Oscar 2023: Brendan Fraser quer ser digno de seu retorno


Performance do ator em A Baleia o colocou entre os favoritos na corrida pela estatueta da Academia; confira vídeo com sua preparação para o personagem

Por Kyle Buchanan
Foto: Evan Agostini/Invision/AP
Entrevista comBrendan FraserAtor

THE NEW YORK TIMES - Muito tempo atrás, quando um gigantesco caubói da Marlboro vivia empoleirado em frente ao Chateau Marmont e uma refeição de três pratos para duas pessoas ainda custava menos de US$ 100 no Spago, Brendan Fraser chegou a Hollywood pronto para conquistá-la e descobriu, com alguma surpresa, que o lugar não oferecia muita resistência. O estrelato no cinema veio com facilidade para o jovem e robusto canadense, e ele sabe disso agora, porque desde então passou por fases da vida que se mostraram muito mais difíceis.

“Estive dirigindo por aí, olhando para esta cidade onde morava”, Fraser, agora com 54 anos, me disse recentemente em Los Angeles, “É como ver fantasmas de mim mesmo, as lembranças voltam”.

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Ele se lembra da empolgação dos anos 1990, quando fez sucesso com papéis principais em filmes como O Homem da Califórnia e Código de Honra, balançando entre as árvores como o gente boa George - O Rei da Selva e o arrojado herói de A Múmia. Mas ele era visto menos como um ator sério e mais como um bobo bonito. E enquanto as comédias da tela grande de Fraser começavam a render menos dividendos nos anos 2000, ele passou a enfrentar uma série de dificuldades fora da tela, como um divórcio caro, contusões sofridas por anos de trabalho exaustivo como dublê e uma agressão sexual que ele disse ter sido cometida pelo ex-chefão do Globo de Ouro, Philip Berk - o que o levou a se retirar dos holofotes. (Berk negou a acusação).

Brendan Fraser disputa o Oscar 2023 de melhor ator por A Baleia Foto: Jordan Strauss/Invision/AP
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Em 2020, o diretor Darren Aronofsky se deparou com o trailer de um filme antigo com Fraser e pensou que o ator estava pronto para ser recuperado: ele ofereceu a Fraser o papel principal de A Baleia, baseado na peça de Samuel D. Hunter, sobre Charlie, um obeso professor que se retirou do mundo, mas está tentando acertar as coisas com a filha distante (Sadie Sink). Para interpretar Charlie, Fraser consultou a Coalizão de Ação contra a Obesidade e vestiu um traje protético tão pesado que teve de ser enchido com tubos de água fria para regular a temperatura do corpo.

“Foi uma fusão de homem e máquina, de certa forma”, disse ele.

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A atuação de Fraser em A Baleia lhe rendeu uma indicação ao Oscar e um Screen Actors Guild Award de melhor ator. Ainda este ano, ele será visto em Killers of the Flower Moon, de Martin Scorsese, provando que voltou para ficar.

“Se os diretores são pintores e os atores têm cores diferentes, fazia tempo que não tínhamos uma cor como Brendan na paleta”, disse Aronofsky. “Estou muito, muito orgulhoso por ele estar recebendo o que merece.”

Pessoalmente, Fraser é tão manso e cortês que simplesmente mastigar uma salada na frente dele pode fazer você se sentir como se estivesse batendo pratos. Quando o encontrei no restaurante de um hotel de West Hollywood em meados de fevereiro, ele falou com humildade sobre o arco da temporada de premiações que mais uma vez o tornou uma estrela de Hollywood.

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“Não vou achar que nada está garantido, sabendo como essa jornada foi difícil”, disse ele.

Como é fazer esses discursos de aceitação e receber tantas homenagens?

Estou vivendo uma sequência de experiências extracorpóreas, preciso ficar me beliscando: será que isso está acontecendo de verdade? Minha obrigação é tomar posse dessa onda de generosidade e apoio. Está virando minha cabeça e estou muito grato, mas seria negligente se não entendesse tudo do jeito certo.

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De que forma você precisa tomar posse de todos esses eventos?

Só preciso ser digno desses eventos, porque tenho consciência de onde estava, para onde fui e onde estou agora. Ao mesmo tempo, reluto em ficar confiante demais sobre qualquer coisa, porque já passei por esse carrossel várias vezes e sei que, se você ficar muito confortável, pode se tornar complacente. É aí que você se mete em problemas e deixa os padrões baixarem e deixa passar as coisas que, de outra forma, seriam realmente preocupantes para você.

‘A Baleia’ exigiu que você usasse próteses imensas. Como isso afeta a maneira como você representa um papel?

Eu sabia que era essencialmente um trabalho de máscara. Sabia que seria desconfortável. Mas e daí? Sabia que precisaria ser muito paciente para ficar ligado nas cenas enquanto eles faziam ajustes entre as tomadas. E Darren gosta de fazer muitas tomadas. Então eu tinha que ser como um cavalo que eu tive e que era muito tranquilo. Você podia prendê-lo, escová-lo, ele nunca fazia nada. Você tem que ficar parado e aguentar, ter paciência e não morder nem dar coice em ninguém porque eles estão lá para ajudar. Aí você deixa tudo isso de lado e faz o que precisa.

Como você se preparou para o filme?

A Coalizão de Ação contra a Obesidade me deu acesso a muitas pessoas, para que eu pudesse perguntar coisas sobre a história delas em chamadas de Zoom. Conversei com talvez oito ou dez pessoas - algumas acamadas, outras perfeitamente móveis - e pedia a elas: “Fale comigo sobre sua dieta diária”. E elas descreviam sua relação com bebida, substâncias, sexo, vício em jogos de azar.

A comida está na mesma casa desse comportamento, um ciclo de risco, recompensa, risco, recompensa, dá prazer, dá prazer. Nós humanos, macacos tosados, não conseguimos parar de apertar o botão. Isso acontece neurologicamente da mesma forma que acontece com as pessoas que têm esses outros vícios. Então, se elas merecem sua empatia, o mesmo acontece com uma pessoa que tem a ousadia de apenas existir num corpo enorme. Estou dizendo isso cinicamente.

O que você trouxe de você para Charlie?

Sei como é ser alvo de uma piada maldosa. Você está olhando para um cara que foi comparado a um exemplo meu de 25 anos atrás, de tanga. É obsceno e vende cópias do Daily Mail, mas que se danem as consequências para quem é o ser humano que recebe esse tipo de desprezo e escárnio. Adivinha? Não é legal.

Eu tenho sentimentos. Consigo me identificar com a arenga constante que as pessoas que vivem em corpos superdimensionados têm de suportar na vida diária. Elas passam despercebidas pelos médicos, não recebem a mesma atenção. Isso realmente acaba com sua confiança e pode levar a um comportamento mais prejudicial. É uma consequência para a saúde que seria essencialmente erradicada se simplesmente parássemos de ser ruins uns com os outros.

Como você se sentiu no último dia de filmagem?

A última vez que tirei a maquiagem, fiquei muito emocionado. Sei que é um pouco coisa de ator, mas não passou despercebido por mim que eu podia remover o figurino, mas as pessoas que vivem naquele corpo não podem. Fiquei torcendo para não os ter traído fingindo ser quem eles eram de uma forma que não ajudava, mas realmente senti que estava me despedindo de um cara que conhecia de uma maneira muito pessoal.

Além disso, depois de ter vivido esse papel, senti que ganhei uma salvação. O papel permitiu que eu me reapresentasse para uma indústria em que, se você está fora da vista, está fora da mente. Todos envelhecemos, todos mudamos - menos cabelo, corpo diferente. Eu queria interpretar Charlie para poder me apoiar em tudo isso e abraçá-lo, para sugar o oxigênio das vozes agressivas que eu imaginava que talvez desaprovassem. Vou ser sincero com você, sinto que estou me redimindo por apresentar uma performance que reinventa quem eu sou e presta homenagem a tudo o que foi esquecido sobre como eu existia profissionalmente.

O que atuar significava para você quando tinha 20 anos? Significa algo diferente agora?

Naquela época, era vida ou morte. São as apostas da ambição de um jovem. Mas, no momento, sinto que não tenho nada a provar. Por tudo que fiz para criar esse personagem, estou sem saída. Se não der certo, então realmente não sei o que estou fazendo. Foi assim que me senti no final.

Então, qual é a sensação de saber que deu certo?

É uma sensação gratificante, e parece que está fazendo bem. Depois de Toronto [o festival de cinema de setembro], um dos caras da Coalizão me escreveu e disse que o filme o emocionou e ele acredita firmemente que esse personagem vai salvar a vida de alguém, talvez de muitas pessoas. Sei que a resposta tem sido variada - pró, contra, tudo junto, e eu abraço a controvérsia -, mas na imprensa, um homem que ainda não tinha visto o filme disse: “Esta é a minha história”. [Assim como Charlie], ele se esconde dos colegas de trabalho e dos alunos com o computador. Ele tem um relacionamento tenso com a filha. Ele não pode sair de casa por medo do ridículo e não consegue respirar direito com o peso que seu corpo carrega.

Ter esse reconhecimento e ter esse cara dizendo algo como “Estou inspirado agora a mudar meus caminhos”, quero dizer, o que você pode dizer ao ouvir isso, além de “missão cumprida”? Fazemos filmes para entreter e esclarecer, mas, de vez em quando, aparece uma obra que realmente pode fazer algo para mudar a cultura ou a maneira como pensamos, mesmo que apenas por um tempo. E eu tenho sorte de estar em um filme assim. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Fazemos filmes para entreter e esclarecer, mas, de vez em quando, aparece uma obra que realmente pode fazer algo para mudar a cultura ou a maneira como pensamos, mesmo que apenas por um tempo

Brendan Fraser

THE NEW YORK TIMES - Muito tempo atrás, quando um gigantesco caubói da Marlboro vivia empoleirado em frente ao Chateau Marmont e uma refeição de três pratos para duas pessoas ainda custava menos de US$ 100 no Spago, Brendan Fraser chegou a Hollywood pronto para conquistá-la e descobriu, com alguma surpresa, que o lugar não oferecia muita resistência. O estrelato no cinema veio com facilidade para o jovem e robusto canadense, e ele sabe disso agora, porque desde então passou por fases da vida que se mostraram muito mais difíceis.

“Estive dirigindo por aí, olhando para esta cidade onde morava”, Fraser, agora com 54 anos, me disse recentemente em Los Angeles, “É como ver fantasmas de mim mesmo, as lembranças voltam”.

Ele se lembra da empolgação dos anos 1990, quando fez sucesso com papéis principais em filmes como O Homem da Califórnia e Código de Honra, balançando entre as árvores como o gente boa George - O Rei da Selva e o arrojado herói de A Múmia. Mas ele era visto menos como um ator sério e mais como um bobo bonito. E enquanto as comédias da tela grande de Fraser começavam a render menos dividendos nos anos 2000, ele passou a enfrentar uma série de dificuldades fora da tela, como um divórcio caro, contusões sofridas por anos de trabalho exaustivo como dublê e uma agressão sexual que ele disse ter sido cometida pelo ex-chefão do Globo de Ouro, Philip Berk - o que o levou a se retirar dos holofotes. (Berk negou a acusação).

Brendan Fraser disputa o Oscar 2023 de melhor ator por A Baleia Foto: Jordan Strauss/Invision/AP

Em 2020, o diretor Darren Aronofsky se deparou com o trailer de um filme antigo com Fraser e pensou que o ator estava pronto para ser recuperado: ele ofereceu a Fraser o papel principal de A Baleia, baseado na peça de Samuel D. Hunter, sobre Charlie, um obeso professor que se retirou do mundo, mas está tentando acertar as coisas com a filha distante (Sadie Sink). Para interpretar Charlie, Fraser consultou a Coalizão de Ação contra a Obesidade e vestiu um traje protético tão pesado que teve de ser enchido com tubos de água fria para regular a temperatura do corpo.

“Foi uma fusão de homem e máquina, de certa forma”, disse ele.

A atuação de Fraser em A Baleia lhe rendeu uma indicação ao Oscar e um Screen Actors Guild Award de melhor ator. Ainda este ano, ele será visto em Killers of the Flower Moon, de Martin Scorsese, provando que voltou para ficar.

“Se os diretores são pintores e os atores têm cores diferentes, fazia tempo que não tínhamos uma cor como Brendan na paleta”, disse Aronofsky. “Estou muito, muito orgulhoso por ele estar recebendo o que merece.”

Pessoalmente, Fraser é tão manso e cortês que simplesmente mastigar uma salada na frente dele pode fazer você se sentir como se estivesse batendo pratos. Quando o encontrei no restaurante de um hotel de West Hollywood em meados de fevereiro, ele falou com humildade sobre o arco da temporada de premiações que mais uma vez o tornou uma estrela de Hollywood.

“Não vou achar que nada está garantido, sabendo como essa jornada foi difícil”, disse ele.

Como é fazer esses discursos de aceitação e receber tantas homenagens?

Estou vivendo uma sequência de experiências extracorpóreas, preciso ficar me beliscando: será que isso está acontecendo de verdade? Minha obrigação é tomar posse dessa onda de generosidade e apoio. Está virando minha cabeça e estou muito grato, mas seria negligente se não entendesse tudo do jeito certo.

De que forma você precisa tomar posse de todos esses eventos?

Só preciso ser digno desses eventos, porque tenho consciência de onde estava, para onde fui e onde estou agora. Ao mesmo tempo, reluto em ficar confiante demais sobre qualquer coisa, porque já passei por esse carrossel várias vezes e sei que, se você ficar muito confortável, pode se tornar complacente. É aí que você se mete em problemas e deixa os padrões baixarem e deixa passar as coisas que, de outra forma, seriam realmente preocupantes para você.

‘A Baleia’ exigiu que você usasse próteses imensas. Como isso afeta a maneira como você representa um papel?

Eu sabia que era essencialmente um trabalho de máscara. Sabia que seria desconfortável. Mas e daí? Sabia que precisaria ser muito paciente para ficar ligado nas cenas enquanto eles faziam ajustes entre as tomadas. E Darren gosta de fazer muitas tomadas. Então eu tinha que ser como um cavalo que eu tive e que era muito tranquilo. Você podia prendê-lo, escová-lo, ele nunca fazia nada. Você tem que ficar parado e aguentar, ter paciência e não morder nem dar coice em ninguém porque eles estão lá para ajudar. Aí você deixa tudo isso de lado e faz o que precisa.

Como você se preparou para o filme?

A Coalizão de Ação contra a Obesidade me deu acesso a muitas pessoas, para que eu pudesse perguntar coisas sobre a história delas em chamadas de Zoom. Conversei com talvez oito ou dez pessoas - algumas acamadas, outras perfeitamente móveis - e pedia a elas: “Fale comigo sobre sua dieta diária”. E elas descreviam sua relação com bebida, substâncias, sexo, vício em jogos de azar.

A comida está na mesma casa desse comportamento, um ciclo de risco, recompensa, risco, recompensa, dá prazer, dá prazer. Nós humanos, macacos tosados, não conseguimos parar de apertar o botão. Isso acontece neurologicamente da mesma forma que acontece com as pessoas que têm esses outros vícios. Então, se elas merecem sua empatia, o mesmo acontece com uma pessoa que tem a ousadia de apenas existir num corpo enorme. Estou dizendo isso cinicamente.

O que você trouxe de você para Charlie?

Sei como é ser alvo de uma piada maldosa. Você está olhando para um cara que foi comparado a um exemplo meu de 25 anos atrás, de tanga. É obsceno e vende cópias do Daily Mail, mas que se danem as consequências para quem é o ser humano que recebe esse tipo de desprezo e escárnio. Adivinha? Não é legal.

Eu tenho sentimentos. Consigo me identificar com a arenga constante que as pessoas que vivem em corpos superdimensionados têm de suportar na vida diária. Elas passam despercebidas pelos médicos, não recebem a mesma atenção. Isso realmente acaba com sua confiança e pode levar a um comportamento mais prejudicial. É uma consequência para a saúde que seria essencialmente erradicada se simplesmente parássemos de ser ruins uns com os outros.

Como você se sentiu no último dia de filmagem?

A última vez que tirei a maquiagem, fiquei muito emocionado. Sei que é um pouco coisa de ator, mas não passou despercebido por mim que eu podia remover o figurino, mas as pessoas que vivem naquele corpo não podem. Fiquei torcendo para não os ter traído fingindo ser quem eles eram de uma forma que não ajudava, mas realmente senti que estava me despedindo de um cara que conhecia de uma maneira muito pessoal.

Além disso, depois de ter vivido esse papel, senti que ganhei uma salvação. O papel permitiu que eu me reapresentasse para uma indústria em que, se você está fora da vista, está fora da mente. Todos envelhecemos, todos mudamos - menos cabelo, corpo diferente. Eu queria interpretar Charlie para poder me apoiar em tudo isso e abraçá-lo, para sugar o oxigênio das vozes agressivas que eu imaginava que talvez desaprovassem. Vou ser sincero com você, sinto que estou me redimindo por apresentar uma performance que reinventa quem eu sou e presta homenagem a tudo o que foi esquecido sobre como eu existia profissionalmente.

O que atuar significava para você quando tinha 20 anos? Significa algo diferente agora?

Naquela época, era vida ou morte. São as apostas da ambição de um jovem. Mas, no momento, sinto que não tenho nada a provar. Por tudo que fiz para criar esse personagem, estou sem saída. Se não der certo, então realmente não sei o que estou fazendo. Foi assim que me senti no final.

Então, qual é a sensação de saber que deu certo?

É uma sensação gratificante, e parece que está fazendo bem. Depois de Toronto [o festival de cinema de setembro], um dos caras da Coalizão me escreveu e disse que o filme o emocionou e ele acredita firmemente que esse personagem vai salvar a vida de alguém, talvez de muitas pessoas. Sei que a resposta tem sido variada - pró, contra, tudo junto, e eu abraço a controvérsia -, mas na imprensa, um homem que ainda não tinha visto o filme disse: “Esta é a minha história”. [Assim como Charlie], ele se esconde dos colegas de trabalho e dos alunos com o computador. Ele tem um relacionamento tenso com a filha. Ele não pode sair de casa por medo do ridículo e não consegue respirar direito com o peso que seu corpo carrega.

Ter esse reconhecimento e ter esse cara dizendo algo como “Estou inspirado agora a mudar meus caminhos”, quero dizer, o que você pode dizer ao ouvir isso, além de “missão cumprida”? Fazemos filmes para entreter e esclarecer, mas, de vez em quando, aparece uma obra que realmente pode fazer algo para mudar a cultura ou a maneira como pensamos, mesmo que apenas por um tempo. E eu tenho sorte de estar em um filme assim. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Fazemos filmes para entreter e esclarecer, mas, de vez em quando, aparece uma obra que realmente pode fazer algo para mudar a cultura ou a maneira como pensamos, mesmo que apenas por um tempo

Brendan Fraser

THE NEW YORK TIMES - Muito tempo atrás, quando um gigantesco caubói da Marlboro vivia empoleirado em frente ao Chateau Marmont e uma refeição de três pratos para duas pessoas ainda custava menos de US$ 100 no Spago, Brendan Fraser chegou a Hollywood pronto para conquistá-la e descobriu, com alguma surpresa, que o lugar não oferecia muita resistência. O estrelato no cinema veio com facilidade para o jovem e robusto canadense, e ele sabe disso agora, porque desde então passou por fases da vida que se mostraram muito mais difíceis.

“Estive dirigindo por aí, olhando para esta cidade onde morava”, Fraser, agora com 54 anos, me disse recentemente em Los Angeles, “É como ver fantasmas de mim mesmo, as lembranças voltam”.

Ele se lembra da empolgação dos anos 1990, quando fez sucesso com papéis principais em filmes como O Homem da Califórnia e Código de Honra, balançando entre as árvores como o gente boa George - O Rei da Selva e o arrojado herói de A Múmia. Mas ele era visto menos como um ator sério e mais como um bobo bonito. E enquanto as comédias da tela grande de Fraser começavam a render menos dividendos nos anos 2000, ele passou a enfrentar uma série de dificuldades fora da tela, como um divórcio caro, contusões sofridas por anos de trabalho exaustivo como dublê e uma agressão sexual que ele disse ter sido cometida pelo ex-chefão do Globo de Ouro, Philip Berk - o que o levou a se retirar dos holofotes. (Berk negou a acusação).

Brendan Fraser disputa o Oscar 2023 de melhor ator por A Baleia Foto: Jordan Strauss/Invision/AP

Em 2020, o diretor Darren Aronofsky se deparou com o trailer de um filme antigo com Fraser e pensou que o ator estava pronto para ser recuperado: ele ofereceu a Fraser o papel principal de A Baleia, baseado na peça de Samuel D. Hunter, sobre Charlie, um obeso professor que se retirou do mundo, mas está tentando acertar as coisas com a filha distante (Sadie Sink). Para interpretar Charlie, Fraser consultou a Coalizão de Ação contra a Obesidade e vestiu um traje protético tão pesado que teve de ser enchido com tubos de água fria para regular a temperatura do corpo.

“Foi uma fusão de homem e máquina, de certa forma”, disse ele.

A atuação de Fraser em A Baleia lhe rendeu uma indicação ao Oscar e um Screen Actors Guild Award de melhor ator. Ainda este ano, ele será visto em Killers of the Flower Moon, de Martin Scorsese, provando que voltou para ficar.

“Se os diretores são pintores e os atores têm cores diferentes, fazia tempo que não tínhamos uma cor como Brendan na paleta”, disse Aronofsky. “Estou muito, muito orgulhoso por ele estar recebendo o que merece.”

Pessoalmente, Fraser é tão manso e cortês que simplesmente mastigar uma salada na frente dele pode fazer você se sentir como se estivesse batendo pratos. Quando o encontrei no restaurante de um hotel de West Hollywood em meados de fevereiro, ele falou com humildade sobre o arco da temporada de premiações que mais uma vez o tornou uma estrela de Hollywood.

“Não vou achar que nada está garantido, sabendo como essa jornada foi difícil”, disse ele.

Como é fazer esses discursos de aceitação e receber tantas homenagens?

Estou vivendo uma sequência de experiências extracorpóreas, preciso ficar me beliscando: será que isso está acontecendo de verdade? Minha obrigação é tomar posse dessa onda de generosidade e apoio. Está virando minha cabeça e estou muito grato, mas seria negligente se não entendesse tudo do jeito certo.

De que forma você precisa tomar posse de todos esses eventos?

Só preciso ser digno desses eventos, porque tenho consciência de onde estava, para onde fui e onde estou agora. Ao mesmo tempo, reluto em ficar confiante demais sobre qualquer coisa, porque já passei por esse carrossel várias vezes e sei que, se você ficar muito confortável, pode se tornar complacente. É aí que você se mete em problemas e deixa os padrões baixarem e deixa passar as coisas que, de outra forma, seriam realmente preocupantes para você.

‘A Baleia’ exigiu que você usasse próteses imensas. Como isso afeta a maneira como você representa um papel?

Eu sabia que era essencialmente um trabalho de máscara. Sabia que seria desconfortável. Mas e daí? Sabia que precisaria ser muito paciente para ficar ligado nas cenas enquanto eles faziam ajustes entre as tomadas. E Darren gosta de fazer muitas tomadas. Então eu tinha que ser como um cavalo que eu tive e que era muito tranquilo. Você podia prendê-lo, escová-lo, ele nunca fazia nada. Você tem que ficar parado e aguentar, ter paciência e não morder nem dar coice em ninguém porque eles estão lá para ajudar. Aí você deixa tudo isso de lado e faz o que precisa.

Como você se preparou para o filme?

A Coalizão de Ação contra a Obesidade me deu acesso a muitas pessoas, para que eu pudesse perguntar coisas sobre a história delas em chamadas de Zoom. Conversei com talvez oito ou dez pessoas - algumas acamadas, outras perfeitamente móveis - e pedia a elas: “Fale comigo sobre sua dieta diária”. E elas descreviam sua relação com bebida, substâncias, sexo, vício em jogos de azar.

A comida está na mesma casa desse comportamento, um ciclo de risco, recompensa, risco, recompensa, dá prazer, dá prazer. Nós humanos, macacos tosados, não conseguimos parar de apertar o botão. Isso acontece neurologicamente da mesma forma que acontece com as pessoas que têm esses outros vícios. Então, se elas merecem sua empatia, o mesmo acontece com uma pessoa que tem a ousadia de apenas existir num corpo enorme. Estou dizendo isso cinicamente.

O que você trouxe de você para Charlie?

Sei como é ser alvo de uma piada maldosa. Você está olhando para um cara que foi comparado a um exemplo meu de 25 anos atrás, de tanga. É obsceno e vende cópias do Daily Mail, mas que se danem as consequências para quem é o ser humano que recebe esse tipo de desprezo e escárnio. Adivinha? Não é legal.

Eu tenho sentimentos. Consigo me identificar com a arenga constante que as pessoas que vivem em corpos superdimensionados têm de suportar na vida diária. Elas passam despercebidas pelos médicos, não recebem a mesma atenção. Isso realmente acaba com sua confiança e pode levar a um comportamento mais prejudicial. É uma consequência para a saúde que seria essencialmente erradicada se simplesmente parássemos de ser ruins uns com os outros.

Como você se sentiu no último dia de filmagem?

A última vez que tirei a maquiagem, fiquei muito emocionado. Sei que é um pouco coisa de ator, mas não passou despercebido por mim que eu podia remover o figurino, mas as pessoas que vivem naquele corpo não podem. Fiquei torcendo para não os ter traído fingindo ser quem eles eram de uma forma que não ajudava, mas realmente senti que estava me despedindo de um cara que conhecia de uma maneira muito pessoal.

Além disso, depois de ter vivido esse papel, senti que ganhei uma salvação. O papel permitiu que eu me reapresentasse para uma indústria em que, se você está fora da vista, está fora da mente. Todos envelhecemos, todos mudamos - menos cabelo, corpo diferente. Eu queria interpretar Charlie para poder me apoiar em tudo isso e abraçá-lo, para sugar o oxigênio das vozes agressivas que eu imaginava que talvez desaprovassem. Vou ser sincero com você, sinto que estou me redimindo por apresentar uma performance que reinventa quem eu sou e presta homenagem a tudo o que foi esquecido sobre como eu existia profissionalmente.

O que atuar significava para você quando tinha 20 anos? Significa algo diferente agora?

Naquela época, era vida ou morte. São as apostas da ambição de um jovem. Mas, no momento, sinto que não tenho nada a provar. Por tudo que fiz para criar esse personagem, estou sem saída. Se não der certo, então realmente não sei o que estou fazendo. Foi assim que me senti no final.

Então, qual é a sensação de saber que deu certo?

É uma sensação gratificante, e parece que está fazendo bem. Depois de Toronto [o festival de cinema de setembro], um dos caras da Coalizão me escreveu e disse que o filme o emocionou e ele acredita firmemente que esse personagem vai salvar a vida de alguém, talvez de muitas pessoas. Sei que a resposta tem sido variada - pró, contra, tudo junto, e eu abraço a controvérsia -, mas na imprensa, um homem que ainda não tinha visto o filme disse: “Esta é a minha história”. [Assim como Charlie], ele se esconde dos colegas de trabalho e dos alunos com o computador. Ele tem um relacionamento tenso com a filha. Ele não pode sair de casa por medo do ridículo e não consegue respirar direito com o peso que seu corpo carrega.

Ter esse reconhecimento e ter esse cara dizendo algo como “Estou inspirado agora a mudar meus caminhos”, quero dizer, o que você pode dizer ao ouvir isso, além de “missão cumprida”? Fazemos filmes para entreter e esclarecer, mas, de vez em quando, aparece uma obra que realmente pode fazer algo para mudar a cultura ou a maneira como pensamos, mesmo que apenas por um tempo. E eu tenho sorte de estar em um filme assim. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Fazemos filmes para entreter e esclarecer, mas, de vez em quando, aparece uma obra que realmente pode fazer algo para mudar a cultura ou a maneira como pensamos, mesmo que apenas por um tempo

Brendan Fraser

THE NEW YORK TIMES - Muito tempo atrás, quando um gigantesco caubói da Marlboro vivia empoleirado em frente ao Chateau Marmont e uma refeição de três pratos para duas pessoas ainda custava menos de US$ 100 no Spago, Brendan Fraser chegou a Hollywood pronto para conquistá-la e descobriu, com alguma surpresa, que o lugar não oferecia muita resistência. O estrelato no cinema veio com facilidade para o jovem e robusto canadense, e ele sabe disso agora, porque desde então passou por fases da vida que se mostraram muito mais difíceis.

“Estive dirigindo por aí, olhando para esta cidade onde morava”, Fraser, agora com 54 anos, me disse recentemente em Los Angeles, “É como ver fantasmas de mim mesmo, as lembranças voltam”.

Ele se lembra da empolgação dos anos 1990, quando fez sucesso com papéis principais em filmes como O Homem da Califórnia e Código de Honra, balançando entre as árvores como o gente boa George - O Rei da Selva e o arrojado herói de A Múmia. Mas ele era visto menos como um ator sério e mais como um bobo bonito. E enquanto as comédias da tela grande de Fraser começavam a render menos dividendos nos anos 2000, ele passou a enfrentar uma série de dificuldades fora da tela, como um divórcio caro, contusões sofridas por anos de trabalho exaustivo como dublê e uma agressão sexual que ele disse ter sido cometida pelo ex-chefão do Globo de Ouro, Philip Berk - o que o levou a se retirar dos holofotes. (Berk negou a acusação).

Brendan Fraser disputa o Oscar 2023 de melhor ator por A Baleia Foto: Jordan Strauss/Invision/AP

Em 2020, o diretor Darren Aronofsky se deparou com o trailer de um filme antigo com Fraser e pensou que o ator estava pronto para ser recuperado: ele ofereceu a Fraser o papel principal de A Baleia, baseado na peça de Samuel D. Hunter, sobre Charlie, um obeso professor que se retirou do mundo, mas está tentando acertar as coisas com a filha distante (Sadie Sink). Para interpretar Charlie, Fraser consultou a Coalizão de Ação contra a Obesidade e vestiu um traje protético tão pesado que teve de ser enchido com tubos de água fria para regular a temperatura do corpo.

“Foi uma fusão de homem e máquina, de certa forma”, disse ele.

A atuação de Fraser em A Baleia lhe rendeu uma indicação ao Oscar e um Screen Actors Guild Award de melhor ator. Ainda este ano, ele será visto em Killers of the Flower Moon, de Martin Scorsese, provando que voltou para ficar.

“Se os diretores são pintores e os atores têm cores diferentes, fazia tempo que não tínhamos uma cor como Brendan na paleta”, disse Aronofsky. “Estou muito, muito orgulhoso por ele estar recebendo o que merece.”

Pessoalmente, Fraser é tão manso e cortês que simplesmente mastigar uma salada na frente dele pode fazer você se sentir como se estivesse batendo pratos. Quando o encontrei no restaurante de um hotel de West Hollywood em meados de fevereiro, ele falou com humildade sobre o arco da temporada de premiações que mais uma vez o tornou uma estrela de Hollywood.

“Não vou achar que nada está garantido, sabendo como essa jornada foi difícil”, disse ele.

Como é fazer esses discursos de aceitação e receber tantas homenagens?

Estou vivendo uma sequência de experiências extracorpóreas, preciso ficar me beliscando: será que isso está acontecendo de verdade? Minha obrigação é tomar posse dessa onda de generosidade e apoio. Está virando minha cabeça e estou muito grato, mas seria negligente se não entendesse tudo do jeito certo.

De que forma você precisa tomar posse de todos esses eventos?

Só preciso ser digno desses eventos, porque tenho consciência de onde estava, para onde fui e onde estou agora. Ao mesmo tempo, reluto em ficar confiante demais sobre qualquer coisa, porque já passei por esse carrossel várias vezes e sei que, se você ficar muito confortável, pode se tornar complacente. É aí que você se mete em problemas e deixa os padrões baixarem e deixa passar as coisas que, de outra forma, seriam realmente preocupantes para você.

‘A Baleia’ exigiu que você usasse próteses imensas. Como isso afeta a maneira como você representa um papel?

Eu sabia que era essencialmente um trabalho de máscara. Sabia que seria desconfortável. Mas e daí? Sabia que precisaria ser muito paciente para ficar ligado nas cenas enquanto eles faziam ajustes entre as tomadas. E Darren gosta de fazer muitas tomadas. Então eu tinha que ser como um cavalo que eu tive e que era muito tranquilo. Você podia prendê-lo, escová-lo, ele nunca fazia nada. Você tem que ficar parado e aguentar, ter paciência e não morder nem dar coice em ninguém porque eles estão lá para ajudar. Aí você deixa tudo isso de lado e faz o que precisa.

Como você se preparou para o filme?

A Coalizão de Ação contra a Obesidade me deu acesso a muitas pessoas, para que eu pudesse perguntar coisas sobre a história delas em chamadas de Zoom. Conversei com talvez oito ou dez pessoas - algumas acamadas, outras perfeitamente móveis - e pedia a elas: “Fale comigo sobre sua dieta diária”. E elas descreviam sua relação com bebida, substâncias, sexo, vício em jogos de azar.

A comida está na mesma casa desse comportamento, um ciclo de risco, recompensa, risco, recompensa, dá prazer, dá prazer. Nós humanos, macacos tosados, não conseguimos parar de apertar o botão. Isso acontece neurologicamente da mesma forma que acontece com as pessoas que têm esses outros vícios. Então, se elas merecem sua empatia, o mesmo acontece com uma pessoa que tem a ousadia de apenas existir num corpo enorme. Estou dizendo isso cinicamente.

O que você trouxe de você para Charlie?

Sei como é ser alvo de uma piada maldosa. Você está olhando para um cara que foi comparado a um exemplo meu de 25 anos atrás, de tanga. É obsceno e vende cópias do Daily Mail, mas que se danem as consequências para quem é o ser humano que recebe esse tipo de desprezo e escárnio. Adivinha? Não é legal.

Eu tenho sentimentos. Consigo me identificar com a arenga constante que as pessoas que vivem em corpos superdimensionados têm de suportar na vida diária. Elas passam despercebidas pelos médicos, não recebem a mesma atenção. Isso realmente acaba com sua confiança e pode levar a um comportamento mais prejudicial. É uma consequência para a saúde que seria essencialmente erradicada se simplesmente parássemos de ser ruins uns com os outros.

Como você se sentiu no último dia de filmagem?

A última vez que tirei a maquiagem, fiquei muito emocionado. Sei que é um pouco coisa de ator, mas não passou despercebido por mim que eu podia remover o figurino, mas as pessoas que vivem naquele corpo não podem. Fiquei torcendo para não os ter traído fingindo ser quem eles eram de uma forma que não ajudava, mas realmente senti que estava me despedindo de um cara que conhecia de uma maneira muito pessoal.

Além disso, depois de ter vivido esse papel, senti que ganhei uma salvação. O papel permitiu que eu me reapresentasse para uma indústria em que, se você está fora da vista, está fora da mente. Todos envelhecemos, todos mudamos - menos cabelo, corpo diferente. Eu queria interpretar Charlie para poder me apoiar em tudo isso e abraçá-lo, para sugar o oxigênio das vozes agressivas que eu imaginava que talvez desaprovassem. Vou ser sincero com você, sinto que estou me redimindo por apresentar uma performance que reinventa quem eu sou e presta homenagem a tudo o que foi esquecido sobre como eu existia profissionalmente.

O que atuar significava para você quando tinha 20 anos? Significa algo diferente agora?

Naquela época, era vida ou morte. São as apostas da ambição de um jovem. Mas, no momento, sinto que não tenho nada a provar. Por tudo que fiz para criar esse personagem, estou sem saída. Se não der certo, então realmente não sei o que estou fazendo. Foi assim que me senti no final.

Então, qual é a sensação de saber que deu certo?

É uma sensação gratificante, e parece que está fazendo bem. Depois de Toronto [o festival de cinema de setembro], um dos caras da Coalizão me escreveu e disse que o filme o emocionou e ele acredita firmemente que esse personagem vai salvar a vida de alguém, talvez de muitas pessoas. Sei que a resposta tem sido variada - pró, contra, tudo junto, e eu abraço a controvérsia -, mas na imprensa, um homem que ainda não tinha visto o filme disse: “Esta é a minha história”. [Assim como Charlie], ele se esconde dos colegas de trabalho e dos alunos com o computador. Ele tem um relacionamento tenso com a filha. Ele não pode sair de casa por medo do ridículo e não consegue respirar direito com o peso que seu corpo carrega.

Ter esse reconhecimento e ter esse cara dizendo algo como “Estou inspirado agora a mudar meus caminhos”, quero dizer, o que você pode dizer ao ouvir isso, além de “missão cumprida”? Fazemos filmes para entreter e esclarecer, mas, de vez em quando, aparece uma obra que realmente pode fazer algo para mudar a cultura ou a maneira como pensamos, mesmo que apenas por um tempo. E eu tenho sorte de estar em um filme assim. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Fazemos filmes para entreter e esclarecer, mas, de vez em quando, aparece uma obra que realmente pode fazer algo para mudar a cultura ou a maneira como pensamos, mesmo que apenas por um tempo

Brendan Fraser

THE NEW YORK TIMES - Muito tempo atrás, quando um gigantesco caubói da Marlboro vivia empoleirado em frente ao Chateau Marmont e uma refeição de três pratos para duas pessoas ainda custava menos de US$ 100 no Spago, Brendan Fraser chegou a Hollywood pronto para conquistá-la e descobriu, com alguma surpresa, que o lugar não oferecia muita resistência. O estrelato no cinema veio com facilidade para o jovem e robusto canadense, e ele sabe disso agora, porque desde então passou por fases da vida que se mostraram muito mais difíceis.

“Estive dirigindo por aí, olhando para esta cidade onde morava”, Fraser, agora com 54 anos, me disse recentemente em Los Angeles, “É como ver fantasmas de mim mesmo, as lembranças voltam”.

Ele se lembra da empolgação dos anos 1990, quando fez sucesso com papéis principais em filmes como O Homem da Califórnia e Código de Honra, balançando entre as árvores como o gente boa George - O Rei da Selva e o arrojado herói de A Múmia. Mas ele era visto menos como um ator sério e mais como um bobo bonito. E enquanto as comédias da tela grande de Fraser começavam a render menos dividendos nos anos 2000, ele passou a enfrentar uma série de dificuldades fora da tela, como um divórcio caro, contusões sofridas por anos de trabalho exaustivo como dublê e uma agressão sexual que ele disse ter sido cometida pelo ex-chefão do Globo de Ouro, Philip Berk - o que o levou a se retirar dos holofotes. (Berk negou a acusação).

Brendan Fraser disputa o Oscar 2023 de melhor ator por A Baleia Foto: Jordan Strauss/Invision/AP

Em 2020, o diretor Darren Aronofsky se deparou com o trailer de um filme antigo com Fraser e pensou que o ator estava pronto para ser recuperado: ele ofereceu a Fraser o papel principal de A Baleia, baseado na peça de Samuel D. Hunter, sobre Charlie, um obeso professor que se retirou do mundo, mas está tentando acertar as coisas com a filha distante (Sadie Sink). Para interpretar Charlie, Fraser consultou a Coalizão de Ação contra a Obesidade e vestiu um traje protético tão pesado que teve de ser enchido com tubos de água fria para regular a temperatura do corpo.

“Foi uma fusão de homem e máquina, de certa forma”, disse ele.

A atuação de Fraser em A Baleia lhe rendeu uma indicação ao Oscar e um Screen Actors Guild Award de melhor ator. Ainda este ano, ele será visto em Killers of the Flower Moon, de Martin Scorsese, provando que voltou para ficar.

“Se os diretores são pintores e os atores têm cores diferentes, fazia tempo que não tínhamos uma cor como Brendan na paleta”, disse Aronofsky. “Estou muito, muito orgulhoso por ele estar recebendo o que merece.”

Pessoalmente, Fraser é tão manso e cortês que simplesmente mastigar uma salada na frente dele pode fazer você se sentir como se estivesse batendo pratos. Quando o encontrei no restaurante de um hotel de West Hollywood em meados de fevereiro, ele falou com humildade sobre o arco da temporada de premiações que mais uma vez o tornou uma estrela de Hollywood.

“Não vou achar que nada está garantido, sabendo como essa jornada foi difícil”, disse ele.

Como é fazer esses discursos de aceitação e receber tantas homenagens?

Estou vivendo uma sequência de experiências extracorpóreas, preciso ficar me beliscando: será que isso está acontecendo de verdade? Minha obrigação é tomar posse dessa onda de generosidade e apoio. Está virando minha cabeça e estou muito grato, mas seria negligente se não entendesse tudo do jeito certo.

De que forma você precisa tomar posse de todos esses eventos?

Só preciso ser digno desses eventos, porque tenho consciência de onde estava, para onde fui e onde estou agora. Ao mesmo tempo, reluto em ficar confiante demais sobre qualquer coisa, porque já passei por esse carrossel várias vezes e sei que, se você ficar muito confortável, pode se tornar complacente. É aí que você se mete em problemas e deixa os padrões baixarem e deixa passar as coisas que, de outra forma, seriam realmente preocupantes para você.

‘A Baleia’ exigiu que você usasse próteses imensas. Como isso afeta a maneira como você representa um papel?

Eu sabia que era essencialmente um trabalho de máscara. Sabia que seria desconfortável. Mas e daí? Sabia que precisaria ser muito paciente para ficar ligado nas cenas enquanto eles faziam ajustes entre as tomadas. E Darren gosta de fazer muitas tomadas. Então eu tinha que ser como um cavalo que eu tive e que era muito tranquilo. Você podia prendê-lo, escová-lo, ele nunca fazia nada. Você tem que ficar parado e aguentar, ter paciência e não morder nem dar coice em ninguém porque eles estão lá para ajudar. Aí você deixa tudo isso de lado e faz o que precisa.

Como você se preparou para o filme?

A Coalizão de Ação contra a Obesidade me deu acesso a muitas pessoas, para que eu pudesse perguntar coisas sobre a história delas em chamadas de Zoom. Conversei com talvez oito ou dez pessoas - algumas acamadas, outras perfeitamente móveis - e pedia a elas: “Fale comigo sobre sua dieta diária”. E elas descreviam sua relação com bebida, substâncias, sexo, vício em jogos de azar.

A comida está na mesma casa desse comportamento, um ciclo de risco, recompensa, risco, recompensa, dá prazer, dá prazer. Nós humanos, macacos tosados, não conseguimos parar de apertar o botão. Isso acontece neurologicamente da mesma forma que acontece com as pessoas que têm esses outros vícios. Então, se elas merecem sua empatia, o mesmo acontece com uma pessoa que tem a ousadia de apenas existir num corpo enorme. Estou dizendo isso cinicamente.

O que você trouxe de você para Charlie?

Sei como é ser alvo de uma piada maldosa. Você está olhando para um cara que foi comparado a um exemplo meu de 25 anos atrás, de tanga. É obsceno e vende cópias do Daily Mail, mas que se danem as consequências para quem é o ser humano que recebe esse tipo de desprezo e escárnio. Adivinha? Não é legal.

Eu tenho sentimentos. Consigo me identificar com a arenga constante que as pessoas que vivem em corpos superdimensionados têm de suportar na vida diária. Elas passam despercebidas pelos médicos, não recebem a mesma atenção. Isso realmente acaba com sua confiança e pode levar a um comportamento mais prejudicial. É uma consequência para a saúde que seria essencialmente erradicada se simplesmente parássemos de ser ruins uns com os outros.

Como você se sentiu no último dia de filmagem?

A última vez que tirei a maquiagem, fiquei muito emocionado. Sei que é um pouco coisa de ator, mas não passou despercebido por mim que eu podia remover o figurino, mas as pessoas que vivem naquele corpo não podem. Fiquei torcendo para não os ter traído fingindo ser quem eles eram de uma forma que não ajudava, mas realmente senti que estava me despedindo de um cara que conhecia de uma maneira muito pessoal.

Além disso, depois de ter vivido esse papel, senti que ganhei uma salvação. O papel permitiu que eu me reapresentasse para uma indústria em que, se você está fora da vista, está fora da mente. Todos envelhecemos, todos mudamos - menos cabelo, corpo diferente. Eu queria interpretar Charlie para poder me apoiar em tudo isso e abraçá-lo, para sugar o oxigênio das vozes agressivas que eu imaginava que talvez desaprovassem. Vou ser sincero com você, sinto que estou me redimindo por apresentar uma performance que reinventa quem eu sou e presta homenagem a tudo o que foi esquecido sobre como eu existia profissionalmente.

O que atuar significava para você quando tinha 20 anos? Significa algo diferente agora?

Naquela época, era vida ou morte. São as apostas da ambição de um jovem. Mas, no momento, sinto que não tenho nada a provar. Por tudo que fiz para criar esse personagem, estou sem saída. Se não der certo, então realmente não sei o que estou fazendo. Foi assim que me senti no final.

Então, qual é a sensação de saber que deu certo?

É uma sensação gratificante, e parece que está fazendo bem. Depois de Toronto [o festival de cinema de setembro], um dos caras da Coalizão me escreveu e disse que o filme o emocionou e ele acredita firmemente que esse personagem vai salvar a vida de alguém, talvez de muitas pessoas. Sei que a resposta tem sido variada - pró, contra, tudo junto, e eu abraço a controvérsia -, mas na imprensa, um homem que ainda não tinha visto o filme disse: “Esta é a minha história”. [Assim como Charlie], ele se esconde dos colegas de trabalho e dos alunos com o computador. Ele tem um relacionamento tenso com a filha. Ele não pode sair de casa por medo do ridículo e não consegue respirar direito com o peso que seu corpo carrega.

Ter esse reconhecimento e ter esse cara dizendo algo como “Estou inspirado agora a mudar meus caminhos”, quero dizer, o que você pode dizer ao ouvir isso, além de “missão cumprida”? Fazemos filmes para entreter e esclarecer, mas, de vez em quando, aparece uma obra que realmente pode fazer algo para mudar a cultura ou a maneira como pensamos, mesmo que apenas por um tempo. E eu tenho sorte de estar em um filme assim. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Fazemos filmes para entreter e esclarecer, mas, de vez em quando, aparece uma obra que realmente pode fazer algo para mudar a cultura ou a maneira como pensamos, mesmo que apenas por um tempo

Brendan Fraser

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