Pergunte a um cinéfilo sobre filmes de tribunal e ele terá pelo menos dois na ponta da língua: Testemunha de Acusação e Doze Homens e uma Sentença. Não há o que discutir. São clássicos do gênero. Mas o mérito maior da caixa de DVDs Filmes de Tribunal, lançada agora pela Versátil, é fugir ao óbvio. Traz seis filmes um tanto fora do radar, entre eles uma verdadeira joia rara chamada A Verdade (1960), do francês Henri-Georges Clouzot.
A obra desmente o lugar-comum que faz do filme de tribunal um subgênero do noir e, portanto, exclusivamente americano. Esse clichê tem lá sua razão de ser, sendo os Estados Unidos a pátria dos advogados, como constatou Alexis de Tocqueville quando lá esteve no século 19 e ficou surpreso com o número e influência social desses profissionais – o livro chama-se Da Democracia na América, um clássico, lançado em 1935. Bem, filme de tribunal pode ser tipicamente um produto made in USA, mas não de forma exclusiva. A Verdade é uma história de tribunal à francesa, sem qualquer concessão ou subordinação a modelo importado. Seu próprio título indica preocupação intelectual mais profunda que a simples inocência ou culpabilidade de uma pessoa. Onde está a verdade de uma história criminal? É preciso escavar para buscá-la e, mesmo assim… Como dizia Leonardo Sciascia, pela boca de um dos seus personagens no romance A Hora da Coruja, a verdade mora no fundo de um poço. Como atingi-la? Em A Verdade, Brigitte Bardot é Dominique Marceau, um dos seus melhores papéis no cinema. Está linda como sempre e intensa como poucas vezes. Dominique é levada às barras do tribunal acusada de haver matado o amante, Gilbert Tellier (Sami Frey), um jovem e promissor maestro. Ao longo do julgamento, a vida de Dominique é esquadrinhada de todos os ângulos, em flashbacks. Dominique veio de Rennes a Paris em companhia da irmã, Annie (Marie José Nat), uma estudante de música erudita. Annie apaixona-se por Gilbert e Dominique também. Um triângulo amoroso e com duas irmãs como vértices. Clouzot põe o foco sobre o contraste entre a vida livre de uma parte da sociedade francesa – a porção “estudantil”, que vive na Rive Gauche, no Quartier Latin – e a maioria conservadora, representada pelo tribunal. De certa forma, o julgamento desloca-se do factual (houve crime ou não?) para o moral (seria Dominique, “moça de vida fácil”, capaz de um amor real?). Onde mora a verdade, se é que ela existe? De certo modo é também a pergunta do excepcional Juventude Selvagem (1961), de John Frankenheimer. Este é um raro filme de tribunal em que o “herói” não é o advogado de defesa, mas o promotor. Hank Bell (Burt Lancaster) assume o caso contra três jovens acusados de haver assassinado um rapaz porto-riquenho cego. O caso é todo aquecido pelo fervilhante caldeirão social e étnico na Nova York dos anos 1950, com grupos de adolescentes de origens diferentes promovendo guerras entre si. Há preconceitos recíprocos entre os de origem italiana e os hispânicos. O próprio Hank Bell está metido até os cabelos nesse conflito. Seu nome de família original – Bellini – foi encurtado para Bell pelo pai imigrante, para facilitar a assimilação à sociedade que o recebia. Mais ainda: a mãe de um dos acusados (Shelley Winters) fora namorada de Bell na juventude. Nesse nó diabólico de conflitos e preconceitos, os garotos, apesar de menores de idade, correm o risco de pegar sentenças pesadas – até mesmo a pena de morte. A dinâmica do filme é matadora, seguindo o conhecido virtuosismo de Frankenheimer, com suas angulações inusitadas e velocidade narrativa. No olho do furacão, encontramos em Hank Bell (bela atuação de Lancaster) um promotor mais preocupado em de fato administrar justiça do que em condenar de maneira sumária. Belíssimo filme. Ainda na vertente realista do cinema americano dos anos 1940 e 1950, O Crime não Compensa (1949), de Nicholas Ray, tem Humphrey Bogart como o advogado de defesa Andrew Morton. Ele assume o caso do jovem delinquente Nick Romano (John Derek), acusado de ter assassinado um policial na perseguição que se seguiu a um assalto. Com este filme que busca as raízes sociais do crime, Nicholas Ray faz um trabalho notável de direção, em especial pela ambiguidade das personagens. O advogado não é o único a se impressionar com o jovem, filho de uma família de imigrantes, e tenta defendê-lo da melhor forma possível. Como acontece nas tragédias (e esta é de ordem social), o destino parece selado e inexorável. Resta um subtexto fatalista e crítico, expresso no título original (Knock on any door). É uma fala do advogado diante do júri: vá a um desses bairros pobres, bata em qualquer porta e encontrará um caso parecido com o de Nick Romano. Somos todos responsáveis e estamos metidos no mesmo jogo, pois fazemos parte da sociedade de onde o crime emerge. A caixa se completa com mais três longas-metragens de origem francesa: O Caso Dominici (1973), de Claude Bernard-Aubert; e Dois São Culpados (1963) e Atentado ao Pudor (1967), ambos de André Cayatte. Como se vê, a França também se mostrou sensível aos dramas de tribunal, com suas firulas retóricas, reviravoltas teatrais e testemunhas de última hora. No pano de fundo, atrás de cada crime, surge um panorama social desvendado e revelado ao público. Em sua particularidade, cada tribunal do júri vislumbra o mecanismo secreto de funcionamento da sociedade.