por um impulso de perambular e observar em vez de julgar ou explicar.

Fern, vamos descobrir, tem uma irmã (Melissa Smith) que a ajuda a sair de um congestionamento e a elogia como “a mais corajosa e mais honesta” da família. Acreditamos nessas palavras porque elas também se aplicam a McDormand, cuja força de caráter, empatia e disciplina nunca ficaram tão fortemente evidentes. Não quero sugerir que esta é uma mostra de técnica de atuação que implica um prêmio, a personificação de uma estrela de cinema de uma pessoa comum. É mais o oposto. Muito do que McDormand faz é ouvido, dando apoio emocional e moral a atores não profissionais quando eles contam suas histórias. Sua competência e sensibilidade o convence que o que você está vendo na tela não é apenas realista, mas é verdade.

O que me leva, um pouco relutante, a David Strathairn, que interpreta um andarilho amigo chamado Dave. É um tipo de fala mansa, grisalho que chama a atenção de Fern e gentilmente tenta conquistar sua afeição. Suas tentativas para ser prestativo são desajeitadas e nem sempre bem ponderadas. Ele oferece a ela um saco de palitos de alcaçuz quando o que ela quer é um maço de cigarros - e embora Fern goste muito dele, seus sentimentos são decididamente ambivalentes.

Os meus também. Straitharn é um ator maravilhoso e uma presença masculina interessante, não tóxica, mas o fato é que você sabe, tão logo o vê, que ele é um problema. Nosso primeiro vislumbre de Dave, aparecendo por trás de uma caixa de abridores de lata, numa reunião em que as pessoas fazem trocas, é quase um spoiler. O vasto horizonte da história se comprime numa trama. Ele promete - ou ameaça - que uma narrativa familiar de Fern repentinamente vai apanhá-la, e o filme, de surpresa.

Frances McDormand, esquerda, e David Strathairn em 'Nomadland'. Foto: Searchlight Pictures via AP

Até certo ponto Nomadland deseja que as coisas se estabilizem - não necessariamente domesticar sua heroína, mas pelo menos tornar sua jornada mais ou menos previsível. Ao mesmo tempo, e num sutil espírito Emersoniano, o filme se rebela contra seus próprios impulsos convencionais, gravitando em torno de uma ideia de experiência que é mais complicada, mais indeterminada e mais contraditória do que muitos filmes americanos se dispõem a permitir.

A visão de Zhao do Oeste inclui formações rochosas de tirar o fôlego, antigas florestas e vistas amplas do deserto, e também parques de estacionamento cobertos de gelo, áreas de acampamento sujas e cavernosas, locais de trabalho sem alma. Diante de um pano de fundo como as Badlands ou de um centro de armazenamento e distribuição da Amazon, um indivíduo pode se reduzir a zero. A existência nômade é ao mesmo tempo o reconhecimento da impermanência humana e um protesto contra ela.

Fern e seus amigos estão unidos pela experiência da perda e pelo espírito de aventura. Muitas histórias que eles compartilham são marcadas pelo sofrimento. É difícil descrever essa mistura de tristeza, assombro e gratidão que você sente na companhia deles - na companhia de Fern e através dos seus olhos e ouvidos. É como descobrir um novo país, um país que você deseja visitar mais de uma vez.

 Tradução de Terezinha Martino

“As pessoas querem ficar estabilizadas na vida”, escreveu Ralph Waldo Emerson. “Mas quando não estão é que existe alguma esperança para elas”.

Esta tensão entre estabilidade e desarranjos, entre o consolo ilusório do lar e a atração perigosa da estrada aberta, é o ponto central de Nomadland, terceiro filme íntimo e extenso de Chloé Zhao.

Baseado no livro de Jessica Bruder que leva o mesmo nome, Nomadland é protagonizado por Frances McDormand no papel de Fern, uma moradora de um local que outrora era real. O filme começa com o fim da Empire, de Nevada, uma cidade criada por uma companhia que oficialmente foi extinta no final de 2010 depois de a mina de gesso e a fábrica Sheetrock serem fechadas. Fern, que é viúva, pega a estrada numa van branca que batizou com o nome de Vanguard e adaptou, com um espaço para dormir, uma área de cozinha e um depósito para as poucas lembranças da sua vida pregressa. Fern e Vanguard se juntam a uma tribo dispersa, uma subcultura, um movimento de americanos itinerantes e seus veículos, uma nação nômade dentro das fronteiras dos Estados Unidos.

Frances McDormand em cena do filme 'Nomadland'. Foto: Searchlight Pictures via AP

O livro de Bruder, que se desenvolve na esteira na Grande Depressão, enfatiza a convulsão econômica e a fratura social que levou pessoas como Fern, de meia idade ou mais velhas, de classe média, mais ou menos, a caírem na estrada. Debilitadas por causa do desemprego, casamentos rompidos, pensões perdidas e o colapso do valor de suas casas, elas trabalham longas horas em armazéns da Amazon durante os feriados no inverno e são mal pagas por algum trabalho em parques nacionais nos meses de verão. São pessoas descompromissadas, mas também desesperadas, oprimidas pela desigualdade crescente e uma rede de proteção social deteriorada.

Zhao suaviza um pouco essa crítica social, concentrando-se em aspectos práticos da vida vagabunda e as qualidades pessoais de cada um - resiliência, solidariedade, frugalidade. Exceto no caso de McDormand e alguns outros, quase todas as pessoas retratadas em Nomadland interpretam versões delas mesmas, numa transição um pouco mágica da não ficção para a tela do documentário. Entre elas está Bob Wells, o mentor barbudo das legiões de moradores de vans, que os convoca para um conclave anual - em parte um festival de cultura, em parte um seminário de autoajuda, em Quartzite, no Arizona. Swankie, um intrépido praticante de caiaque, solucionador de problemas e amante da natureza; e Linda May, uma figura central no livro de Bruder que quase rouba o filme como a melhor amiga de Fern.

Amizade e solidão são os pólos entre os quais o filme de Zhao oscila. O filme tem uma estrutura episódica e solta e um clima de tenacidade que se equipara ao etos que explora. Zhao, que editou Nomadland além de criar o roteiro e dirigir, às vezes se fixa longamente nas majestosas paisagens do Oeste e às vezes passa rapidamente de um detalhe para o próximo. Como em Domando o Destino, seu filme de 2018 sobre um cowboy de rodeio na Dakota do Sul, está muito atenta à interação entre a emoção humana e a geografia - à maneira que o espaço, a luz e o vento revelam o personagem.

Zhao captura o trabalho e o tédio dos dias de Fern - as longas horas na direção ou no emprego: as perturbações causadas pelo clima, os conflitos interpessoais ou problemas com o seu veículo - sem pressa e nem delongas. Nomadland é paciente, compassivo e aberto, motivado por um impulso de perambular e observar em vez de julgar ou explicar.

Fern, vamos descobrir, tem uma irmã (Melissa Smith) que a ajuda a sair de um congestionamento e a elogia como “a mais corajosa e mais honesta” da família. Acreditamos nessas palavras porque elas também se aplicam a McDormand, cuja força de caráter, empatia e disciplina nunca ficaram tão fortemente evidentes. Não quero sugerir que esta é uma mostra de técnica de atuação que implica um prêmio, a personificação de uma estrela de cinema de uma pessoa comum. É mais o oposto. Muito do que McDormand faz é ouvido, dando apoio emocional e moral a atores não profissionais quando eles contam suas histórias. Sua competência e sensibilidade o convence que o que você está vendo na tela não é apenas realista, mas é verdade.

O que me leva, um pouco relutante, a David Strathairn, que interpreta um andarilho amigo chamado Dave. É um tipo de fala mansa, grisalho que chama a atenção de Fern e gentilmente tenta conquistar sua afeição. Suas tentativas para ser prestativo são desajeitadas e nem sempre bem ponderadas. Ele oferece a ela um saco de palitos de alcaçuz quando o que ela quer é um maço de cigarros - e embora Fern goste muito dele, seus sentimentos são decididamente ambivalentes.

Os meus também. Straitharn é um ator maravilhoso e uma presença masculina interessante, não tóxica, mas o fato é que você sabe, tão logo o vê, que ele é um problema. Nosso primeiro vislumbre de Dave, aparecendo por trás de uma caixa de abridores de lata, numa reunião em que as pessoas fazem trocas, é quase um spoiler. O vasto horizonte da história se comprime numa trama. Ele promete - ou ameaça - que uma narrativa familiar de Fern repentinamente vai apanhá-la, e o filme, de surpresa.

Frances McDormand, esquerda, e David Strathairn em 'Nomadland'. Foto: Searchlight Pictures via AP

Até certo ponto Nomadland deseja que as coisas se estabilizem - não necessariamente domesticar sua heroína, mas pelo menos tornar sua jornada mais ou menos previsível. Ao mesmo tempo, e num sutil espírito Emersoniano, o filme se rebela contra seus próprios impulsos convencionais, gravitando em torno de uma ideia de experiência que é mais complicada, mais indeterminada e mais contraditória do que muitos filmes americanos se dispõem a permitir.

A visão de Zhao do Oeste inclui formações rochosas de tirar o fôlego, antigas florestas e vistas amplas do deserto, e também parques de estacionamento cobertos de gelo, áreas de acampamento sujas e cavernosas, locais de trabalho sem alma. Diante de um pano de fundo como as Badlands ou de um centro de armazenamento e distribuição da Amazon, um indivíduo pode se reduzir a zero. A existência nômade é ao mesmo tempo o reconhecimento da impermanência humana e um protesto contra ela.

Fern e seus amigos estão unidos pela experiência da perda e pelo espírito de aventura. Muitas histórias que eles compartilham são marcadas pelo sofrimento. É difícil descrever essa mistura de tristeza, assombro e gratidão que você sente na companhia deles - na companhia de Fern e através dos seus olhos e ouvidos. É como descobrir um novo país, um país que você deseja visitar mais de uma vez.

 Tradução de Terezinha Martino

“As pessoas querem ficar estabilizadas na vida”, escreveu Ralph Waldo Emerson. “Mas quando não estão é que existe alguma esperança para elas”.

Esta tensão entre estabilidade e desarranjos, entre o consolo ilusório do lar e a atração perigosa da estrada aberta, é o ponto central de Nomadland, terceiro filme íntimo e extenso de Chloé Zhao.

Baseado no livro de Jessica Bruder que leva o mesmo nome, Nomadland é protagonizado por Frances McDormand no papel de Fern, uma moradora de um local que outrora era real. O filme começa com o fim da Empire, de Nevada, uma cidade criada por uma companhia que oficialmente foi extinta no final de 2010 depois de a mina de gesso e a fábrica Sheetrock serem fechadas. Fern, que é viúva, pega a estrada numa van branca que batizou com o nome de Vanguard e adaptou, com um espaço para dormir, uma área de cozinha e um depósito para as poucas lembranças da sua vida pregressa. Fern e Vanguard se juntam a uma tribo dispersa, uma subcultura, um movimento de americanos itinerantes e seus veículos, uma nação nômade dentro das fronteiras dos Estados Unidos.

Frances McDormand em cena do filme 'Nomadland'. Foto: Searchlight Pictures via AP

O livro de Bruder, que se desenvolve na esteira na Grande Depressão, enfatiza a convulsão econômica e a fratura social que levou pessoas como Fern, de meia idade ou mais velhas, de classe média, mais ou menos, a caírem na estrada. Debilitadas por causa do desemprego, casamentos rompidos, pensões perdidas e o colapso do valor de suas casas, elas trabalham longas horas em armazéns da Amazon durante os feriados no inverno e são mal pagas por algum trabalho em parques nacionais nos meses de verão. São pessoas descompromissadas, mas também desesperadas, oprimidas pela desigualdade crescente e uma rede de proteção social deteriorada.

Zhao suaviza um pouco essa crítica social, concentrando-se em aspectos práticos da vida vagabunda e as qualidades pessoais de cada um - resiliência, solidariedade, frugalidade. Exceto no caso de McDormand e alguns outros, quase todas as pessoas retratadas em Nomadland interpretam versões delas mesmas, numa transição um pouco mágica da não ficção para a tela do documentário. Entre elas está Bob Wells, o mentor barbudo das legiões de moradores de vans, que os convoca para um conclave anual - em parte um festival de cultura, em parte um seminário de autoajuda, em Quartzite, no Arizona. Swankie, um intrépido praticante de caiaque, solucionador de problemas e amante da natureza; e Linda May, uma figura central no livro de Bruder que quase rouba o filme como a melhor amiga de Fern.

Amizade e solidão são os pólos entre os quais o filme de Zhao oscila. O filme tem uma estrutura episódica e solta e um clima de tenacidade que se equipara ao etos que explora. Zhao, que editou Nomadland além de criar o roteiro e dirigir, às vezes se fixa longamente nas majestosas paisagens do Oeste e às vezes passa rapidamente de um detalhe para o próximo. Como em Domando o Destino, seu filme de 2018 sobre um cowboy de rodeio na Dakota do Sul, está muito atenta à interação entre a emoção humana e a geografia - à maneira que o espaço, a luz e o vento revelam o personagem.

Zhao captura o trabalho e o tédio dos dias de Fern - as longas horas na direção ou no emprego: as perturbações causadas pelo clima, os conflitos interpessoais ou problemas com o seu veículo - sem pressa e nem delongas. Nomadland é paciente, compassivo e aberto, motivado por um impulso de perambular e observar em vez de julgar ou explicar.

Fern, vamos descobrir, tem uma irmã (Melissa Smith) que a ajuda a sair de um congestionamento e a elogia como “a mais corajosa e mais honesta” da família. Acreditamos nessas palavras porque elas também se aplicam a McDormand, cuja força de caráter, empatia e disciplina nunca ficaram tão fortemente evidentes. Não quero sugerir que esta é uma mostra de técnica de atuação que implica um prêmio, a personificação de uma estrela de cinema de uma pessoa comum. É mais o oposto. Muito do que McDormand faz é ouvido, dando apoio emocional e moral a atores não profissionais quando eles contam suas histórias. Sua competência e sensibilidade o convence que o que você está vendo na tela não é apenas realista, mas é verdade.

O que me leva, um pouco relutante, a David Strathairn, que interpreta um andarilho amigo chamado Dave. É um tipo de fala mansa, grisalho que chama a atenção de Fern e gentilmente tenta conquistar sua afeição. Suas tentativas para ser prestativo são desajeitadas e nem sempre bem ponderadas. Ele oferece a ela um saco de palitos de alcaçuz quando o que ela quer é um maço de cigarros - e embora Fern goste muito dele, seus sentimentos são decididamente ambivalentes.

Os meus também. Straitharn é um ator maravilhoso e uma presença masculina interessante, não tóxica, mas o fato é que você sabe, tão logo o vê, que ele é um problema. Nosso primeiro vislumbre de Dave, aparecendo por trás de uma caixa de abridores de lata, numa reunião em que as pessoas fazem trocas, é quase um spoiler. O vasto horizonte da história se comprime numa trama. Ele promete - ou ameaça - que uma narrativa familiar de Fern repentinamente vai apanhá-la, e o filme, de surpresa.

Frances McDormand, esquerda, e David Strathairn em 'Nomadland'. Foto: Searchlight Pictures via AP

Até certo ponto Nomadland deseja que as coisas se estabilizem - não necessariamente domesticar sua heroína, mas pelo menos tornar sua jornada mais ou menos previsível. Ao mesmo tempo, e num sutil espírito Emersoniano, o filme se rebela contra seus próprios impulsos convencionais, gravitando em torno de uma ideia de experiência que é mais complicada, mais indeterminada e mais contraditória do que muitos filmes americanos se dispõem a permitir.

A visão de Zhao do Oeste inclui formações rochosas de tirar o fôlego, antigas florestas e vistas amplas do deserto, e também parques de estacionamento cobertos de gelo, áreas de acampamento sujas e cavernosas, locais de trabalho sem alma. Diante de um pano de fundo como as Badlands ou de um centro de armazenamento e distribuição da Amazon, um indivíduo pode se reduzir a zero. A existência nômade é ao mesmo tempo o reconhecimento da impermanência humana e um protesto contra ela.

Fern e seus amigos estão unidos pela experiência da perda e pelo espírito de aventura. Muitas histórias que eles compartilham são marcadas pelo sofrimento. É difícil descrever essa mistura de tristeza, assombro e gratidão que você sente na companhia deles - na companhia de Fern e através dos seus olhos e ouvidos. É como descobrir um novo país, um país que você deseja visitar mais de uma vez.

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