O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov (1891-1940), é considerado um dos romances mais notáveis da literatura do século 20. Satírica, a obra, lançada em 1967, faz um retrato ácido do autoritarismo de Josef Stalin na então União Soviética, narrando a chegada de um diabo fanfarrão à cidade de Moscou. Em janeiro, uma adaptação da trama chegou aos cinemas russos causando frenesi por dialogar com os tempos atuais. Tornou-se sucesso de crítica e de público, e, ao mesmo tempo, alvo de perseguição.
A polêmica começou a se delinear tempos antes do lançamento: Michael Lockshin, diretor do filme homônimo, não esconde seu posicionamento contra a guerra na Ucrânia, sendo bastante vocal sobre o conflito desde que a Rússia invadiu o país vizinho, em fevereiro de 2022. Lockshin é filho de russos, mas nasceu nos Estados Unidos. Ainda na infância, a família voltou para a União Soviética, onde ele cresceu e completou seus estudos. Atualmente, vive em Los Angeles.
O longa, filmado em 2021 com elenco russo e europeu, seria distribuído mundialmente pela Universal Pictures. Com a guerra, o estúdio acompanhou o movimento hollywoodiano de saída do mercado russo, e o projeto, que já estava na fase de pós-produção, enfrentou um período de limbo. O roteiro havia sido escrito por Lockshin e Roman Kantor anos antes.
Lockshin não estava disposto a calar suas manifestações contra a guerra para salvar a imagem do filme. Em contrapartida, os produtores russos retiraram seu nome do material promocional, chegando a divulgar que o americano não estava envolvido na produção desde 2021. Para o diretor, foi um milagre o longa ter finalmente estreado.
O Mestre e Margarida foi lançado em 25 de janeiro por uma distribuidora local, Atmosphere Kino (ainda não há previsão de lançamento no resto do mundo). Em 1º de fevereiro, o filme já tinha arrecadado mais de 600 milhões de rublos (por volta de US$ 6,7 milhões) em bilheteria, segundo a Variety.
Contra todas as expectativas, tornou-se um dos filmes mais rentáveis e populares do cinema russo. Paralelamente, virou alvo de perseguição: tanto o longa quanto seu diretor começaram a receber ataques de grupos pró-Kremlin presentes online, além de personalidades da mídia e da TV conhecidas por serem propagandistas ferrenhas do governo. As falas mais revoltosas pedem que Lockshin seja investigado e preso pela forma como retrata o exército russo, o chamam de terrorista e até o ameaçam de morte.
É, afinal, um prato cheio para os ativistas pró-governo: um blockbuster filmado por um americano, crítico da guerra, que satiriza o totalitarismo e a censura. Ironicamente, chegou às telonas no momento em que a repressão do governo de Vladimir Putin está escalando.
Para complicar ainda mais o cenário, O Mestre e Margarida recebeu financiamento do Russian Cinema Fund, de apoio estatal. Isso atiçou a ira dos defensores do Kremlin, que questionam, em tom conspiracionista, como o projeto foi aprovado. O orçamento total do filme foi de US$17 milhões, um dos mais caros já vistos em um filme russo.
Conheça a obra de Mikhail Bulgákov
“O Mestre e Margarida é um dos livros mais importantes da literatura russa do século 20, muito lido e cultuado. É a obra-prima de Mikhail Bulgákov”, aponta Irineu Franco Perpetuo, especialista em literatura russa e tradutor da edição do livro publicada no Brasil pela Editora 34. Tido como o Fausto russo, já que tem inspiração na obra do alemão Goethe, ele é uma sátira construída em três planos narrativos.
No primeiro, o Mestre (uma espécie de alter ego do próprio autor) é um escritor perseguido que não consegue publicar seu livro, um romance histórico sobre o julgamento de Cristo por Pôncio Pilatos. No segundo plano, está seu relacionamento com a amante, Margarida. Já no terceiro e mais curioso plano, que une os outros dois, está a chegada do diabo, nomeado Woland, à cidade de Moscou dos anos 1930 junto de sua trupe peculiar.
Ao longo dos anos, outras tentativas de recontar a trama no meio audiovisual fracassaram; várias delas nunca saíram do campo das ideias. A mais popular foi uma minissérie russa, de 2005. Essa dificuldade de adaptar a trama de Bulgákov em uma produção à altura rendeu o apelido de “amaldiçoada”.
Perpetuo pensa que existem obstáculos comuns a qualquer recriação de uma obra literária, relacionados às expectativas dos fãs. “Esse livro tem muitos episódios, muito planos, não daria para ser filmado do jeito que é escrito. Por outro lado, ele é muito plástico e imagético. Talvez seja difícil imaginar uma coisa ao ler, e aceitar outra na tela — mas é um universo estético muito convidativo à adaptação”, pondera o tradutor.
Filme pode retroalimentar a força da censura
Antes do alvoroço, a maior preocupação de Lockshin era como o público reagiria à sua adaptação do clássico — e não que poderia ser perseguido por causa dela. É o segundo trabalho do diretor: seu projeto de estreia foi Cidade de Gelo (2020), primeiro filme em língua russa adquirido como original pela Netflix.
O Mestre e Margarida conversa com passado e presente, ilustrando magistralmente a tensa relação entre arte e censura no país.
“Fiquei maravilhado com a ironia de tudo isso, porque é como uma cópia do que aconteceu com o livro e com Bulgakóv em sua época. As pessoas e os propagandistas que estavam me perseguindo não perceberam o quanto estavam fazendo cosplay de personagens do filme”, disse o diretor ao jornal britânico The Guardian.
A obra foi escrita por Bulgákov (que nasceu na Ucrânia, mas viveu na Rússia e escrevia em russo) entre 1928 e 1940, ano de sua morte, mas publicada postumamente - no fim dos anos 1960, no Ocidente, e em 1973, na Rússia. De início, sofreu bastante censura, conforme explica Perpetuo. “Bulgákov foi muito perseguido, mas nunca foi preso pelo regime soviético, porque Stalin gostava muito de uma peça de teatro dele, Os Dias dos Turbin (1926)”, conta o tradutor.
Entretanto, manuscritos de outras obras e de um diário seu foram apreendidos durante o período. Após recuperá-los, o escritor resolveu queimar as páginas do diário para apagar possíveis provas. Anos mais tarde, com o fim da União Soviética, foi descoberta uma cópia nos arquivos da KGB, o serviço de inteligência soviético. “Isso confirmou uma fala que é das mais conhecidas de O Mestre e Margarida: ‘Os manuscritos não ardem’. Muitas das frases desse romance viraram por lá um patrimônio do senso comum, da fala cotidiana dos russos”, aponta Perpetuo.
Perpetuo ressalta que a relação entre censura e arte é muito antiga na Rússia. “Toda a literatura russa que conhecemos aqui foi produzida sob censura, não só a dos tempos soviéticos. Por exemplo, o grande pai fundador da literatura russa, Alexandre Puchkin, tinha como censor o próprio czar, Nicolau I”, diz. Liev Tolstói, Fiódor Dostoiévski e Ivan Turguêniev são todos célebres autores do país que enfrentaram algum tipo de repressão das autoridades em suas épocas. No cinema do período soviético, o diretor Andrei Tarkovski é grande exemplo: havia sempre uma tensão por não saber como seria a distribuição e exibição de seus filmes.
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“Inclusive, existe na literatura russa um estilo que consiste em falar das coisas de forma alegórica, nada é explícito. Em O Mestre e Margarida, por exemplo, não são utilizados termos como bolchevismo e socialismo, nomes de líderes, ou siglas de órgãos ou partidos. Mas é possível compreender, o tempo todo, o que está sendo dito”, explica o tradutor.
Há quem tema que a popularidade do blockbuster seja um catalisador, incentivando ainda mais a repressão do governo Putin, e impedindo que outros grandes filmes do mesmo estilo sejam lançados. Nesse cenário, uma narrativa de enfrentamento se sustenta.
“A parte intelectualizada da sociedade sempre buscou na arte uma maneira de contestar o regime. E esse grande sucesso de O Mestre e a Margarida mostra também uma forma de resistência civil e de oposição ao estado. Uma vez que a campanha tão furiosa contra o filme e o diretor veio à tona, o recorde de bilheteria é uma maneira de desafiar o que é imposto”, analisa Perpetuo.
‘O Mestre e Margarida’ é um bom livro para começar a ler os russos?
Além de tradutor do livro, Perpetuo é autor de Como Ler os Russos (Todavia), e pensa que O Mestre e Margarida é, sim, uma boa pedida para adentrar tal universo.
“Conheço leitores brasileiros pouco familiarizados com a literatura russa que adoram o livro, por sua capacidade imagética, fabulação e alta musicalidade”, aponta Perpetuo. Outro aspecto que torna o título atrativo é seu distanciamento do estereótipo associado à literatura russa: longos e densos romances de época do século 19, altamente descritivos e filosóficos. “Ele traz outra face, uma Rússia muito mais moderna, mais ligada ao cotidiano, e com uma ironia deliciosa”, avalia.