Tudo começou como uma oferta. Conheceram-se Milton Hatoum e Marcelo Gomes. Manifestaram admiração mútua, e o escritor ofereceu ao diretor os direitos de qualquer um de seus livros. Gomes escolheu o talvez mais improvável. Desde sua publicação, há quase 40 anos – em 1988 -, Relato de Um Certo Oriente adquiriu a fama de infilmável, ao contrário de outros originais de Hatoum, que já foram adaptados para cinema e televisão.
Relato conta a história de uma família de libaneses – e seus descendentes – que moram em Manaus. Dramas, costumes, segredos, desejos, intimidades. O diferencial é que a história é contada em diferentes versões, a partir de diferentes vozes, daí o que seria a dificuldade da adaptação.
Gomes escolheu um recorte. Transformou o Relato em Retrato de Um Certo Oriente. O filme estreia nesta quinta, 21, em cerca de 25 salas de 11 capitais. É pouco, em relação às mais de 700 salas que rapidamente permitiram a Ainda Estou Aqui superar a marca do milhão de espectadores. O filme de Walter Salles está virando um fenômeno. Gomes solidariza-se: “É maravilhoso. Encontro gente que foi ver o Walter, viu o trailer do meu filme e agora me diz que está louca para ver o Retrato. É o cinema brasileiro alavancando o próprio cinema brasileiro.”
E um cinema brasileiro autoral e exigente, mas que nem por isso deixa de ter apelo popular. Faz toda a diferença o lançamento em salas de rua, ou com preços mais acessíveis que os dos cinemas de shoppings, mas essa é outra história. A pergunta que se impõe – por que Gomes quis filmar o Relato?
“Quem já viu meus filmes sabe que sou fascinado pela alteridade. Acho que só se pode vencer o preconceito e tentar construir um outro mundo através dos olhos do outro. O livro tem tudo que sempre me atraiu – amor, desejo, preconceito, memória. Tem essa personagem feminina que parte de um mundo, o Líbano em guerra, e chega a outro, a Floresta Amazônica, com toda a sua grandiosidade e mistério. É um choque cultural imenso, mas o Milton (Hatoum) não cede ao exotismo de outros olhares sobre a Amazônia, e isso foi muito estimulante para mim.” Cinema Aspirinas e Urubus, Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo – em parceria com Karim Aïnouz -, Era Uma Vez Verônica, Joaquim, Paloma. São filmes diversos, ou diferenciados entre si, mas coerentes, e unitários, se se pensa na forma e no olhar tolerante – humanista? – que é a marca do cineasta.
Resumidamente, Retrato de Um Certo Oriente acompanha esses dois irmãos, Emilie e Emir, que deixam o Líbano em 1949, na iminência de uma guerra. São maronitas católicos. Viajam para o Brasil – Manaus – em busca de dias melhores. Na longa travessia do oceano, Emilie conhece um comerciante muçulmano, Omar, com quem se envolve, o que provoca o ciúme doentio do irmão. Omar e Emir brigam, o segundo é atingido por um tiro já no barco que singra os rios da floresta. Não resta alternativa a Emilie senão descer e buscar socorro com o xamã de uma aldeia indígena. O quadro fica cada vez mais rico, e complexo – a floresta, incesto, paixão, choque radical de culturas.
“Vivemos num mundo em que as diferenças religiosas têm sido usadas como bandeiras em guerras que, na verdade, são sobre territórios, poder e dinheiro. Veja o caso do Oriente Médio, de Gaza, que agora já virou essa guerra generalizada envolvendo o Líbano. É um assunto que nos interessa muitíssimo, porque Retrato, como o Relato, é sobre a presença do Líbano no Brasil. Temos cá os nossos problemas, e nos últimos anos a cultura do ódio assumiu uma dimensão alarmante no País, mas o Brasil ainda pode ser um exemplo de tolerância e acolhimento para o mundo.”
E Gomes prossegue – “Devo muito ao trabalho de minha montadora, Karen Harley. Construímos essa cena em que Omar, como muçulmano, reza para o seu Deus, Emilie reza para os santos dela e, entre ambos, esses dois mundos, ainda estão os indígenas com seus cultos aos espíritos da floresta. Emir tenta separar Omar e a irmã invocando diferenças religiosas, mas o mundo do Retrato mostra que a diferença pode não apenas ser tolerada. Ela é possível, com respeito ao direito do outro. Infelizmente, vivemos uma época em que muitas lideranças religiosas querem ter a última palavra, como se houvesse uma verdade absoluta da qual são donas.”
Para o espectador acostumado a ver a exuberância da Amazônia captada em cores luxuriantes, talvez surpreenda a opção de Gomes de narrar seu filme em preto e branco. “Foi uma imposição da base, do próprio livro do Milton. Emilie deixa um mundo em guerra para se aventurar ao desconhecido. A floresta, no começo, é intimidatória. Dá medo. E eu estou filmando o amor, o desejo. Transformei o desejo nos meus 50 tons de cinza”, brinca. É um filme belíssimo.
Gomes destaca a parceria com o diretor de fotografia Pierre De Kerchove, que se iniciou com Joaquim e prosseguiu com Paloma. “Como o filme lida com memória e não deixa de incluir uma homenagem à fotografia como registro histórico, conversei muito com o Pierre sobre como deveria ser o nosso visual. Ele veio com uma proposta que me seduziu. Usar uma fotografia que remetesse aos primórdios do próprio cinema. Pierre utilizou lentes especiais para reconstituir a textura de clássicos de Eisenstein e Murnau, filmes como O Encouraçado Potemkin e Aurora. E não apenas esses. Hiroshima Meu Amor, do Resnais, que é um dos mais belos filmes dobre amor e memória que conheço. E aí, é claro que, em função do preto e branco, tivemos uma trabalho muito elaborado e integrado com a direção de arte, o figurino. Essa beleza visual que você destaca deu trabalho, viu?” De novo Gomes brinca, mas é evidente que está feliz com a integração de sua equipe. Para o diretor, apesar das múltiplas camadas, Retrato de Um Certo Oriente é, acima de tudo, a história de pessoas que são expulsas de suas terras por conflitos sócio-políticos.
Veja mais
“Não é uma coisa isolada, nem localizada. Ocorre no Oriente Médio, na Floresta Amazônica, com as perseguições aos povos originários. O PB cria uma aura de mistério, mas também possui um outro significado. As fotos evocam momentos felizes, idealizados, e estou convencido de que oferecem uma possibilidade de cura para as feridas do passado.” Essa cura também é o tema do filme.
Passa pela atriz Wafa’a Celine Halawi, que é libanesa e aceitou o desafio de se lançar a essa verdadeira aventura. “Tenho tido o privilégio de trabalhar com atores e atrizes que sempre foram de uma entrega muito grande, generosa. Mesmo assim, a Wafa’a foi especial. Reproduziu a experiência de Emilie, embarcando para uma jornada rum o ao desconhecido para ela. Gosto quando ela diz que foi aqui, filmando na Amazônia, que descobriu quão cruel e absurda é a realidade em seu país, no Oriente Médio. A religião, a diferença, não podem ser motivo de guerras.”
Após o debate sobre o filme no Festival do Rio, Gomes ficou tocado pelo depoimento de uma mulher que foi falar com ele. “Ela se apresentou como filha da floresta, de pai libanês e mãe indígena. Chorando, me agradeceu por haver contado a história dela, e de tantas mulheres como ela. Contei para o Milton, e ele também se emocionou. Não sei se a gente filma por isso, mas são momentos que gratificam.”
Milton Hatoum: Filme faz ‘leitura poética, antropológica e política do romance’
O Estadão conversou também com Milton Hatoum sobre a adaptação e o amor pelas telonas -- o autor, inclusive, acredita que o cinema nacional vive um período de “esplendor”. Leia abaixo:
Seu romance era considerado infilmável. Marcelo Gomes logrou transformar o Relato em Retrato sem cair no reducionismo o. Como vê as escolhas dele?
O espaço simbólico do romance é, em grande parte, a casa de uma família de imigrantes libaneses em Manaus. Uma casa manauara. Ou “manauárabe”. Marcelo escolheu como um dos temas centrais a viagem de imigrantes e refugiados. Mas essa longa travessia, do Mediterrâneo ao Amazonas, é também uma viagem interior, que explora os dramas, conflitos e a subjetividade das personagens. No fundo, invoca temas literários clássicos: o encontro, o amor, a amizade, a morte, o medo diante do desconhecido, e a própria viagem. Além disso, Marcelo inseriu no roteiro questões referentes aos povos originários, expulsos ou obrigados a abandonar sua terra, seu território ancestral. Nesse sentido, a direção e o roteiro optaram por uma leitura ao mesmo tempo poética, antropológica e política do romance.
Marcelo diz que filmar em preto e branco foi uma imposição do próprio livro. Agradou-lhe a exuberância dessa Amazônia PB?
Não é comum filmar a Amazônia em preto e branco, sobretudo ficção. A exuberância da natureza está lá, mas sem traços pitorescos. Quando o navio sai do oceano e navega pelo Amazonas, as personagens ficam diante de uma cultura e de um mundo desconhecidos. Esse é um tema do romance que foi muito bem trabalhado no filme: o encontro de culturas e línguas diferentes, e a convivência com o Outro: um certo Oriente no Amazonas. Marcelo não caiu na cilada do “choque de civilizações”. Ele optou pela compreensão mútua, construída através do olhar e da voz. Uma das cenas mais bonitas é a conversa da personagem Emilie (uma atriz libanesa) com Anastácia (uma atriz indígena, da etnia tucano).
Sua obra tem sido adaptada com frequência. Dois Irmãos, o conto O Adeus do Comandante, que virou O Rio do Desejo. O senhor considera-se cinéfilo? O cinema é uma inspiração?
Sou cinéfilo desde a infância e a primeira juventude, quando nem havia televisão em Manaus. Os cinemas naquela época eram magníficos: Guarany, Eden, Politheama, Avenida... Em 1966, Glauber passou por Manaus e filmou em Itacoatiara Amazonas, Amazonas. Depois, quando fui morar na capital, frequentava o Cine Clube e o Cine Brasília. Um pouco dessa cinefilia está no romance Pontos de Fuga. Quando morei em Paris (início dos anos 80), fiquei embriagado pelos festivais de cinema, vi muita coisa, incluindo filmes brasileiros, censurados pela ditadura. Adoro o cinema italiano: o neorrealismo, Visconti, Pasolini, Fellini... Os governos Collor e Bolsonaro bem que tentaram acabar com o cinema brasileiro, mas não conseguiram. E hoje há grandes filmes, é um período de esplendor.