‘O Crime É Meu’, de François Ozon, conta caso de assédio e morte para fazer comédia de época afiada


Diretor adapta peça dos anos 1930 e escala uma das garotas da hora do jovem cinema na França, Nadia Tareszkiewicz, ao lado da veterana Isabelle Huppert

Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Jovem candidata a atriz é acusada de assassinar um produtor. Em vez de negar o crime, ela, com sua advogada, decide confessar a culpa e alegar legítima defesa, porque sofrera assédio sexual no encontro com o homem mais velho. É por esse caminho tortuoso que O Crime É Meu, comédia francesa de época, envereda. E, assim fazendo, ironiza alguns atributos da “civilização cristã ocidental”, tal como o machismo estrutural, presente até mesmo quando em aparência defende as mulheres da violência dos próprios homens.

A história, dirigida pelo prolífico François Ozon (faz um filme por ano), é baseada em peça teatral dos anos 1930, de Louis Verneuil e Georges Berr. Já teve duas adaptações para o cinema. A primeira em 1937, por Wesley Ruggles, com o título de True Confession. A segunda, em 1945, de John Berry, chamada Cross My Heart, com a diva Carole Lombard no papel principal.

Desta vez, na primeira versão cinematográfica francesa da peça, quem interpreta a protagonista Madeleine Verdier é uma das garotas da hora do jovem cinema na França, a loiríssima Nadia Tareszkiewicz. Madeleine vive no mesmo quartinho modesto com a amiga, a advogada Pauline Mauléon, interpretada por Rebecca Marder, vista há pouco em Uma Garota Radiante, título que a define à perfeição. As duas vivem à beira da penúria e chegam a dividir o leito no inverno para se aquecer mutuamente. Mas não é o que supõe a maledicente vizinhança e menos ainda a concierge (zeladora) linguaruda.

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Nessa situação, Madeleine, atriz de escasso sucesso e em busca de oportunidade, atende ao convite do produtor, velho lobo à espreita de carne jovem. Após o encontro, ele aparece morto com um tiro de pistola. Como houve assédio, Madeleine se torna a suspeita óbvia.

O tom escolhido para a filmagem é todo moldado na comédia ligeira - a comédia de boulevard, como dizem os franceses. Quer dizer, feita de diálogos rápidos, expressões faciais marcadas, o conjunto todo montado como farsa. Já se sabe, esse tipo de comédia é um dos melhores atalhos para fazer crítica social. O público diverte-se, ninguém exige profundidade, e, mesmo assim, os desmandos são denunciados através do recurso ao ridículo. Quando inteligente, o riso pode ser politicamente corrosivo.

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No caso, é soda cáustica pura. Vemos toda a hipocrisia social se desfazer em cenas constrangedoras envolvendo em especial os homens, esses opressores em série. A estrutura de poder montada há séculos é posta a balançar diante da proverbial astúcia feminina. Não deixa de ser curioso o surgimento deste filme, que coloca no pedestal a força da malícia, justo no momento em que o afrontamento ao patriarcalismo e à opressão social é feito de maneira direta e agressiva pela nova onda feminista e identitária.

Mas a índole do filme, por certo simpática às mulheres, ficaria explícita demais, e mesmo didática, caso Ozon trouxesse a antiga história para o ambiente da época atual. Ao circunscrevê-la em seu tempo de origem, na França senhorial e discriminatória, embora envernizada em polidez e elegância, obtém o rendimento maior da sutileza e do discurso indireto. Da ironia, para dizer numa só palavra. Nesse quadro de época, de cem anos atrás, as duas jovens atrizes brilham. Dá gosto vê-las contracenar.

Entra Huppert

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Já o terceiro elemento responsável pelo sucesso (mais de um milhão de ingressos vendidos na França) entra apenas na fase final da obra e atende pelo nome de Isabelle Huppert. Onipresente Huppert, que, mesmo no longínquo país chamado Brasil, torna-se figurinha carimbada, pelo menos nos meios cinéfilos. Na estreia da semana passada, A Sindicalista, ela ocupa o papel principal como a ambígua e lutadora líder sindical Maureen Kearney. Na semana anterior, em A Vida sem Ele, ela é Joan, mulher madura vivendo de lembranças nem sempre confiáveis. Em O Crime É Meu, ela seria coadjuvante, caso esse termo se aplicasse a atriz tão marcante.

Isabelle Huppert, Rebecca Marder e Nadia Tereszkiewicz em 'O crime é meu' Foto: Carole Bethuel / Divulgação

Huppert surge no terço final de O Crime É Meu como Odette Chaumette, velha diva do cinema mudo saída da sombra para reivindicar seus direitos. Quais direitos? Quem for ver o filme descobrirá. De qualquer forma, sua aparição desenvolta, língua solta e flamejante cabeleira ruiva, vira tudo de cabeça para baixo e acrescenta camada a mais de absurdo a essa comédia maluca. A veterana Huppert dá-se muito bem contracenando com jovens atrizes que, por certo, devem ser suas admiradoras.

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Nessa comédia, que com alguma liberdade se pode chamar de feminista, é natural as mulheres ocuparem papel central. Mas, por não ser tolamente sectária, reserva aos homens papéis importantes, ainda que secundários no contexto da trama. Nem poderia ser diferente com elenco que conta com um mestre como Fabrice Luchini no papel de Gustave Rabusset, inseguro juiz de instrução, Olivier Broche como o hilário escrivão de justiça Léon Trupu, o grande André Dussollier como o industrial Monsieur Bonnard, e o cômico Dany Boon, hilário com seu falso sotaque marselhês no papel do seboso milionário Palmarède.

O Crime é Meu é uma comédia que funciona, isto é, faz rir, e além disso, castiga os costumes, como recomenda o velho dito latino. Mas é também homenagem de Ozon tanto ao teatro como ao cinema, suas duas artes de preferência. Ele conserva, com evidência, o estofo de palco proveniente da peça original. Mas coloca o conjunto em modo cinematográfico, sem desfigurá-lo.

Aproveita as oportunidades possíveis para também prestar seu tributo ao cinema e sua história. Por exemplo, quando entra em cena, a atriz Odette Chaumette proclama ter feito mais de cem filmes na era muda, com Louis Feuillade, Abel Gance e Alice Guy-Blaché. Esta última foi pioneira do cinema, um nome feminino relativamente esquecido e agora redescoberto pelo belo documentário Alice Guy-Blaché - A História não Contada da Primeira Cineasta do Mundo, de Pamela Green. Gance foi autor do épico Napoleão (1927), e Feuillade dirigiu a série dos anos 1920 Vampires, há pouco evocada por Olivier Assayas em Irma Vep, série muito boa disponível na HBO MAX.

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Outra referência: quando se comenta o assassinato do produtor, é evocado o nome de Violette Nozière, adolescente pivô de caso criminal célebre na França dos anos 1930, filmado em 1978 por Claude Chabrol e estrelado pela então jovem atriz ascendente de nome Isabelle Huppert.

Tantas citações e referências se encadeiam de maneira natural e progressiva, sem sobrecarregar a narrativa. Quem as conhece, diverte-se com elas e com o engenho do diretor em encaixá-las na narrativa. Quem nunca ouviu falar delas aproveita o filme do mesmo jeito. Ave rara entre os lançamentos de cinema, O Crime É Meu é, antes de tudo, divertimento de primeira.

Nadia Tereszkiewicz em 'O crime é meu' Foto: Carole Bethuel / Divulgação

Jovem candidata a atriz é acusada de assassinar um produtor. Em vez de negar o crime, ela, com sua advogada, decide confessar a culpa e alegar legítima defesa, porque sofrera assédio sexual no encontro com o homem mais velho. É por esse caminho tortuoso que O Crime É Meu, comédia francesa de época, envereda. E, assim fazendo, ironiza alguns atributos da “civilização cristã ocidental”, tal como o machismo estrutural, presente até mesmo quando em aparência defende as mulheres da violência dos próprios homens.

A história, dirigida pelo prolífico François Ozon (faz um filme por ano), é baseada em peça teatral dos anos 1930, de Louis Verneuil e Georges Berr. Já teve duas adaptações para o cinema. A primeira em 1937, por Wesley Ruggles, com o título de True Confession. A segunda, em 1945, de John Berry, chamada Cross My Heart, com a diva Carole Lombard no papel principal.

Desta vez, na primeira versão cinematográfica francesa da peça, quem interpreta a protagonista Madeleine Verdier é uma das garotas da hora do jovem cinema na França, a loiríssima Nadia Tareszkiewicz. Madeleine vive no mesmo quartinho modesto com a amiga, a advogada Pauline Mauléon, interpretada por Rebecca Marder, vista há pouco em Uma Garota Radiante, título que a define à perfeição. As duas vivem à beira da penúria e chegam a dividir o leito no inverno para se aquecer mutuamente. Mas não é o que supõe a maledicente vizinhança e menos ainda a concierge (zeladora) linguaruda.

Nessa situação, Madeleine, atriz de escasso sucesso e em busca de oportunidade, atende ao convite do produtor, velho lobo à espreita de carne jovem. Após o encontro, ele aparece morto com um tiro de pistola. Como houve assédio, Madeleine se torna a suspeita óbvia.

O tom escolhido para a filmagem é todo moldado na comédia ligeira - a comédia de boulevard, como dizem os franceses. Quer dizer, feita de diálogos rápidos, expressões faciais marcadas, o conjunto todo montado como farsa. Já se sabe, esse tipo de comédia é um dos melhores atalhos para fazer crítica social. O público diverte-se, ninguém exige profundidade, e, mesmo assim, os desmandos são denunciados através do recurso ao ridículo. Quando inteligente, o riso pode ser politicamente corrosivo.

No caso, é soda cáustica pura. Vemos toda a hipocrisia social se desfazer em cenas constrangedoras envolvendo em especial os homens, esses opressores em série. A estrutura de poder montada há séculos é posta a balançar diante da proverbial astúcia feminina. Não deixa de ser curioso o surgimento deste filme, que coloca no pedestal a força da malícia, justo no momento em que o afrontamento ao patriarcalismo e à opressão social é feito de maneira direta e agressiva pela nova onda feminista e identitária.

Mas a índole do filme, por certo simpática às mulheres, ficaria explícita demais, e mesmo didática, caso Ozon trouxesse a antiga história para o ambiente da época atual. Ao circunscrevê-la em seu tempo de origem, na França senhorial e discriminatória, embora envernizada em polidez e elegância, obtém o rendimento maior da sutileza e do discurso indireto. Da ironia, para dizer numa só palavra. Nesse quadro de época, de cem anos atrás, as duas jovens atrizes brilham. Dá gosto vê-las contracenar.

Entra Huppert

Já o terceiro elemento responsável pelo sucesso (mais de um milhão de ingressos vendidos na França) entra apenas na fase final da obra e atende pelo nome de Isabelle Huppert. Onipresente Huppert, que, mesmo no longínquo país chamado Brasil, torna-se figurinha carimbada, pelo menos nos meios cinéfilos. Na estreia da semana passada, A Sindicalista, ela ocupa o papel principal como a ambígua e lutadora líder sindical Maureen Kearney. Na semana anterior, em A Vida sem Ele, ela é Joan, mulher madura vivendo de lembranças nem sempre confiáveis. Em O Crime É Meu, ela seria coadjuvante, caso esse termo se aplicasse a atriz tão marcante.

Isabelle Huppert, Rebecca Marder e Nadia Tereszkiewicz em 'O crime é meu' Foto: Carole Bethuel / Divulgação

Huppert surge no terço final de O Crime É Meu como Odette Chaumette, velha diva do cinema mudo saída da sombra para reivindicar seus direitos. Quais direitos? Quem for ver o filme descobrirá. De qualquer forma, sua aparição desenvolta, língua solta e flamejante cabeleira ruiva, vira tudo de cabeça para baixo e acrescenta camada a mais de absurdo a essa comédia maluca. A veterana Huppert dá-se muito bem contracenando com jovens atrizes que, por certo, devem ser suas admiradoras.

Nessa comédia, que com alguma liberdade se pode chamar de feminista, é natural as mulheres ocuparem papel central. Mas, por não ser tolamente sectária, reserva aos homens papéis importantes, ainda que secundários no contexto da trama. Nem poderia ser diferente com elenco que conta com um mestre como Fabrice Luchini no papel de Gustave Rabusset, inseguro juiz de instrução, Olivier Broche como o hilário escrivão de justiça Léon Trupu, o grande André Dussollier como o industrial Monsieur Bonnard, e o cômico Dany Boon, hilário com seu falso sotaque marselhês no papel do seboso milionário Palmarède.

O Crime é Meu é uma comédia que funciona, isto é, faz rir, e além disso, castiga os costumes, como recomenda o velho dito latino. Mas é também homenagem de Ozon tanto ao teatro como ao cinema, suas duas artes de preferência. Ele conserva, com evidência, o estofo de palco proveniente da peça original. Mas coloca o conjunto em modo cinematográfico, sem desfigurá-lo.

Aproveita as oportunidades possíveis para também prestar seu tributo ao cinema e sua história. Por exemplo, quando entra em cena, a atriz Odette Chaumette proclama ter feito mais de cem filmes na era muda, com Louis Feuillade, Abel Gance e Alice Guy-Blaché. Esta última foi pioneira do cinema, um nome feminino relativamente esquecido e agora redescoberto pelo belo documentário Alice Guy-Blaché - A História não Contada da Primeira Cineasta do Mundo, de Pamela Green. Gance foi autor do épico Napoleão (1927), e Feuillade dirigiu a série dos anos 1920 Vampires, há pouco evocada por Olivier Assayas em Irma Vep, série muito boa disponível na HBO MAX.

Outra referência: quando se comenta o assassinato do produtor, é evocado o nome de Violette Nozière, adolescente pivô de caso criminal célebre na França dos anos 1930, filmado em 1978 por Claude Chabrol e estrelado pela então jovem atriz ascendente de nome Isabelle Huppert.

Tantas citações e referências se encadeiam de maneira natural e progressiva, sem sobrecarregar a narrativa. Quem as conhece, diverte-se com elas e com o engenho do diretor em encaixá-las na narrativa. Quem nunca ouviu falar delas aproveita o filme do mesmo jeito. Ave rara entre os lançamentos de cinema, O Crime É Meu é, antes de tudo, divertimento de primeira.

Nadia Tereszkiewicz em 'O crime é meu' Foto: Carole Bethuel / Divulgação

Jovem candidata a atriz é acusada de assassinar um produtor. Em vez de negar o crime, ela, com sua advogada, decide confessar a culpa e alegar legítima defesa, porque sofrera assédio sexual no encontro com o homem mais velho. É por esse caminho tortuoso que O Crime É Meu, comédia francesa de época, envereda. E, assim fazendo, ironiza alguns atributos da “civilização cristã ocidental”, tal como o machismo estrutural, presente até mesmo quando em aparência defende as mulheres da violência dos próprios homens.

A história, dirigida pelo prolífico François Ozon (faz um filme por ano), é baseada em peça teatral dos anos 1930, de Louis Verneuil e Georges Berr. Já teve duas adaptações para o cinema. A primeira em 1937, por Wesley Ruggles, com o título de True Confession. A segunda, em 1945, de John Berry, chamada Cross My Heart, com a diva Carole Lombard no papel principal.

Desta vez, na primeira versão cinematográfica francesa da peça, quem interpreta a protagonista Madeleine Verdier é uma das garotas da hora do jovem cinema na França, a loiríssima Nadia Tareszkiewicz. Madeleine vive no mesmo quartinho modesto com a amiga, a advogada Pauline Mauléon, interpretada por Rebecca Marder, vista há pouco em Uma Garota Radiante, título que a define à perfeição. As duas vivem à beira da penúria e chegam a dividir o leito no inverno para se aquecer mutuamente. Mas não é o que supõe a maledicente vizinhança e menos ainda a concierge (zeladora) linguaruda.

Nessa situação, Madeleine, atriz de escasso sucesso e em busca de oportunidade, atende ao convite do produtor, velho lobo à espreita de carne jovem. Após o encontro, ele aparece morto com um tiro de pistola. Como houve assédio, Madeleine se torna a suspeita óbvia.

O tom escolhido para a filmagem é todo moldado na comédia ligeira - a comédia de boulevard, como dizem os franceses. Quer dizer, feita de diálogos rápidos, expressões faciais marcadas, o conjunto todo montado como farsa. Já se sabe, esse tipo de comédia é um dos melhores atalhos para fazer crítica social. O público diverte-se, ninguém exige profundidade, e, mesmo assim, os desmandos são denunciados através do recurso ao ridículo. Quando inteligente, o riso pode ser politicamente corrosivo.

No caso, é soda cáustica pura. Vemos toda a hipocrisia social se desfazer em cenas constrangedoras envolvendo em especial os homens, esses opressores em série. A estrutura de poder montada há séculos é posta a balançar diante da proverbial astúcia feminina. Não deixa de ser curioso o surgimento deste filme, que coloca no pedestal a força da malícia, justo no momento em que o afrontamento ao patriarcalismo e à opressão social é feito de maneira direta e agressiva pela nova onda feminista e identitária.

Mas a índole do filme, por certo simpática às mulheres, ficaria explícita demais, e mesmo didática, caso Ozon trouxesse a antiga história para o ambiente da época atual. Ao circunscrevê-la em seu tempo de origem, na França senhorial e discriminatória, embora envernizada em polidez e elegância, obtém o rendimento maior da sutileza e do discurso indireto. Da ironia, para dizer numa só palavra. Nesse quadro de época, de cem anos atrás, as duas jovens atrizes brilham. Dá gosto vê-las contracenar.

Entra Huppert

Já o terceiro elemento responsável pelo sucesso (mais de um milhão de ingressos vendidos na França) entra apenas na fase final da obra e atende pelo nome de Isabelle Huppert. Onipresente Huppert, que, mesmo no longínquo país chamado Brasil, torna-se figurinha carimbada, pelo menos nos meios cinéfilos. Na estreia da semana passada, A Sindicalista, ela ocupa o papel principal como a ambígua e lutadora líder sindical Maureen Kearney. Na semana anterior, em A Vida sem Ele, ela é Joan, mulher madura vivendo de lembranças nem sempre confiáveis. Em O Crime É Meu, ela seria coadjuvante, caso esse termo se aplicasse a atriz tão marcante.

Isabelle Huppert, Rebecca Marder e Nadia Tereszkiewicz em 'O crime é meu' Foto: Carole Bethuel / Divulgação

Huppert surge no terço final de O Crime É Meu como Odette Chaumette, velha diva do cinema mudo saída da sombra para reivindicar seus direitos. Quais direitos? Quem for ver o filme descobrirá. De qualquer forma, sua aparição desenvolta, língua solta e flamejante cabeleira ruiva, vira tudo de cabeça para baixo e acrescenta camada a mais de absurdo a essa comédia maluca. A veterana Huppert dá-se muito bem contracenando com jovens atrizes que, por certo, devem ser suas admiradoras.

Nessa comédia, que com alguma liberdade se pode chamar de feminista, é natural as mulheres ocuparem papel central. Mas, por não ser tolamente sectária, reserva aos homens papéis importantes, ainda que secundários no contexto da trama. Nem poderia ser diferente com elenco que conta com um mestre como Fabrice Luchini no papel de Gustave Rabusset, inseguro juiz de instrução, Olivier Broche como o hilário escrivão de justiça Léon Trupu, o grande André Dussollier como o industrial Monsieur Bonnard, e o cômico Dany Boon, hilário com seu falso sotaque marselhês no papel do seboso milionário Palmarède.

O Crime é Meu é uma comédia que funciona, isto é, faz rir, e além disso, castiga os costumes, como recomenda o velho dito latino. Mas é também homenagem de Ozon tanto ao teatro como ao cinema, suas duas artes de preferência. Ele conserva, com evidência, o estofo de palco proveniente da peça original. Mas coloca o conjunto em modo cinematográfico, sem desfigurá-lo.

Aproveita as oportunidades possíveis para também prestar seu tributo ao cinema e sua história. Por exemplo, quando entra em cena, a atriz Odette Chaumette proclama ter feito mais de cem filmes na era muda, com Louis Feuillade, Abel Gance e Alice Guy-Blaché. Esta última foi pioneira do cinema, um nome feminino relativamente esquecido e agora redescoberto pelo belo documentário Alice Guy-Blaché - A História não Contada da Primeira Cineasta do Mundo, de Pamela Green. Gance foi autor do épico Napoleão (1927), e Feuillade dirigiu a série dos anos 1920 Vampires, há pouco evocada por Olivier Assayas em Irma Vep, série muito boa disponível na HBO MAX.

Outra referência: quando se comenta o assassinato do produtor, é evocado o nome de Violette Nozière, adolescente pivô de caso criminal célebre na França dos anos 1930, filmado em 1978 por Claude Chabrol e estrelado pela então jovem atriz ascendente de nome Isabelle Huppert.

Tantas citações e referências se encadeiam de maneira natural e progressiva, sem sobrecarregar a narrativa. Quem as conhece, diverte-se com elas e com o engenho do diretor em encaixá-las na narrativa. Quem nunca ouviu falar delas aproveita o filme do mesmo jeito. Ave rara entre os lançamentos de cinema, O Crime É Meu é, antes de tudo, divertimento de primeira.

Nadia Tereszkiewicz em 'O crime é meu' Foto: Carole Bethuel / Divulgação

Jovem candidata a atriz é acusada de assassinar um produtor. Em vez de negar o crime, ela, com sua advogada, decide confessar a culpa e alegar legítima defesa, porque sofrera assédio sexual no encontro com o homem mais velho. É por esse caminho tortuoso que O Crime É Meu, comédia francesa de época, envereda. E, assim fazendo, ironiza alguns atributos da “civilização cristã ocidental”, tal como o machismo estrutural, presente até mesmo quando em aparência defende as mulheres da violência dos próprios homens.

A história, dirigida pelo prolífico François Ozon (faz um filme por ano), é baseada em peça teatral dos anos 1930, de Louis Verneuil e Georges Berr. Já teve duas adaptações para o cinema. A primeira em 1937, por Wesley Ruggles, com o título de True Confession. A segunda, em 1945, de John Berry, chamada Cross My Heart, com a diva Carole Lombard no papel principal.

Desta vez, na primeira versão cinematográfica francesa da peça, quem interpreta a protagonista Madeleine Verdier é uma das garotas da hora do jovem cinema na França, a loiríssima Nadia Tareszkiewicz. Madeleine vive no mesmo quartinho modesto com a amiga, a advogada Pauline Mauléon, interpretada por Rebecca Marder, vista há pouco em Uma Garota Radiante, título que a define à perfeição. As duas vivem à beira da penúria e chegam a dividir o leito no inverno para se aquecer mutuamente. Mas não é o que supõe a maledicente vizinhança e menos ainda a concierge (zeladora) linguaruda.

Nessa situação, Madeleine, atriz de escasso sucesso e em busca de oportunidade, atende ao convite do produtor, velho lobo à espreita de carne jovem. Após o encontro, ele aparece morto com um tiro de pistola. Como houve assédio, Madeleine se torna a suspeita óbvia.

O tom escolhido para a filmagem é todo moldado na comédia ligeira - a comédia de boulevard, como dizem os franceses. Quer dizer, feita de diálogos rápidos, expressões faciais marcadas, o conjunto todo montado como farsa. Já se sabe, esse tipo de comédia é um dos melhores atalhos para fazer crítica social. O público diverte-se, ninguém exige profundidade, e, mesmo assim, os desmandos são denunciados através do recurso ao ridículo. Quando inteligente, o riso pode ser politicamente corrosivo.

No caso, é soda cáustica pura. Vemos toda a hipocrisia social se desfazer em cenas constrangedoras envolvendo em especial os homens, esses opressores em série. A estrutura de poder montada há séculos é posta a balançar diante da proverbial astúcia feminina. Não deixa de ser curioso o surgimento deste filme, que coloca no pedestal a força da malícia, justo no momento em que o afrontamento ao patriarcalismo e à opressão social é feito de maneira direta e agressiva pela nova onda feminista e identitária.

Mas a índole do filme, por certo simpática às mulheres, ficaria explícita demais, e mesmo didática, caso Ozon trouxesse a antiga história para o ambiente da época atual. Ao circunscrevê-la em seu tempo de origem, na França senhorial e discriminatória, embora envernizada em polidez e elegância, obtém o rendimento maior da sutileza e do discurso indireto. Da ironia, para dizer numa só palavra. Nesse quadro de época, de cem anos atrás, as duas jovens atrizes brilham. Dá gosto vê-las contracenar.

Entra Huppert

Já o terceiro elemento responsável pelo sucesso (mais de um milhão de ingressos vendidos na França) entra apenas na fase final da obra e atende pelo nome de Isabelle Huppert. Onipresente Huppert, que, mesmo no longínquo país chamado Brasil, torna-se figurinha carimbada, pelo menos nos meios cinéfilos. Na estreia da semana passada, A Sindicalista, ela ocupa o papel principal como a ambígua e lutadora líder sindical Maureen Kearney. Na semana anterior, em A Vida sem Ele, ela é Joan, mulher madura vivendo de lembranças nem sempre confiáveis. Em O Crime É Meu, ela seria coadjuvante, caso esse termo se aplicasse a atriz tão marcante.

Isabelle Huppert, Rebecca Marder e Nadia Tereszkiewicz em 'O crime é meu' Foto: Carole Bethuel / Divulgação

Huppert surge no terço final de O Crime É Meu como Odette Chaumette, velha diva do cinema mudo saída da sombra para reivindicar seus direitos. Quais direitos? Quem for ver o filme descobrirá. De qualquer forma, sua aparição desenvolta, língua solta e flamejante cabeleira ruiva, vira tudo de cabeça para baixo e acrescenta camada a mais de absurdo a essa comédia maluca. A veterana Huppert dá-se muito bem contracenando com jovens atrizes que, por certo, devem ser suas admiradoras.

Nessa comédia, que com alguma liberdade se pode chamar de feminista, é natural as mulheres ocuparem papel central. Mas, por não ser tolamente sectária, reserva aos homens papéis importantes, ainda que secundários no contexto da trama. Nem poderia ser diferente com elenco que conta com um mestre como Fabrice Luchini no papel de Gustave Rabusset, inseguro juiz de instrução, Olivier Broche como o hilário escrivão de justiça Léon Trupu, o grande André Dussollier como o industrial Monsieur Bonnard, e o cômico Dany Boon, hilário com seu falso sotaque marselhês no papel do seboso milionário Palmarède.

O Crime é Meu é uma comédia que funciona, isto é, faz rir, e além disso, castiga os costumes, como recomenda o velho dito latino. Mas é também homenagem de Ozon tanto ao teatro como ao cinema, suas duas artes de preferência. Ele conserva, com evidência, o estofo de palco proveniente da peça original. Mas coloca o conjunto em modo cinematográfico, sem desfigurá-lo.

Aproveita as oportunidades possíveis para também prestar seu tributo ao cinema e sua história. Por exemplo, quando entra em cena, a atriz Odette Chaumette proclama ter feito mais de cem filmes na era muda, com Louis Feuillade, Abel Gance e Alice Guy-Blaché. Esta última foi pioneira do cinema, um nome feminino relativamente esquecido e agora redescoberto pelo belo documentário Alice Guy-Blaché - A História não Contada da Primeira Cineasta do Mundo, de Pamela Green. Gance foi autor do épico Napoleão (1927), e Feuillade dirigiu a série dos anos 1920 Vampires, há pouco evocada por Olivier Assayas em Irma Vep, série muito boa disponível na HBO MAX.

Outra referência: quando se comenta o assassinato do produtor, é evocado o nome de Violette Nozière, adolescente pivô de caso criminal célebre na França dos anos 1930, filmado em 1978 por Claude Chabrol e estrelado pela então jovem atriz ascendente de nome Isabelle Huppert.

Tantas citações e referências se encadeiam de maneira natural e progressiva, sem sobrecarregar a narrativa. Quem as conhece, diverte-se com elas e com o engenho do diretor em encaixá-las na narrativa. Quem nunca ouviu falar delas aproveita o filme do mesmo jeito. Ave rara entre os lançamentos de cinema, O Crime É Meu é, antes de tudo, divertimento de primeira.

Nadia Tereszkiewicz em 'O crime é meu' Foto: Carole Bethuel / Divulgação

Jovem candidata a atriz é acusada de assassinar um produtor. Em vez de negar o crime, ela, com sua advogada, decide confessar a culpa e alegar legítima defesa, porque sofrera assédio sexual no encontro com o homem mais velho. É por esse caminho tortuoso que O Crime É Meu, comédia francesa de época, envereda. E, assim fazendo, ironiza alguns atributos da “civilização cristã ocidental”, tal como o machismo estrutural, presente até mesmo quando em aparência defende as mulheres da violência dos próprios homens.

A história, dirigida pelo prolífico François Ozon (faz um filme por ano), é baseada em peça teatral dos anos 1930, de Louis Verneuil e Georges Berr. Já teve duas adaptações para o cinema. A primeira em 1937, por Wesley Ruggles, com o título de True Confession. A segunda, em 1945, de John Berry, chamada Cross My Heart, com a diva Carole Lombard no papel principal.

Desta vez, na primeira versão cinematográfica francesa da peça, quem interpreta a protagonista Madeleine Verdier é uma das garotas da hora do jovem cinema na França, a loiríssima Nadia Tareszkiewicz. Madeleine vive no mesmo quartinho modesto com a amiga, a advogada Pauline Mauléon, interpretada por Rebecca Marder, vista há pouco em Uma Garota Radiante, título que a define à perfeição. As duas vivem à beira da penúria e chegam a dividir o leito no inverno para se aquecer mutuamente. Mas não é o que supõe a maledicente vizinhança e menos ainda a concierge (zeladora) linguaruda.

Nessa situação, Madeleine, atriz de escasso sucesso e em busca de oportunidade, atende ao convite do produtor, velho lobo à espreita de carne jovem. Após o encontro, ele aparece morto com um tiro de pistola. Como houve assédio, Madeleine se torna a suspeita óbvia.

O tom escolhido para a filmagem é todo moldado na comédia ligeira - a comédia de boulevard, como dizem os franceses. Quer dizer, feita de diálogos rápidos, expressões faciais marcadas, o conjunto todo montado como farsa. Já se sabe, esse tipo de comédia é um dos melhores atalhos para fazer crítica social. O público diverte-se, ninguém exige profundidade, e, mesmo assim, os desmandos são denunciados através do recurso ao ridículo. Quando inteligente, o riso pode ser politicamente corrosivo.

No caso, é soda cáustica pura. Vemos toda a hipocrisia social se desfazer em cenas constrangedoras envolvendo em especial os homens, esses opressores em série. A estrutura de poder montada há séculos é posta a balançar diante da proverbial astúcia feminina. Não deixa de ser curioso o surgimento deste filme, que coloca no pedestal a força da malícia, justo no momento em que o afrontamento ao patriarcalismo e à opressão social é feito de maneira direta e agressiva pela nova onda feminista e identitária.

Mas a índole do filme, por certo simpática às mulheres, ficaria explícita demais, e mesmo didática, caso Ozon trouxesse a antiga história para o ambiente da época atual. Ao circunscrevê-la em seu tempo de origem, na França senhorial e discriminatória, embora envernizada em polidez e elegância, obtém o rendimento maior da sutileza e do discurso indireto. Da ironia, para dizer numa só palavra. Nesse quadro de época, de cem anos atrás, as duas jovens atrizes brilham. Dá gosto vê-las contracenar.

Entra Huppert

Já o terceiro elemento responsável pelo sucesso (mais de um milhão de ingressos vendidos na França) entra apenas na fase final da obra e atende pelo nome de Isabelle Huppert. Onipresente Huppert, que, mesmo no longínquo país chamado Brasil, torna-se figurinha carimbada, pelo menos nos meios cinéfilos. Na estreia da semana passada, A Sindicalista, ela ocupa o papel principal como a ambígua e lutadora líder sindical Maureen Kearney. Na semana anterior, em A Vida sem Ele, ela é Joan, mulher madura vivendo de lembranças nem sempre confiáveis. Em O Crime É Meu, ela seria coadjuvante, caso esse termo se aplicasse a atriz tão marcante.

Isabelle Huppert, Rebecca Marder e Nadia Tereszkiewicz em 'O crime é meu' Foto: Carole Bethuel / Divulgação

Huppert surge no terço final de O Crime É Meu como Odette Chaumette, velha diva do cinema mudo saída da sombra para reivindicar seus direitos. Quais direitos? Quem for ver o filme descobrirá. De qualquer forma, sua aparição desenvolta, língua solta e flamejante cabeleira ruiva, vira tudo de cabeça para baixo e acrescenta camada a mais de absurdo a essa comédia maluca. A veterana Huppert dá-se muito bem contracenando com jovens atrizes que, por certo, devem ser suas admiradoras.

Nessa comédia, que com alguma liberdade se pode chamar de feminista, é natural as mulheres ocuparem papel central. Mas, por não ser tolamente sectária, reserva aos homens papéis importantes, ainda que secundários no contexto da trama. Nem poderia ser diferente com elenco que conta com um mestre como Fabrice Luchini no papel de Gustave Rabusset, inseguro juiz de instrução, Olivier Broche como o hilário escrivão de justiça Léon Trupu, o grande André Dussollier como o industrial Monsieur Bonnard, e o cômico Dany Boon, hilário com seu falso sotaque marselhês no papel do seboso milionário Palmarède.

O Crime é Meu é uma comédia que funciona, isto é, faz rir, e além disso, castiga os costumes, como recomenda o velho dito latino. Mas é também homenagem de Ozon tanto ao teatro como ao cinema, suas duas artes de preferência. Ele conserva, com evidência, o estofo de palco proveniente da peça original. Mas coloca o conjunto em modo cinematográfico, sem desfigurá-lo.

Aproveita as oportunidades possíveis para também prestar seu tributo ao cinema e sua história. Por exemplo, quando entra em cena, a atriz Odette Chaumette proclama ter feito mais de cem filmes na era muda, com Louis Feuillade, Abel Gance e Alice Guy-Blaché. Esta última foi pioneira do cinema, um nome feminino relativamente esquecido e agora redescoberto pelo belo documentário Alice Guy-Blaché - A História não Contada da Primeira Cineasta do Mundo, de Pamela Green. Gance foi autor do épico Napoleão (1927), e Feuillade dirigiu a série dos anos 1920 Vampires, há pouco evocada por Olivier Assayas em Irma Vep, série muito boa disponível na HBO MAX.

Outra referência: quando se comenta o assassinato do produtor, é evocado o nome de Violette Nozière, adolescente pivô de caso criminal célebre na França dos anos 1930, filmado em 1978 por Claude Chabrol e estrelado pela então jovem atriz ascendente de nome Isabelle Huppert.

Tantas citações e referências se encadeiam de maneira natural e progressiva, sem sobrecarregar a narrativa. Quem as conhece, diverte-se com elas e com o engenho do diretor em encaixá-las na narrativa. Quem nunca ouviu falar delas aproveita o filme do mesmo jeito. Ave rara entre os lançamentos de cinema, O Crime É Meu é, antes de tudo, divertimento de primeira.

Nadia Tereszkiewicz em 'O crime é meu' Foto: Carole Bethuel / Divulgação

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