Volta e meia, o Festival de Cannes anuncia sua seleção incompleta e faz depois acréscimos à lista dos filmes que vão concorrer à Palma de Ouro. Este ano, houve um desses acréscimos – o longa da Hungria O Filho de Saul/Son of Saul, de László Nemes. O diretor artístico Thierry Frémaux ajudou a criar a expectativa. Disse que o filme húngaro iria realimentar o debate sobre a representação da Shoah, o Holocausto, no cinema. Acrescentou que, desde, justamente, Shoah, o grande filme de Claude Lanzmann, não se via nada parecido.
Filho de Saul foi duplamente premiado na Croisette – recebeu o prêmio especial do júri dos irmãos Coen e o da crítica. Havia gente inconformada no final da premiação – os que achavam que Filho de Saul havia sido injustiçado e mereceria ter recebido a Palma de Ouro (outorgada a Dheepan, de Jacques Audiard). Talvez você ainda consiga algum ingresso, no próprio cinema, para assistir ao filme de Nemes. Na Central da Mostra, foi o que mais rapidamente se esgotou. Desde Cannes, o tititi tem sido intenso nas redes sociais. Filho de Saul participa da competição de novos diretores. Foi pré-indicado pela Hungria para concorrer a uma vaga no próximo Oscar de filme estrangeiro. Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert, o indicado brasileiro, vai enfrentar uma concorrência forte.
Tanto quanto uma experiência dramática visceral, Filho de Saul propõe ao público um raro experimento visual. A câmera está sempre grudada no protagonista, Saul/Géza Röhrig. Nada nos é dado a ver que não seja através do olhar dele. As informações são dadas lentamente. Saul executa uma função no campo nazista de Auschwitz/Birkenau. Ele integra a equipe formada pelos nazistas para dispor das vítimas da câmera de gás. É preciso tirar dos cadáveres tudo o que eles ainda têm de valor – ouro nos dentes, joias. É uma atividade desumana. Das roupas, sapatos etc., os internos já foram despojados antes de entrar nas câmaras. Feita a triagem definitiva, os corpos são lançados na vala comum.
A cena inicial passa uma rara sensação de caos – percebe-se, mesmo sem ver, a agitação. Ouvem-se gritos lancinantes. E não se vê porque o partido de Nemes é abrir apenas uma fresta para o horror. O plano nunca é largo. Não ocupa a tela inteira. Apenas uma faixa dela, vertical. Entre as vítimas, Saul identifica o que lhe parece ser o próprio filho. E aí ele surta, fica obsessivo no seu desejo de oferecer ao filho um enterro ritual. É uma história universal. O desejo de um pai, de uma mãe de enterrar seu filho. Nesse caso, o quadro é agravado por se tratar do Holocausto.
Diante de Filho de Saul, a sensação é de claustrofobia. O espectador não consegue ver tudo – e não consegue desgrudar o olho do pouco que lhe é dado ver. Cinema é imagem, você está acostumado a ouvir a toda hora. É e não é, arrisca Nemes. Na maior parte do tempo, a indústria (Hollywood) faz filmes para os olhos, não propriamente para o olhar. Ele tenta pegar o público pelo ouvido – o som. Os gritos do começo vão acompanhá-lo, com certeza. No campo de concentração, acuado, descontrolado, Saul esconde o cadáver do filho e tenta achar um rabino para fazer a leitura do texto sagrado. Só assim ele poderá enterrar o filho e o garoto descansará em paz.
E aí chega o desfecho, que subverte e coloca em xeque a dramaturgia estabelecida até então. E se...? Faça você, leitor/espectador, a descoberta. Seis milhões de judeus morreram no Holocausto, vítimas do delírio racista do nacional-socialismo de Adolf Hitler e seus asseclas. Em A Lista de Schindler, Steven Spielberg inverteu a equação e contou a história de 400 judeus que escaparam da morte nos campos de extermínio. Contou com música, emoção. Era um belo filme, como não?, mas um ‘espetáculo’. László Nemes cria o anti-espetáculo. Serão 120 anos em dezembro, e o cinema ainda não perdeu a capacidade de surpreender.