Enquanto o cinema mainstream comercial tende a oferecer experiências confortáveis ao espectador, filmes como Anatomia de uma Queda e Zona de Interesse utilizam o desconforto como sustentação narrativa, seja por meio de personagens excêntricos, realidades desagradáveis ou incertezas e subjetividades para tratar de temas complexos.
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Os dramas de Justine Triet e Jonathan Glazer, ambos indicados a 5 categorias no Oscar e em cartaz nos cinemas, acumularam prêmios da crítica e agradaram a um grupo nichado de fãs da sétima arte, mas não caíram nas graças do grande público, que tende a rejeitar filmes desconfortáveis. Por isso, o Estadão conversou com dois psicanalistas para tentar compreender a gênese do problema.
“Não acredito que seja fragilidade emocional do público. Isso tem a ver com os mecanismos de defesa que a gente usa para continuar funcionando no mundo em que a gente vive. Fortes e fracos fazem a mesma coisa. São filmes que conduzem ao desconforto e jogam na sua cara o que você faz diariamente e sabe que não deveria fazer. Mas as pessoas acham tão prazeroso julgar os outros e não se dão conta das atrocidades do mundo que continuam fazendo”, explica Luciana Saddi, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e coordenadora do Ciclo de Cinema e Psicanálise do Museu da Imagem e do Som (MIS).
“Provavelmente o desconforto que os filmes provocam decorre do fato de se afastarem das visões simplificadoras veiculadas pelo entretenimento e, como faz a arte, mostrarem a complexidade dos fatos e da existência humana”, aponta Sergio Telles, escritor, autor de O Psicanalista vai ao Cinema e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (São Paulo), onde coordena o grupo Psicanálise e Cultura.
Baseado no livro homônimo de Martin Amis, o filme de Glazer mostra como Rudolf Höss (conheça, aqui, sua história real), oficial nazista, e sua família vivem tranquilamente em uma casa grande, na Polônia, ao lado do muro do campo de concentração de Auschwitz – realidade assustadora que força o público a refletir através do desconforto oculto, pois as atrocidades do Holocausto jamais são expostas ali.
“O filme consegue nos fazer pensar em tudo aquilo que não aguentamos no nosso dia a dia, que nos faz fechar os olhos ou dizer ‘e daí?’. O espectador acaba se identificando com a família nazista e percebe que está numa bolha enquanto ao redor dele há muita dor. Ele sabe o que está acontecendo, mas não quer ver”, conta Saddi.
“Vemos pessoas tidas como ‘normais’ convivendo e tirando proveito sem nenhum escrúpulo de situações de absoluta degradação humana. Não funcionam os esquemas narrativos habituais, em que existe uma clara delimitação entre o bem e o mal. O espectador não consegue se situar claramente e a tensão persiste”, complementa Telles.
Anatomia de uma Queda
Já o longa-metragem francês de Triet evoca questões sobre o papel da mulher no casamento e o luto de uma companheira inundada por emoções confusas após a morte do marido enquanto defende sua inocência no tribunal.
“O espectador é induzido a julgar a personagem a partir de seus próprios preconceitos e implicâncias, da mesma forma rasa que as pessoas fazem em linchamentos nas redes sociais”, opina Saddi.
“Outra coisa incômoda no filme é romper com a crença compartilhada de que a violência está nas ruas, praticada pelos outros, os estranhos, os desconhecidos. São eles os perigosos. Aqui, a violência e o perigo estão no seio da família, no contato com as pessoas mais próximas. Essa é uma inquietante realidade”, afirma Telles.
Cinema e psicanálise
Existe uma relação profunda entre o cinema e a psicanálise. Assim como os sonhos, os filmes são repletos de simbolismos e exploram a relação dos desejos conscientes e inconscientes, desencadeando processos irracionais no espectador – o que pode provocar experiências prazerosas ou não.
“A arte (cinema) e psicanálise estão muito próximas na capacidade de captar a realidade psíquica em sua dimensão consciente e inconsciente, proporcionando um conhecimento único da condição humana. Além do mais, o sonho, que a psicanálise considera como a via régia para o inconsciente, se expressa numa linguagem visual idêntica à do cinema”, analisa Telles.
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“A cabeça do artista é uma grande antena parabólica, que capta as angústias e as preocupações do seu próprio tempo. E a psicanálise também faz isso. A arte incomoda, ela não pacifica. Consumir uma obra de arte é permitir ser atrapalhado, ser colocado fora da sua posição rotineira. Elas causam uma perturbação e isso sempre tem uma qualidade que gera transcendência e questionamentos”, explica Saddi.