“Isso aqui é o mundo”, gritou entusiasmado o pequeno João Carlos Araújo, de 5 anos, com os pezinhos levantados e os olhinhos grudados na tela. O curta da Tailândia, Casa dos Pequenos Cientistas - Como os Germes se Propagam, mesmo naquela língua estranha, o transportou para além-mar. A animação mal tinha acabado e o cinema virou uma boa algazarra com meninos e meninas de cinco anos falando alto e ao mesmo tempo sobre o que tinham acabado de ver.
Para João, assim como para Totó, o garoto do emblemático Cinema Paradiso - uma declaração de amor à sétima arte do diretor italiano Giuseppe Tornatore -, o mundo estava imerso em uma tela. João e a maior parte de seus coleguinhas nunca tinham vivenciado a fantástica sala escura, com som alto, imagens gigantes, até ser inaugurado o cinema de sua escola Apecatu, na periferia de Itapevi, a 40 quilômetros da capital paulista. Agora João, assim como o personagem Totó, teve a retina invadida pela magia cinematográfica.
A ideia de montar uma sala de cinema no sítio Amarcord (isso mesmo, nome em homenagem a Federico Fellini) parecia mais um dos devaneios da gaúcha Stela Grisotti, 58 anos, jornalista, documentarista, e de seu marido, o austríaco Rudi Böhm, 75 anos, artista plástico e cineasta. Mas se o casal, com nenhuma experiência socioeducativa conseguiu há 21 anos, com a ajuda de amigos, montar uma escola que começou com apenas cinco alunos e hoje tem cem, por que não seria capaz de fazer um cinema em meio a horta e pomar para o contento das crianças e da comunidade Monte Serrat?
“Sou de Santa Rosa, uma cidade pequena quase na fronteira com a Argentina. O cinema foi muito importante na minha formação; na adolescência, ia todos os domingos. Os cineastas foram os meus professores”, diz Stela sem esconder a empolgação ao falar que “suas” crianças que agora desfrutam de uma programação de filmes, com direito a pipoca, preparada pelo próprio Rudi.
Se os livros eram lidos apenas em roda, agora as obras literárias se conectam aos filmes. “A gente sempre fez um trabalho interdisciplinar. E hoje procuramos um livro que tenha um filme, assim os alunos conseguem contextualizar melhor o que foi aprendido. Até o senso crítico das crianças melhorou, porque o cinema é mesmo outro mundo”, diz o professor Victor Hugo Marim.
Do início da escola até agora, tudo o que o casal fez foi com parcerias e doações. Quando compraram o terreno há três décadas, por anos moraram em uma casa de pau a pique.
Projetos só saíram graças ao constante arregaçar de mangas do casal
A escola surgiu quando a filha Katharina Grisotti Böhm, hoje com 23 anos, oceanógrafa, tinha dois anos. No lugar de enviá-la a uma instituição particular, eles contrataram uma professora para Kathi, como é chamada, e mais cinco crianças da vizinhança. Com muito trabalho (eles mesmos ergueram a escola), o número de alunos foi se expandindo. Houve momentos difíceis, em que quase a Apecatu fechou as portas, mas depois de 10 anos de existência, a prefeitura de Itapevi finalmente resolveu abraçá-la. Além do currículo da Educação Infantil, os alunos de 4 a 6 anos ainda fazem parte de um projeto sobre a natureza. A biblioteca, construída há dois anos em um contêiner que abriga cerca 3.500 livros doados, e o cinema, recém-inaugurado, só saíram graças ao constante arregaçar de mangas do casal e à participação de amigos e moradores da comunidade.
Stela conta que muito antes de o cinema ficar pronto, eles ganharam uma coleção de cerca de mil títulos de DVDs. “Eu olhava para aquilo tudo e queria dividir com outras pessoas”, lembra. O financiamento dos equipamentos veio de uma parceria com a ONG Cultures of Resistance da brasileira Iara Lee, que vive nos Estados Unidos e apoia projetos culturais no mundo inteiro. Renata de Almeida, responsável pela Mostra Internacional de Cinema, ajudou a indicar quais equipamentos o casal deveria comprar. “Com uma vaquinha de R$ 10 mil entre os amigos, expulsamos o Rudi de seu ateliê e reformamos a sala”, conta ela rindo.
Zita Carvalhosa, que preside a Associação Cultural Kinoforum, que organiza o Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, fez a parceria para os curtas passarem na escola. “Não sou religiosa, nem nada, mas se fosse explicar, não há lógica, porque montar uma sala de cinema é muito caro. Mas houve uma conexão entre as pessoas e as coisas foram acontecendo”, reflete Stela.