No passado, mais exatamente em 2010, o então Belas Artes, que ainda não era Petra, celebrou a longevidade de um grande filme em cartaz. Medos Públicos em Lugares Privados, de Alain Resnais, completou três anos e meio nas telas do conjunto de salas da Consolação. Eram outros tempos, pré-pandemia. O público acorria aos cinemas. Com a pandemia, tudo mudou. Por comodidade, ou medo, muita gente hoje consome filmes no streaming. Exibidores e distribuidores quebram a cabeça em busca de formas para recuperar esse público perdido. Nesse novo, e não admirável mundo, está ocorrendo algo mágico.
Indicado para o Oscar de melhor filme internacional do ano passado, o longa A Felicidade das Pequenas Coisas, do autor do Butão Pawo Choyning Darji, está completando nesta semana - dia 26 - um ano em cartaz. Decorrido todo esse tempo, o filme continua tendo sessões em que, muitas vezes, o público é maior do que o das estreias. O título já é revelador. Fala das pequenas coisas da vida, e da felicidade que podem proporcionar. De Paris, onde está baseado, o diretor comenta, para o Estado, o sucesso.
“Lunana - título original - é meu primeiro filme. Sou autodidata, não frequentei nenhuma escola de cinema. Comecei a fazer filmes movido exclusivamente pelo meu desejo de contar histórias. Creio ser importante dizer que, no Butão, não existe uma palavra ou expressão para esse ato - contar histórias. Em inglês, eu posso dizer ‘Luiz, me conte uma história.’ Em butanês, já que não existe palavra para história, dizemos - ‘Luiz, desenrola o nó - a knot - para mim.’ Mesmo que não existam palavras específicas, as histórias são uma importante parte de nossa cultura, e de nossas vidas no dia a dia. Contar uma história é desatar esse nó. É algo que se faz com um objetivo. Histórias devem unir, motivar o outro e libertar o conjunto das pessoas e das coletividades. Foi por isso que comecei a contar histórias, e a fazer filmes.”
Pawo Choyning Darji
E Pawo prossegue - “Queria contar uma história específica sobre esse momento do meu país no tempo. O Butão é considerado por muita gente o país mais feliz do mundo, mas como vivemos numa espécie de armadilha entre tradição e modernidade, tem muita gente confusa, muitos jovens que se assemelham ao meu protagonista. Ele não tem noção de pertencimento, acredita que será feliz longe de casa, em países modernos como a Austrália, os EUA e o Canadá. Muitos butaneses sonham com as luzes das grandes cidades, e por isso decidi contar essa história que vai na direção oposta. Ele vai ser professor na região mais remota do Butão. O contrário da luz é a escuridão. Lunana quer dizer ‘vale escuro’ e o sentido do filme é essa descoberta que ele faz - só quem conhece a escuridão pode entender e valorizar a luminosidade, a luz.”
E por isso o professor, ao realizar o sonho de viajar à Austrália, o que faz? “Ele canta a canção do yak no bar. Está ligado ao seu mundo de origem, não importa onde esteja.” Pawo conta que fez o filme sem nenhuma expectativa. “Só queria dividir meu país e nossa cultura com o resto do mundo. Filmei com uma câmera Canon básica, numa região sem eletricidade e com atores espontâneos, não profissionais. De alguma forma, o filme fez essa jornada incrível e tocou o coração do público em regiões tão distantes como São Paulo. Para mim, é uma prova da importância do cinema em nossas vidas. Do ponto de vista geográfico, linguístico, cultural, tudo nos separa, mas Lunana, o filme, nos une por meio dessa linguagem universal que é o cinema. O desejo de ser feliz, a necessidade de pertencimento são universais, não importa o lugar. Nunca fui ao Brasil, mas tenho amigos brasileiros que me mostram que, a despeito das dificuldades que vocês também enfrentam, seu povo pode ser tão bonito e caloroso como o do Butão. Embora falando de um lugar remoto do Himalaia, no limite nossos sentimentos são similares. Enche meu coração de gratidão essa acolhida a Lunana. Obrigado, São Paulo.”