WASHINGTON POST - Jamie Lee Curtis é sua nova melhor amiga, batendo na sua mão, dando tapinha na sua coxa. Ela gosta de compartilhar. Uma entrevista de duas horas se estende por quatro. O sol derrete no Pacífico. A luz vai sumindo nos seus limoeiros. Curtis, 64 anos, continua falando.
Ela jorra histórias. Outras atrizes inspiram maravilhamento, pairam sobre nós, são planetas distantes. Blanchett, Kidman, Streep, Yeoh, a estrela de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. Curtis é amada. Ela não tenta ser bacana. Ela é a estrela de cinema perto da gente.
Ela assou um bolo de limão. É a temporada do Oscar, “a temporada das coisas brilhantes”, como ela diz, quando atrizes indicadas se comprometem com aipo e Spanx da clavícula ao tornozelo. Curtis se delicia com o bolo. É sua primeira indicação em quase meio século de carreira. Ela é provavelmente a primeira indicada a passar sete anos vendendo iogurte que “faz você fazer cocô”, nas suas palavras, pronta para uma paródia do Saturday Night Live. Eis que, no domingo, 26, ela ganhou o Screen Actors Guild Award.
Sinceridade é seu cartão de visita. A pança vasta e ameaçadora da auditora fiscal e amante de dedos de salsicha Deirdre Beaubeirdre é dela mesma. Não acredita? Sentada à mesa de jantar, com o cachorro resgatado Runi enrolado nos seus pés descalços, Curtis levanta o suéter e aperta a barriga sobre o jeans, como um monte de massa fresca. “Oh, sim, é tudo meu mesmo”. Duas décadas atrás, Curtis posou de lingerie preta e sem maquiagem, sem retoques na celulite, nos pés de galinha e nas outras imperfeições mortais, tornando-se instantaneamente uma parceira para todo mundo.
Curtis era muito conhecida por seu corpo - Trocando as Bolas (1983, sete segundos sem blusa - ela cronometrou - que muitos se lembram erroneamente de ter sido a única coisa que fez no filme), Perfeição (1985, Curtis como professora de aeróbica) e True Lies (1994, seu strip-tease de lingerie e salto alto). Mas isso não é um bom plano para o longo prazo nesse ramo. Atriz cômica talentosa, Curtis combinou beleza com um sorriso contagiante. Brilhou em filmes icônicos como Um Peixe Chamado Wanda e Sexta-Feira Muito Louca. Ela se recusou a ficar na caixa onde a cultura pop a colocou.
Além disso, ela chora. Várias vezes. Em seu podcast de duas temporadas Good Friend, lançado durante a pandemia, ela é reduzida a uma poça de lágrimas quase todos os episódios. “Ela leva as terminações nervosas à flor da pele”, diz a amiga Deborah Oppenheimer. Curtis é conhecida por sua lealdade e constância. Ela mantém amigos. E é casada com o diretor e ator Christopher Guest há quase quatro décadas.
“Ela é a estrela de cinema menos estrela de cinema que já conheci”, diz Jason Blum, da Blumhouse, produtor da trilogia do reboot de Halloween. “Você torce por ela. Ela se joga. É difícil não ficar do lado de uma pessoa assim.”
Viva onde seus pés estão
Curtis é uma criança de Hollywood - filha dos atores Janet Leigh e Tony Curtis - que nunca se viu nadando na piscina grande. Alguém do banco de reservas, não a craque do time. Apresentadora recorrente do Oscar - certa vez, desceu pendurada e descalça de um helicóptero (incrivelmente, isso foi ideia dela) - nunca tinha sido indicada para o Oscar. Em recuperação há 24 anos, ela não dá nada como certo, saboreia cada momento e se recusa a especular sobre o que vai acontecer. Seu ditado: viva onde seus pés estão.
“Fui uma batalhadora a vida toda”, diz ela. É o que ela admira nas outras pessoas. Fotografada na manhã de sua indicação ao Oscar, ainda de pijama, ficou “em choque total. Não sabia que ia acontecer. O que você vê na foto é um choro sem glamour”.
Muitos tipos brilhantes vão ao Oscar. Somente os consagrados compareceram ao almoço do Oscar, realizado este ano em 13 de fevereiro, o encontro do pessoal bacana e bonito do país. “Essa segunda-feira ficará marcada como o dia mais importante da minha vida profissional”, diz Curtis (também foi o dia em que ela posou para o Washington Post). Ela acha que é maior do que a pompa colossal de 12 de março, porque finalmente alcançou o santuário, porque sua atuação foi reconhecida e valorizada. “A realidade é que 99% das pessoas que conheci no almoço do Oscar nunca me contrataram. Não estou reclamando. Não é autodepreciativo”, diz ela. Ela se divertiu com o momento. Fez um telefone com a mão e a levou perto do ouvido: “Ligue para mim, me contrate, Guillermo Del Toro”.
Tom Cruise, que Curtis diz não conhecer, disse a ela no almoço: “Dá para acreditar? Chegamos aqui”. Ela diz: “São pessoas que não fazem parte da nossa vida normal, nossa vida artística. Estamos no ramo do entretenimento”, escandindo cada sílaba.
Curtis está neste momento flexionando mais músculos criativos e financeiros do que nunca, em parte por causa de seu sucesso como motor de entretenimento, como estrela dos filmes-pipoca. Curtis é a rainha do grito de um gênero que ela não aguenta assistir. Ok, na noite de estreia ela vai assistir.
Horror custa pouco. Feito da maneira certa, é matador nas bilheterias globais. Curtis é o suporte, a linha de fundo, a “garota que fica até o final”, como são conhecidas no império do Halloween, que data de 1978 e do início da sua carreira. Os últimos três filmes Halloween de Curtis arrecadaram quase US$ 500 milhões; Halloween, a sequência de 2018, marcou a maior estreia com protagonista feminina com mais de 55 anos.
Sua Comet Pictures assinou um contrato de produção com a Blumhouse e tem vários projetos em desenvolvimento: uma série da Amazon intitulada The Sticky sobre o grande roubo do xarope de bordo canadense, com Margo Martindale; um filme sobre os heróis do mortal incêndio do Paradise em 2018, baseado em um livro de Lizzie Johnson, do Washington Post; e um filme de terror ecológico Mother Nature, que ela escreveu com Russell Goldman, que inspirou uma história em quadrinhos a ser publicada em julho, ilustrada por Karl Stevens. “Sempre fui uma garota de ideias”, diz Curtis. “Queria ser produtora. Queria ser criadora. Minha vontade é contar histórias”.
Ela mora na casa do sim
Ela cita o romancista Kazuo Ishiguro, um discurso que ele fez na recente cerimônia da AARP, onde Curtis foi homenageada com um Prêmio pela Realização de Carreira: “A troca de histórias não é apenas divertida e desejável. É algo essencial para o nosso bem-estar”. Curtis diz que ela se agachou ao lado do vencedor do Prêmio Nobel, que ela também não conhece, e sussurrou: “Posso ficar com uma cópia do seu discurso?” Ele entregou as mesmas folhas que ela segura agora porque, ao que parece, é difícil dizer não a Jamie Lee Curtis. Ela mora na casa do sim.
Numa grande jogada, Curtis conseguiu os direitos dos mistérios de assassinato de Kay Scarpetta, best-sellers de Patricia Cornwell. Como é uma pessoa insistentemente curiosa, Curtis perguntou sobre os direitos: eis que Cornwell os possuía e confiou o projeto à sua amiga de longa data. Curtis virou chefe numa cidade que os venera.
Jamie Lee Curtis
Curtis e Cate Blanchett estão lançamento Borderlands, baseado no videogame, dirigido por Eli Roth e Tim Miller. Há conversas sérias sobre uma sequência de Sexta-Feira Muito Louca com Lindsay Lohan. E ainda tem o acordo dela com Nicole Kidman.
Isso é outra história. Curtis conheceu Kidman no Oscar do ano passado. Ela também não a conhecia. Kidman, a atriz, estava lá como indicada pela quinta vez. Curtis, a militante, estava lá com uma cachorrinha chamada Macarronada, para homenagear a campeã dos direitos dos animais Betty White durante o segmento In Memoriam. Seu objetivo: fazer com que ela fosse adotada.
John Travolta, que estrelou Perfeição com Curtis, adotou a cachorrinha e trocou seu nome para Amendoim. Resumindo: Kidman vai estrelar como Scarpetta. Curtis vai fazer sua irmã, Dorothy. E o retorno de Curtis ao Oscar vem como indicada por um filme que de início a confundiu (embora ela não esteja sozinha nessa). Tudo em Todo Lugar consegue incorporar uma lavanderia chinesa, o multiverso, dedos de salsicha, um bagel niilista, uma imperiosa auditora da Receita Federal (que seria Curtis) e pedras de olhos arregalados.
O primeiro dia de filmagem de Tudo em Todo Lugar começou quase três anos antes de o filme receber 11 indicações para o Oscar. “Foi feito rápido e com muito pouco dinheiro”, diz Curtis sobre as cinco semanas de filmagens e o orçamento de menos de US$ 20 milhões. Aí veio a pandemia, que deu aos diretores Daniel Scheinert e Daniel Kwan (conhecidos como os Daniels) tempo para consertar e aperfeiçoar enquanto seguravam o longa para o lançamento nos cinemas.
“Eu não entendi o filme. Mas eu a conhecia. E adorei Deirdre porque sei como ela é solitária, sei como ela está esquecida”, diz Curtis, que guarda o Prêmio “Auditora do Mês” na forma de um certo brinquedo adulto ao lado de seu Leão de Ouro do Festival de Cinema de Veneza de 2021 pelo conjunto da obra. Curtis insistiu que Deirdre tinha “unhas lindas porque acredito que esse contato com a manicure é o único toque físico de outro ser humano que ela teve na vida”, diz ela.
Jamie Lee Curtis
“Jamie claramente não tinha problemas em deixar tudo cada vez mais estranho e esquisito”, diz Kwan. “Ela trouxe tanta vida e humor para a personagem que foi muito surpreendente para nós. Quando Jamie se compromete com tudo, ela dá cem por cento”.
Curtis ficava no set, sempre presente. Ela detesta trailers: seus trailers juntam poeira. Foi assim que ganhou mais tempo na tela em Entre Facas e Segredos / Knives Out e se tornou parte integrante de Tudo em Todo Lugar, apesar de ter um papel coadjuvante. Nas exibições de teste, os espectadores ansiavam por mais Deirdre, em toda a sua glória cor de mostarda. Como atriz, seu único trabalho é “fazer você acreditar que quem eu sou e o que estou dizendo é real”. O maior elogio que ela recebe dos fãs? “Eu não percebi que era você”. Líder da torcida para Michelle Yeoh, indicada para o prêmio de melhor atriz, Curtis se comprometeu a fazer do filme um sucesso. Os Daniels a apelidaram de “nossa arma de promoção em massa”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU