Sonho e cinema: Como os filmes exploram e refletem nosso mundo onírico?


‘O Homem dos Sonhos’, com Nicolas Cage, é a mais recente investida do cinema na entrelaçada relação do mundo dos sonhos e da realidade em vigília; críticos e psicanalistas explicam e indicam filmes com boas representações de sonho - e outros que fracassaram

Por Bruno Carmelo

Paul Matthews (Nicolas Cage) é um homem comum. Este professor de biologia jamais se destacou no meio acadêmico. Ele mantém uma relação distanciada com as filhas adolescentes, e vive um casamento morno com a esposa. No entanto, certo dia, o sujeito começa a aparecer nos sonhos dos estudantes, dos conhecidos, e mesmo de pessoas que nunca o encontraram.

Ninguém consegue explicar o fenômeno que transforma Paul numa celebridade instantânea, e faz com que se sinta especial pela primeira vez. Mas o que fazer quando as experiências noturnas se convertem em pesadelos? Esta é a premissa de O Homem dos Sonhos (2023), comédia dramática escrita e dirigida por Kristoffer Borgli. A estreia está marcada nos cinemas para 4 de abril, pela Califórnia Filmes.

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O cineasta oferece inúmeras narrativas de sonhos. Paul aparece em instantes de erotismo, e também durante acidentes de carro. Ele assiste à flutuação de uma filha pelos ares, enquanto tenta esfaquear a outra. Participa de cenários apocalípticos, além de perseguições na floresta. O longa-metragem age na chave do duplo: cria-se de repente uma persona para o professor, muito mais interessante do que ele próprio. Ora, o sujeito se vê devorado pela cópia, substituído pelo simulacro.

O Homem dos Sonhos tem uma proposta interessante, para além da atuação do Nicolas Cage”, menciona a crítica de cinema Lorenna Montenegro. “A percepção do sonho é trabalhada na chave da metalinguagem, uma abordagem comum nestes casos. Logo, o sonho dentro do sonho reflete o filme dentro do filme. Para alguns personagens, Paul se torna violento, dependendo do momento que a pessoa atravessa. Isso cria uma fissura na história central.”

Nicolas Cage é Paul Matthews em 'O Homem dos Sonhos' Foto: Califórnia Filmes/Divulgação
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Mas, afinal, para que servem os sonhos?

Filmes como este nos lembram das inúmeras histórias fantasiosas, insanas ou perturbadoras que acompanham nossos sonos todas as noites. “Mas os sonhos não são absurdos!”, pontua de imediato Sérgio Telles, psicanalista e autor da série de livros O Psicanalista Vai ao Cinema.

“O sonho, como diz o Freud, é a via régia para o inconsciente, ou seja, o caminho principal. Antes de Freud, partia-se do pressuposto que éramos todos conscientes e racionais. Mas ele sintetizou e mapeou o psiquismo, regido por leis diferentes da lógica consciente.”

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Telles prossegue. “O sonho é a expressão máxima do inconsciente, da realização de desejos. Freud descobriu que a nossa mente funciona através da gestão permanente de conflitos. Várias pulsões se confrontam: sexuais, de conservação, pressões do superego, pressões morais, etc. Este mundo de conflitos está reprimido na vida consciente, e dá origem a sintomas: fobias, depressões, angústias, obsessões.”

“O que o Freud mostra é que os sonhos aparentam um absurdo, porque eles têm um conteúdo manifesto, e o conteúdo latente. O conteúdo manifesto é a historinha que você lembra: ‘Eu pulei de um prédio, apareceu um bicho, etc.’. Isso não faz sentido nenhum. Mas quando você começa a interpretar, vem a discussão: qual prédio era aquele? A pessoa já esteve em um prédio parecido? O analista desconstrói as condensações e revela outra lógica, bastante consistente. O sonho tem esta característica de se expressar por imagens visuais. Nisso, os filmes são extremamente próximos dos sonhos.”

Personagem de Nicolas Cage começa a habitar os sonhos dos moradores da cidade onde vive Foto: Califórnia Filmes/Divulgação
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O professor de biologia, em O Homem dos Sonhos, também se expressa em termos psicanalíticos: “O sonho é como uma psicose. Os sonhos começam a delirar enquanto dormimos”, afirma o personagem de Nicolas Cage. Adiante, frisa: “Jung estava certo. Existe um inconsciente coletivo.”

Mesmo assim, o psicanalista e crítico de cinema do Estadão, Luiz Zanin, garante que um fenômeno como aquele acontecido em O Homem dos Sonhos diz respeito unicamente à ficção: “O sonho compartilhado por várias pessoas ao mesmo tempo seria explicado por elementos compartilhados socialmente.”

“Freud diz que os sonhos são formados por restos diurnos. Digamos que várias pessoas testemunhem o mesmo acidente. Estes grandes acontecimentos sociais pertencem ao patrimônio comum de uma determinada sociedade, então, podem entrar nos sonhos de várias pessoas enquanto material de construção.”

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“Mas a psicanálise diz que cada um dos sonhadores constrói seu sonho de forma totalmente pessoal. Cada sonho é diferente do outro, porque cada indivíduo é diferente do outro. O sonho compartilhado, desta maneira, seria uma fantasia ficcional.”

O cinema também sonha

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Zanin expande esta lógica à sétima arte. “A psicanálise sempre foi muito tentadora enquanto ferramenta para as artes. O fascínio dos surrealistas com a psicanálise, nos anos 1920, representa um marco disso.”

“Quando você pega os dois primeiros filmes de Luis Buñuel, Um Cão Andaluz (1929) e A Idade do Ouro (1930), percebe que são filmes completamente oníricos, psicanalíticos. O primeiro foi feito em colaboração com o Salvador Dalí, inclusive. Eles estruturaram o filme pela premissa ‘tudo o que tiver sentido imediato, a gente corta.’”

“O artista faz um uso especial e privilegiado do inconsciente”, concorda Telles. “Freud dizia que os artistas teriam maior porosidade com o inconsciente. Já o ser humano comum teria uma muralha de ferro entre o consciente e o inconsciente. No caso do artista, seria possível transitar entre essas duas esferas com certa facilidade.”

Para Luiz Zanin, “há cineastas muito racionalistas, que aproveitam menos da vida interior. Mas existem outros que vão diretamente nisso. Buñuel fez isso a vida inteira. Existe o caso contemporâneo de David Lynch: os filmes dele são sonhos. Se partir para um discurso totalmente racional do que está vendo, você não entra naqueles filmes.”

“Outro que encontrou nos sonhos uma fonte extraordinária para a sua arte, foi o Fellini. Fellini se formou no surrealismo, e foi roteirista para eles inicialmente. Depois, chega à sua explosão de criatividade em obras banhadas no onírico, caso de (1963) e Julieta dos Espíritos (1965), até o último filme, A Voz da Lua (1990), que aborda a loucura. Fellini tinha o hábito de anotar e desenhar os seus sonhos. Estas anotações eram utilizadas muitas vezes nos filmes dele.”

“Em , os produtores achavam que o filme seria ininteligível para o público. Propuseram então ao Fellini, para facilitar o acesso ao público, de fazer as partes de sonho em preto e branco, e os trechos de ‘realidade’ em cores, para distingui-los. O Fellini recusou completamente. Disse que era impossível dissociar a realidade do sonho da realidade da vida.”

Montenegro completa: “Existem também os filmes da Maya Deren, do Kenneth Anger, além de alguns do Spike Jonze, ou aqueles dirigidos e roteirizados pelo Charlie Kaufman. Além disso, existe Ingmar Bergman. Impossível falar de cinema onírico sem pensar em Bergman. São diretores que navegam entre sonhar acordado e experimentar os filmes como algo real. Como lidar com nossas projeções, com a sensação de déjà vu?”

“Gostaria de citar um exemplo brasileiro”, sublinha Luiz Carlos Merten, crítico do Estadão. “Um exemplo muito mais simples, aparentemente. Dercy Gonçalves como a costureira da escola de samba que, extenuada, adormece sobre a máquina de costura e se vê projetada na Veneza dos Doges, tema do enredo da escola. O filme é Uma Certa Lucrécia, de Fernando de Barros (1957).”

Em tempos de realismo

O cinema brasileiro, em especial, tem sido marcado por um apelo ao realismo social, voltando-se à vida de personagens em situações desfavorecidas. Até por isso, as incursões na fantasia ou no terror despertam atenção da crítica enquanto maneira particularmente forte de representar os dilemas específicos desta sociedade. Nossa linguagem seria menos propensa ao onírico, neste sentido?

“Temos que parar de ser intransigentes, enquanto críticos e pensadores de arte”, pontua Lorenna Montenegro. “A nossa experiência de cinema está conectada com os temas que nos interessam. O realismo se frutifica aqui como ocorreu na Itália, durante o neorrealismo, e nos países do trópico sul, além dos vizinhos latino-americanos. São temas que nos interessam.”

“Para além deste realismo que pode soar arcaico ou simplista, trabalhamos muito o realismo fantástico. Quando pegamos a filmografia dos cineastas do Filmes de Plástico, por exemplo, vemos uma utilização da fantasia, do melodrama, que não rompem com o social”, ela menciona, em referência a filmes como Quintal (2015), de André Novais Oliveira, e Marte Um (2022), de Gabriel Martins.

Na opinião de Luiz Carlos Merten, a configuração do cinema caseiro, em streaming, dificulta a apreciação de um cinema dos sonhos. “A questão é que hoje, cada vez menos, o público frui os filmes em salas especiais. São diversas as telas, e a imersão muitas vezes fica em segundo ou terceiro plano. As pessoas se preocupam mais em entender a história do que em fruir, e isso vai contra o que creio no cinema. Não deixa de ser antiaristotélico.”

Em O Homem dos Sonhos, a realidade se torna o inimigo principal de Paul. Para o sujeito cuja relevância social depende das ilusões e sonhos de terceiros, é preciso que continuem sonhando, fabricando um Paul especial. Isso porque, se o fenômeno passar, o sujeito volta a ser “um perfeito zé-ninguém”, nas palavras de seus amigos. Existe um aspecto muito amargo por trás da comédia.

Cena do filme 'A Hora do Lobo', de Ingmar Bergman Foto: Lopert Pictures/Divulgação

Os melhores e piores sonhos no cinema

Pedimos aos especialistas desta matéria que citassem um ótimo exemplo de utilização dos sonhos nos cinemas, assim como uma representação particularmente fraca.

Lorenna Montenegro

  • Bom sonho: A Hora do Lobo (1968), de Ingmar Bergman. Essa percepção do fascismo e da guerra, e suas consequências de exaustão mental e ruptura da realidade, funcionam como excelente representação de um pesadelo.
  • Mau sonho: Matrix (1999), das irmãs Wachowski. Gosto do filme, mas ele representa o simulacro e as simulações, a partir de Baudrillard, de maneira fraca. Para quem tem tamanho orçamento, é mais fácil seguir o caminho da ficção científica.

Sérgio Telles

  • Bom sonho: Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky. O personagem está na Itália, com saudade da Rússia. Ele tem um cachorro em casa, e de tanta saudade, sonha que o cachorro entra na sua vida. A fluidez entre dois mundos, a falta de barreira corresponde a este aspecto brumoso dos sonhos.
  • Mau sonho: A Origem (2010), de Christopher Nolan. Trata-se de um grande diretor, mas esta concepção de sonho não tem nada a ver com nossos sonhos de todos dias. O nosso sonho não tem o caráter de algo desmoronando como um quebra-cabeça. Não funciona assim.

Luiz Zanin

  • Bom sonho: (1963), de Federico Fellini. É o meu filme favorito de todos. Ele trabalha a relação com pai e mãe através de imagens de sonhos — existe uma cena em que o personagem voa, por exemplo. O filme é estruturado entre elementos oníricos e elementos de fantasia.
  • Mau sonho: Freud - Além da Alma (1962), de John Huston. Gosto do filme, mas ele tem uma visão mecânica a respeito da maneira como os traumas infantis participam na criação da psicanálise. Ele não está à altura da sutileza dos processos psíquicos.

Luiz Carlos Merten

  • Bom sonho: Freud - Além da Alma (1962), de John Huston. Estes sonhos permitem a Montgomery Clift formular os conceitos dos complexos de Édipo e Electra. Para mim, é o filme divisor na carreira do cineasta.
  • Mau sonho: Sonhos (1990), de Akira Kurosawa. Por mais belo que seja o visual, não creio que seja um grande Kurosawa. A superficialidade faz do filme, para mim, uma das obras menos interessantes do autor.

Paul Matthews (Nicolas Cage) é um homem comum. Este professor de biologia jamais se destacou no meio acadêmico. Ele mantém uma relação distanciada com as filhas adolescentes, e vive um casamento morno com a esposa. No entanto, certo dia, o sujeito começa a aparecer nos sonhos dos estudantes, dos conhecidos, e mesmo de pessoas que nunca o encontraram.

Ninguém consegue explicar o fenômeno que transforma Paul numa celebridade instantânea, e faz com que se sinta especial pela primeira vez. Mas o que fazer quando as experiências noturnas se convertem em pesadelos? Esta é a premissa de O Homem dos Sonhos (2023), comédia dramática escrita e dirigida por Kristoffer Borgli. A estreia está marcada nos cinemas para 4 de abril, pela Califórnia Filmes.

O cineasta oferece inúmeras narrativas de sonhos. Paul aparece em instantes de erotismo, e também durante acidentes de carro. Ele assiste à flutuação de uma filha pelos ares, enquanto tenta esfaquear a outra. Participa de cenários apocalípticos, além de perseguições na floresta. O longa-metragem age na chave do duplo: cria-se de repente uma persona para o professor, muito mais interessante do que ele próprio. Ora, o sujeito se vê devorado pela cópia, substituído pelo simulacro.

O Homem dos Sonhos tem uma proposta interessante, para além da atuação do Nicolas Cage”, menciona a crítica de cinema Lorenna Montenegro. “A percepção do sonho é trabalhada na chave da metalinguagem, uma abordagem comum nestes casos. Logo, o sonho dentro do sonho reflete o filme dentro do filme. Para alguns personagens, Paul se torna violento, dependendo do momento que a pessoa atravessa. Isso cria uma fissura na história central.”

Nicolas Cage é Paul Matthews em 'O Homem dos Sonhos' Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Mas, afinal, para que servem os sonhos?

Filmes como este nos lembram das inúmeras histórias fantasiosas, insanas ou perturbadoras que acompanham nossos sonos todas as noites. “Mas os sonhos não são absurdos!”, pontua de imediato Sérgio Telles, psicanalista e autor da série de livros O Psicanalista Vai ao Cinema.

“O sonho, como diz o Freud, é a via régia para o inconsciente, ou seja, o caminho principal. Antes de Freud, partia-se do pressuposto que éramos todos conscientes e racionais. Mas ele sintetizou e mapeou o psiquismo, regido por leis diferentes da lógica consciente.”

Telles prossegue. “O sonho é a expressão máxima do inconsciente, da realização de desejos. Freud descobriu que a nossa mente funciona através da gestão permanente de conflitos. Várias pulsões se confrontam: sexuais, de conservação, pressões do superego, pressões morais, etc. Este mundo de conflitos está reprimido na vida consciente, e dá origem a sintomas: fobias, depressões, angústias, obsessões.”

“O que o Freud mostra é que os sonhos aparentam um absurdo, porque eles têm um conteúdo manifesto, e o conteúdo latente. O conteúdo manifesto é a historinha que você lembra: ‘Eu pulei de um prédio, apareceu um bicho, etc.’. Isso não faz sentido nenhum. Mas quando você começa a interpretar, vem a discussão: qual prédio era aquele? A pessoa já esteve em um prédio parecido? O analista desconstrói as condensações e revela outra lógica, bastante consistente. O sonho tem esta característica de se expressar por imagens visuais. Nisso, os filmes são extremamente próximos dos sonhos.”

Personagem de Nicolas Cage começa a habitar os sonhos dos moradores da cidade onde vive Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

O professor de biologia, em O Homem dos Sonhos, também se expressa em termos psicanalíticos: “O sonho é como uma psicose. Os sonhos começam a delirar enquanto dormimos”, afirma o personagem de Nicolas Cage. Adiante, frisa: “Jung estava certo. Existe um inconsciente coletivo.”

Mesmo assim, o psicanalista e crítico de cinema do Estadão, Luiz Zanin, garante que um fenômeno como aquele acontecido em O Homem dos Sonhos diz respeito unicamente à ficção: “O sonho compartilhado por várias pessoas ao mesmo tempo seria explicado por elementos compartilhados socialmente.”

“Freud diz que os sonhos são formados por restos diurnos. Digamos que várias pessoas testemunhem o mesmo acidente. Estes grandes acontecimentos sociais pertencem ao patrimônio comum de uma determinada sociedade, então, podem entrar nos sonhos de várias pessoas enquanto material de construção.”

“Mas a psicanálise diz que cada um dos sonhadores constrói seu sonho de forma totalmente pessoal. Cada sonho é diferente do outro, porque cada indivíduo é diferente do outro. O sonho compartilhado, desta maneira, seria uma fantasia ficcional.”

O cinema também sonha

Zanin expande esta lógica à sétima arte. “A psicanálise sempre foi muito tentadora enquanto ferramenta para as artes. O fascínio dos surrealistas com a psicanálise, nos anos 1920, representa um marco disso.”

“Quando você pega os dois primeiros filmes de Luis Buñuel, Um Cão Andaluz (1929) e A Idade do Ouro (1930), percebe que são filmes completamente oníricos, psicanalíticos. O primeiro foi feito em colaboração com o Salvador Dalí, inclusive. Eles estruturaram o filme pela premissa ‘tudo o que tiver sentido imediato, a gente corta.’”

“O artista faz um uso especial e privilegiado do inconsciente”, concorda Telles. “Freud dizia que os artistas teriam maior porosidade com o inconsciente. Já o ser humano comum teria uma muralha de ferro entre o consciente e o inconsciente. No caso do artista, seria possível transitar entre essas duas esferas com certa facilidade.”

Para Luiz Zanin, “há cineastas muito racionalistas, que aproveitam menos da vida interior. Mas existem outros que vão diretamente nisso. Buñuel fez isso a vida inteira. Existe o caso contemporâneo de David Lynch: os filmes dele são sonhos. Se partir para um discurso totalmente racional do que está vendo, você não entra naqueles filmes.”

“Outro que encontrou nos sonhos uma fonte extraordinária para a sua arte, foi o Fellini. Fellini se formou no surrealismo, e foi roteirista para eles inicialmente. Depois, chega à sua explosão de criatividade em obras banhadas no onírico, caso de (1963) e Julieta dos Espíritos (1965), até o último filme, A Voz da Lua (1990), que aborda a loucura. Fellini tinha o hábito de anotar e desenhar os seus sonhos. Estas anotações eram utilizadas muitas vezes nos filmes dele.”

“Em , os produtores achavam que o filme seria ininteligível para o público. Propuseram então ao Fellini, para facilitar o acesso ao público, de fazer as partes de sonho em preto e branco, e os trechos de ‘realidade’ em cores, para distingui-los. O Fellini recusou completamente. Disse que era impossível dissociar a realidade do sonho da realidade da vida.”

Montenegro completa: “Existem também os filmes da Maya Deren, do Kenneth Anger, além de alguns do Spike Jonze, ou aqueles dirigidos e roteirizados pelo Charlie Kaufman. Além disso, existe Ingmar Bergman. Impossível falar de cinema onírico sem pensar em Bergman. São diretores que navegam entre sonhar acordado e experimentar os filmes como algo real. Como lidar com nossas projeções, com a sensação de déjà vu?”

“Gostaria de citar um exemplo brasileiro”, sublinha Luiz Carlos Merten, crítico do Estadão. “Um exemplo muito mais simples, aparentemente. Dercy Gonçalves como a costureira da escola de samba que, extenuada, adormece sobre a máquina de costura e se vê projetada na Veneza dos Doges, tema do enredo da escola. O filme é Uma Certa Lucrécia, de Fernando de Barros (1957).”

Em tempos de realismo

O cinema brasileiro, em especial, tem sido marcado por um apelo ao realismo social, voltando-se à vida de personagens em situações desfavorecidas. Até por isso, as incursões na fantasia ou no terror despertam atenção da crítica enquanto maneira particularmente forte de representar os dilemas específicos desta sociedade. Nossa linguagem seria menos propensa ao onírico, neste sentido?

“Temos que parar de ser intransigentes, enquanto críticos e pensadores de arte”, pontua Lorenna Montenegro. “A nossa experiência de cinema está conectada com os temas que nos interessam. O realismo se frutifica aqui como ocorreu na Itália, durante o neorrealismo, e nos países do trópico sul, além dos vizinhos latino-americanos. São temas que nos interessam.”

“Para além deste realismo que pode soar arcaico ou simplista, trabalhamos muito o realismo fantástico. Quando pegamos a filmografia dos cineastas do Filmes de Plástico, por exemplo, vemos uma utilização da fantasia, do melodrama, que não rompem com o social”, ela menciona, em referência a filmes como Quintal (2015), de André Novais Oliveira, e Marte Um (2022), de Gabriel Martins.

Na opinião de Luiz Carlos Merten, a configuração do cinema caseiro, em streaming, dificulta a apreciação de um cinema dos sonhos. “A questão é que hoje, cada vez menos, o público frui os filmes em salas especiais. São diversas as telas, e a imersão muitas vezes fica em segundo ou terceiro plano. As pessoas se preocupam mais em entender a história do que em fruir, e isso vai contra o que creio no cinema. Não deixa de ser antiaristotélico.”

Em O Homem dos Sonhos, a realidade se torna o inimigo principal de Paul. Para o sujeito cuja relevância social depende das ilusões e sonhos de terceiros, é preciso que continuem sonhando, fabricando um Paul especial. Isso porque, se o fenômeno passar, o sujeito volta a ser “um perfeito zé-ninguém”, nas palavras de seus amigos. Existe um aspecto muito amargo por trás da comédia.

Cena do filme 'A Hora do Lobo', de Ingmar Bergman Foto: Lopert Pictures/Divulgação

Os melhores e piores sonhos no cinema

Pedimos aos especialistas desta matéria que citassem um ótimo exemplo de utilização dos sonhos nos cinemas, assim como uma representação particularmente fraca.

Lorenna Montenegro

  • Bom sonho: A Hora do Lobo (1968), de Ingmar Bergman. Essa percepção do fascismo e da guerra, e suas consequências de exaustão mental e ruptura da realidade, funcionam como excelente representação de um pesadelo.
  • Mau sonho: Matrix (1999), das irmãs Wachowski. Gosto do filme, mas ele representa o simulacro e as simulações, a partir de Baudrillard, de maneira fraca. Para quem tem tamanho orçamento, é mais fácil seguir o caminho da ficção científica.

Sérgio Telles

  • Bom sonho: Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky. O personagem está na Itália, com saudade da Rússia. Ele tem um cachorro em casa, e de tanta saudade, sonha que o cachorro entra na sua vida. A fluidez entre dois mundos, a falta de barreira corresponde a este aspecto brumoso dos sonhos.
  • Mau sonho: A Origem (2010), de Christopher Nolan. Trata-se de um grande diretor, mas esta concepção de sonho não tem nada a ver com nossos sonhos de todos dias. O nosso sonho não tem o caráter de algo desmoronando como um quebra-cabeça. Não funciona assim.

Luiz Zanin

  • Bom sonho: (1963), de Federico Fellini. É o meu filme favorito de todos. Ele trabalha a relação com pai e mãe através de imagens de sonhos — existe uma cena em que o personagem voa, por exemplo. O filme é estruturado entre elementos oníricos e elementos de fantasia.
  • Mau sonho: Freud - Além da Alma (1962), de John Huston. Gosto do filme, mas ele tem uma visão mecânica a respeito da maneira como os traumas infantis participam na criação da psicanálise. Ele não está à altura da sutileza dos processos psíquicos.

Luiz Carlos Merten

  • Bom sonho: Freud - Além da Alma (1962), de John Huston. Estes sonhos permitem a Montgomery Clift formular os conceitos dos complexos de Édipo e Electra. Para mim, é o filme divisor na carreira do cineasta.
  • Mau sonho: Sonhos (1990), de Akira Kurosawa. Por mais belo que seja o visual, não creio que seja um grande Kurosawa. A superficialidade faz do filme, para mim, uma das obras menos interessantes do autor.

Paul Matthews (Nicolas Cage) é um homem comum. Este professor de biologia jamais se destacou no meio acadêmico. Ele mantém uma relação distanciada com as filhas adolescentes, e vive um casamento morno com a esposa. No entanto, certo dia, o sujeito começa a aparecer nos sonhos dos estudantes, dos conhecidos, e mesmo de pessoas que nunca o encontraram.

Ninguém consegue explicar o fenômeno que transforma Paul numa celebridade instantânea, e faz com que se sinta especial pela primeira vez. Mas o que fazer quando as experiências noturnas se convertem em pesadelos? Esta é a premissa de O Homem dos Sonhos (2023), comédia dramática escrita e dirigida por Kristoffer Borgli. A estreia está marcada nos cinemas para 4 de abril, pela Califórnia Filmes.

O cineasta oferece inúmeras narrativas de sonhos. Paul aparece em instantes de erotismo, e também durante acidentes de carro. Ele assiste à flutuação de uma filha pelos ares, enquanto tenta esfaquear a outra. Participa de cenários apocalípticos, além de perseguições na floresta. O longa-metragem age na chave do duplo: cria-se de repente uma persona para o professor, muito mais interessante do que ele próprio. Ora, o sujeito se vê devorado pela cópia, substituído pelo simulacro.

O Homem dos Sonhos tem uma proposta interessante, para além da atuação do Nicolas Cage”, menciona a crítica de cinema Lorenna Montenegro. “A percepção do sonho é trabalhada na chave da metalinguagem, uma abordagem comum nestes casos. Logo, o sonho dentro do sonho reflete o filme dentro do filme. Para alguns personagens, Paul se torna violento, dependendo do momento que a pessoa atravessa. Isso cria uma fissura na história central.”

Nicolas Cage é Paul Matthews em 'O Homem dos Sonhos' Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Mas, afinal, para que servem os sonhos?

Filmes como este nos lembram das inúmeras histórias fantasiosas, insanas ou perturbadoras que acompanham nossos sonos todas as noites. “Mas os sonhos não são absurdos!”, pontua de imediato Sérgio Telles, psicanalista e autor da série de livros O Psicanalista Vai ao Cinema.

“O sonho, como diz o Freud, é a via régia para o inconsciente, ou seja, o caminho principal. Antes de Freud, partia-se do pressuposto que éramos todos conscientes e racionais. Mas ele sintetizou e mapeou o psiquismo, regido por leis diferentes da lógica consciente.”

Telles prossegue. “O sonho é a expressão máxima do inconsciente, da realização de desejos. Freud descobriu que a nossa mente funciona através da gestão permanente de conflitos. Várias pulsões se confrontam: sexuais, de conservação, pressões do superego, pressões morais, etc. Este mundo de conflitos está reprimido na vida consciente, e dá origem a sintomas: fobias, depressões, angústias, obsessões.”

“O que o Freud mostra é que os sonhos aparentam um absurdo, porque eles têm um conteúdo manifesto, e o conteúdo latente. O conteúdo manifesto é a historinha que você lembra: ‘Eu pulei de um prédio, apareceu um bicho, etc.’. Isso não faz sentido nenhum. Mas quando você começa a interpretar, vem a discussão: qual prédio era aquele? A pessoa já esteve em um prédio parecido? O analista desconstrói as condensações e revela outra lógica, bastante consistente. O sonho tem esta característica de se expressar por imagens visuais. Nisso, os filmes são extremamente próximos dos sonhos.”

Personagem de Nicolas Cage começa a habitar os sonhos dos moradores da cidade onde vive Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

O professor de biologia, em O Homem dos Sonhos, também se expressa em termos psicanalíticos: “O sonho é como uma psicose. Os sonhos começam a delirar enquanto dormimos”, afirma o personagem de Nicolas Cage. Adiante, frisa: “Jung estava certo. Existe um inconsciente coletivo.”

Mesmo assim, o psicanalista e crítico de cinema do Estadão, Luiz Zanin, garante que um fenômeno como aquele acontecido em O Homem dos Sonhos diz respeito unicamente à ficção: “O sonho compartilhado por várias pessoas ao mesmo tempo seria explicado por elementos compartilhados socialmente.”

“Freud diz que os sonhos são formados por restos diurnos. Digamos que várias pessoas testemunhem o mesmo acidente. Estes grandes acontecimentos sociais pertencem ao patrimônio comum de uma determinada sociedade, então, podem entrar nos sonhos de várias pessoas enquanto material de construção.”

“Mas a psicanálise diz que cada um dos sonhadores constrói seu sonho de forma totalmente pessoal. Cada sonho é diferente do outro, porque cada indivíduo é diferente do outro. O sonho compartilhado, desta maneira, seria uma fantasia ficcional.”

O cinema também sonha

Zanin expande esta lógica à sétima arte. “A psicanálise sempre foi muito tentadora enquanto ferramenta para as artes. O fascínio dos surrealistas com a psicanálise, nos anos 1920, representa um marco disso.”

“Quando você pega os dois primeiros filmes de Luis Buñuel, Um Cão Andaluz (1929) e A Idade do Ouro (1930), percebe que são filmes completamente oníricos, psicanalíticos. O primeiro foi feito em colaboração com o Salvador Dalí, inclusive. Eles estruturaram o filme pela premissa ‘tudo o que tiver sentido imediato, a gente corta.’”

“O artista faz um uso especial e privilegiado do inconsciente”, concorda Telles. “Freud dizia que os artistas teriam maior porosidade com o inconsciente. Já o ser humano comum teria uma muralha de ferro entre o consciente e o inconsciente. No caso do artista, seria possível transitar entre essas duas esferas com certa facilidade.”

Para Luiz Zanin, “há cineastas muito racionalistas, que aproveitam menos da vida interior. Mas existem outros que vão diretamente nisso. Buñuel fez isso a vida inteira. Existe o caso contemporâneo de David Lynch: os filmes dele são sonhos. Se partir para um discurso totalmente racional do que está vendo, você não entra naqueles filmes.”

“Outro que encontrou nos sonhos uma fonte extraordinária para a sua arte, foi o Fellini. Fellini se formou no surrealismo, e foi roteirista para eles inicialmente. Depois, chega à sua explosão de criatividade em obras banhadas no onírico, caso de (1963) e Julieta dos Espíritos (1965), até o último filme, A Voz da Lua (1990), que aborda a loucura. Fellini tinha o hábito de anotar e desenhar os seus sonhos. Estas anotações eram utilizadas muitas vezes nos filmes dele.”

“Em , os produtores achavam que o filme seria ininteligível para o público. Propuseram então ao Fellini, para facilitar o acesso ao público, de fazer as partes de sonho em preto e branco, e os trechos de ‘realidade’ em cores, para distingui-los. O Fellini recusou completamente. Disse que era impossível dissociar a realidade do sonho da realidade da vida.”

Montenegro completa: “Existem também os filmes da Maya Deren, do Kenneth Anger, além de alguns do Spike Jonze, ou aqueles dirigidos e roteirizados pelo Charlie Kaufman. Além disso, existe Ingmar Bergman. Impossível falar de cinema onírico sem pensar em Bergman. São diretores que navegam entre sonhar acordado e experimentar os filmes como algo real. Como lidar com nossas projeções, com a sensação de déjà vu?”

“Gostaria de citar um exemplo brasileiro”, sublinha Luiz Carlos Merten, crítico do Estadão. “Um exemplo muito mais simples, aparentemente. Dercy Gonçalves como a costureira da escola de samba que, extenuada, adormece sobre a máquina de costura e se vê projetada na Veneza dos Doges, tema do enredo da escola. O filme é Uma Certa Lucrécia, de Fernando de Barros (1957).”

Em tempos de realismo

O cinema brasileiro, em especial, tem sido marcado por um apelo ao realismo social, voltando-se à vida de personagens em situações desfavorecidas. Até por isso, as incursões na fantasia ou no terror despertam atenção da crítica enquanto maneira particularmente forte de representar os dilemas específicos desta sociedade. Nossa linguagem seria menos propensa ao onírico, neste sentido?

“Temos que parar de ser intransigentes, enquanto críticos e pensadores de arte”, pontua Lorenna Montenegro. “A nossa experiência de cinema está conectada com os temas que nos interessam. O realismo se frutifica aqui como ocorreu na Itália, durante o neorrealismo, e nos países do trópico sul, além dos vizinhos latino-americanos. São temas que nos interessam.”

“Para além deste realismo que pode soar arcaico ou simplista, trabalhamos muito o realismo fantástico. Quando pegamos a filmografia dos cineastas do Filmes de Plástico, por exemplo, vemos uma utilização da fantasia, do melodrama, que não rompem com o social”, ela menciona, em referência a filmes como Quintal (2015), de André Novais Oliveira, e Marte Um (2022), de Gabriel Martins.

Na opinião de Luiz Carlos Merten, a configuração do cinema caseiro, em streaming, dificulta a apreciação de um cinema dos sonhos. “A questão é que hoje, cada vez menos, o público frui os filmes em salas especiais. São diversas as telas, e a imersão muitas vezes fica em segundo ou terceiro plano. As pessoas se preocupam mais em entender a história do que em fruir, e isso vai contra o que creio no cinema. Não deixa de ser antiaristotélico.”

Em O Homem dos Sonhos, a realidade se torna o inimigo principal de Paul. Para o sujeito cuja relevância social depende das ilusões e sonhos de terceiros, é preciso que continuem sonhando, fabricando um Paul especial. Isso porque, se o fenômeno passar, o sujeito volta a ser “um perfeito zé-ninguém”, nas palavras de seus amigos. Existe um aspecto muito amargo por trás da comédia.

Cena do filme 'A Hora do Lobo', de Ingmar Bergman Foto: Lopert Pictures/Divulgação

Os melhores e piores sonhos no cinema

Pedimos aos especialistas desta matéria que citassem um ótimo exemplo de utilização dos sonhos nos cinemas, assim como uma representação particularmente fraca.

Lorenna Montenegro

  • Bom sonho: A Hora do Lobo (1968), de Ingmar Bergman. Essa percepção do fascismo e da guerra, e suas consequências de exaustão mental e ruptura da realidade, funcionam como excelente representação de um pesadelo.
  • Mau sonho: Matrix (1999), das irmãs Wachowski. Gosto do filme, mas ele representa o simulacro e as simulações, a partir de Baudrillard, de maneira fraca. Para quem tem tamanho orçamento, é mais fácil seguir o caminho da ficção científica.

Sérgio Telles

  • Bom sonho: Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky. O personagem está na Itália, com saudade da Rússia. Ele tem um cachorro em casa, e de tanta saudade, sonha que o cachorro entra na sua vida. A fluidez entre dois mundos, a falta de barreira corresponde a este aspecto brumoso dos sonhos.
  • Mau sonho: A Origem (2010), de Christopher Nolan. Trata-se de um grande diretor, mas esta concepção de sonho não tem nada a ver com nossos sonhos de todos dias. O nosso sonho não tem o caráter de algo desmoronando como um quebra-cabeça. Não funciona assim.

Luiz Zanin

  • Bom sonho: (1963), de Federico Fellini. É o meu filme favorito de todos. Ele trabalha a relação com pai e mãe através de imagens de sonhos — existe uma cena em que o personagem voa, por exemplo. O filme é estruturado entre elementos oníricos e elementos de fantasia.
  • Mau sonho: Freud - Além da Alma (1962), de John Huston. Gosto do filme, mas ele tem uma visão mecânica a respeito da maneira como os traumas infantis participam na criação da psicanálise. Ele não está à altura da sutileza dos processos psíquicos.

Luiz Carlos Merten

  • Bom sonho: Freud - Além da Alma (1962), de John Huston. Estes sonhos permitem a Montgomery Clift formular os conceitos dos complexos de Édipo e Electra. Para mim, é o filme divisor na carreira do cineasta.
  • Mau sonho: Sonhos (1990), de Akira Kurosawa. Por mais belo que seja o visual, não creio que seja um grande Kurosawa. A superficialidade faz do filme, para mim, uma das obras menos interessantes do autor.

Paul Matthews (Nicolas Cage) é um homem comum. Este professor de biologia jamais se destacou no meio acadêmico. Ele mantém uma relação distanciada com as filhas adolescentes, e vive um casamento morno com a esposa. No entanto, certo dia, o sujeito começa a aparecer nos sonhos dos estudantes, dos conhecidos, e mesmo de pessoas que nunca o encontraram.

Ninguém consegue explicar o fenômeno que transforma Paul numa celebridade instantânea, e faz com que se sinta especial pela primeira vez. Mas o que fazer quando as experiências noturnas se convertem em pesadelos? Esta é a premissa de O Homem dos Sonhos (2023), comédia dramática escrita e dirigida por Kristoffer Borgli. A estreia está marcada nos cinemas para 4 de abril, pela Califórnia Filmes.

O cineasta oferece inúmeras narrativas de sonhos. Paul aparece em instantes de erotismo, e também durante acidentes de carro. Ele assiste à flutuação de uma filha pelos ares, enquanto tenta esfaquear a outra. Participa de cenários apocalípticos, além de perseguições na floresta. O longa-metragem age na chave do duplo: cria-se de repente uma persona para o professor, muito mais interessante do que ele próprio. Ora, o sujeito se vê devorado pela cópia, substituído pelo simulacro.

O Homem dos Sonhos tem uma proposta interessante, para além da atuação do Nicolas Cage”, menciona a crítica de cinema Lorenna Montenegro. “A percepção do sonho é trabalhada na chave da metalinguagem, uma abordagem comum nestes casos. Logo, o sonho dentro do sonho reflete o filme dentro do filme. Para alguns personagens, Paul se torna violento, dependendo do momento que a pessoa atravessa. Isso cria uma fissura na história central.”

Nicolas Cage é Paul Matthews em 'O Homem dos Sonhos' Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Mas, afinal, para que servem os sonhos?

Filmes como este nos lembram das inúmeras histórias fantasiosas, insanas ou perturbadoras que acompanham nossos sonos todas as noites. “Mas os sonhos não são absurdos!”, pontua de imediato Sérgio Telles, psicanalista e autor da série de livros O Psicanalista Vai ao Cinema.

“O sonho, como diz o Freud, é a via régia para o inconsciente, ou seja, o caminho principal. Antes de Freud, partia-se do pressuposto que éramos todos conscientes e racionais. Mas ele sintetizou e mapeou o psiquismo, regido por leis diferentes da lógica consciente.”

Telles prossegue. “O sonho é a expressão máxima do inconsciente, da realização de desejos. Freud descobriu que a nossa mente funciona através da gestão permanente de conflitos. Várias pulsões se confrontam: sexuais, de conservação, pressões do superego, pressões morais, etc. Este mundo de conflitos está reprimido na vida consciente, e dá origem a sintomas: fobias, depressões, angústias, obsessões.”

“O que o Freud mostra é que os sonhos aparentam um absurdo, porque eles têm um conteúdo manifesto, e o conteúdo latente. O conteúdo manifesto é a historinha que você lembra: ‘Eu pulei de um prédio, apareceu um bicho, etc.’. Isso não faz sentido nenhum. Mas quando você começa a interpretar, vem a discussão: qual prédio era aquele? A pessoa já esteve em um prédio parecido? O analista desconstrói as condensações e revela outra lógica, bastante consistente. O sonho tem esta característica de se expressar por imagens visuais. Nisso, os filmes são extremamente próximos dos sonhos.”

Personagem de Nicolas Cage começa a habitar os sonhos dos moradores da cidade onde vive Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

O professor de biologia, em O Homem dos Sonhos, também se expressa em termos psicanalíticos: “O sonho é como uma psicose. Os sonhos começam a delirar enquanto dormimos”, afirma o personagem de Nicolas Cage. Adiante, frisa: “Jung estava certo. Existe um inconsciente coletivo.”

Mesmo assim, o psicanalista e crítico de cinema do Estadão, Luiz Zanin, garante que um fenômeno como aquele acontecido em O Homem dos Sonhos diz respeito unicamente à ficção: “O sonho compartilhado por várias pessoas ao mesmo tempo seria explicado por elementos compartilhados socialmente.”

“Freud diz que os sonhos são formados por restos diurnos. Digamos que várias pessoas testemunhem o mesmo acidente. Estes grandes acontecimentos sociais pertencem ao patrimônio comum de uma determinada sociedade, então, podem entrar nos sonhos de várias pessoas enquanto material de construção.”

“Mas a psicanálise diz que cada um dos sonhadores constrói seu sonho de forma totalmente pessoal. Cada sonho é diferente do outro, porque cada indivíduo é diferente do outro. O sonho compartilhado, desta maneira, seria uma fantasia ficcional.”

O cinema também sonha

Zanin expande esta lógica à sétima arte. “A psicanálise sempre foi muito tentadora enquanto ferramenta para as artes. O fascínio dos surrealistas com a psicanálise, nos anos 1920, representa um marco disso.”

“Quando você pega os dois primeiros filmes de Luis Buñuel, Um Cão Andaluz (1929) e A Idade do Ouro (1930), percebe que são filmes completamente oníricos, psicanalíticos. O primeiro foi feito em colaboração com o Salvador Dalí, inclusive. Eles estruturaram o filme pela premissa ‘tudo o que tiver sentido imediato, a gente corta.’”

“O artista faz um uso especial e privilegiado do inconsciente”, concorda Telles. “Freud dizia que os artistas teriam maior porosidade com o inconsciente. Já o ser humano comum teria uma muralha de ferro entre o consciente e o inconsciente. No caso do artista, seria possível transitar entre essas duas esferas com certa facilidade.”

Para Luiz Zanin, “há cineastas muito racionalistas, que aproveitam menos da vida interior. Mas existem outros que vão diretamente nisso. Buñuel fez isso a vida inteira. Existe o caso contemporâneo de David Lynch: os filmes dele são sonhos. Se partir para um discurso totalmente racional do que está vendo, você não entra naqueles filmes.”

“Outro que encontrou nos sonhos uma fonte extraordinária para a sua arte, foi o Fellini. Fellini se formou no surrealismo, e foi roteirista para eles inicialmente. Depois, chega à sua explosão de criatividade em obras banhadas no onírico, caso de (1963) e Julieta dos Espíritos (1965), até o último filme, A Voz da Lua (1990), que aborda a loucura. Fellini tinha o hábito de anotar e desenhar os seus sonhos. Estas anotações eram utilizadas muitas vezes nos filmes dele.”

“Em , os produtores achavam que o filme seria ininteligível para o público. Propuseram então ao Fellini, para facilitar o acesso ao público, de fazer as partes de sonho em preto e branco, e os trechos de ‘realidade’ em cores, para distingui-los. O Fellini recusou completamente. Disse que era impossível dissociar a realidade do sonho da realidade da vida.”

Montenegro completa: “Existem também os filmes da Maya Deren, do Kenneth Anger, além de alguns do Spike Jonze, ou aqueles dirigidos e roteirizados pelo Charlie Kaufman. Além disso, existe Ingmar Bergman. Impossível falar de cinema onírico sem pensar em Bergman. São diretores que navegam entre sonhar acordado e experimentar os filmes como algo real. Como lidar com nossas projeções, com a sensação de déjà vu?”

“Gostaria de citar um exemplo brasileiro”, sublinha Luiz Carlos Merten, crítico do Estadão. “Um exemplo muito mais simples, aparentemente. Dercy Gonçalves como a costureira da escola de samba que, extenuada, adormece sobre a máquina de costura e se vê projetada na Veneza dos Doges, tema do enredo da escola. O filme é Uma Certa Lucrécia, de Fernando de Barros (1957).”

Em tempos de realismo

O cinema brasileiro, em especial, tem sido marcado por um apelo ao realismo social, voltando-se à vida de personagens em situações desfavorecidas. Até por isso, as incursões na fantasia ou no terror despertam atenção da crítica enquanto maneira particularmente forte de representar os dilemas específicos desta sociedade. Nossa linguagem seria menos propensa ao onírico, neste sentido?

“Temos que parar de ser intransigentes, enquanto críticos e pensadores de arte”, pontua Lorenna Montenegro. “A nossa experiência de cinema está conectada com os temas que nos interessam. O realismo se frutifica aqui como ocorreu na Itália, durante o neorrealismo, e nos países do trópico sul, além dos vizinhos latino-americanos. São temas que nos interessam.”

“Para além deste realismo que pode soar arcaico ou simplista, trabalhamos muito o realismo fantástico. Quando pegamos a filmografia dos cineastas do Filmes de Plástico, por exemplo, vemos uma utilização da fantasia, do melodrama, que não rompem com o social”, ela menciona, em referência a filmes como Quintal (2015), de André Novais Oliveira, e Marte Um (2022), de Gabriel Martins.

Na opinião de Luiz Carlos Merten, a configuração do cinema caseiro, em streaming, dificulta a apreciação de um cinema dos sonhos. “A questão é que hoje, cada vez menos, o público frui os filmes em salas especiais. São diversas as telas, e a imersão muitas vezes fica em segundo ou terceiro plano. As pessoas se preocupam mais em entender a história do que em fruir, e isso vai contra o que creio no cinema. Não deixa de ser antiaristotélico.”

Em O Homem dos Sonhos, a realidade se torna o inimigo principal de Paul. Para o sujeito cuja relevância social depende das ilusões e sonhos de terceiros, é preciso que continuem sonhando, fabricando um Paul especial. Isso porque, se o fenômeno passar, o sujeito volta a ser “um perfeito zé-ninguém”, nas palavras de seus amigos. Existe um aspecto muito amargo por trás da comédia.

Cena do filme 'A Hora do Lobo', de Ingmar Bergman Foto: Lopert Pictures/Divulgação

Os melhores e piores sonhos no cinema

Pedimos aos especialistas desta matéria que citassem um ótimo exemplo de utilização dos sonhos nos cinemas, assim como uma representação particularmente fraca.

Lorenna Montenegro

  • Bom sonho: A Hora do Lobo (1968), de Ingmar Bergman. Essa percepção do fascismo e da guerra, e suas consequências de exaustão mental e ruptura da realidade, funcionam como excelente representação de um pesadelo.
  • Mau sonho: Matrix (1999), das irmãs Wachowski. Gosto do filme, mas ele representa o simulacro e as simulações, a partir de Baudrillard, de maneira fraca. Para quem tem tamanho orçamento, é mais fácil seguir o caminho da ficção científica.

Sérgio Telles

  • Bom sonho: Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky. O personagem está na Itália, com saudade da Rússia. Ele tem um cachorro em casa, e de tanta saudade, sonha que o cachorro entra na sua vida. A fluidez entre dois mundos, a falta de barreira corresponde a este aspecto brumoso dos sonhos.
  • Mau sonho: A Origem (2010), de Christopher Nolan. Trata-se de um grande diretor, mas esta concepção de sonho não tem nada a ver com nossos sonhos de todos dias. O nosso sonho não tem o caráter de algo desmoronando como um quebra-cabeça. Não funciona assim.

Luiz Zanin

  • Bom sonho: (1963), de Federico Fellini. É o meu filme favorito de todos. Ele trabalha a relação com pai e mãe através de imagens de sonhos — existe uma cena em que o personagem voa, por exemplo. O filme é estruturado entre elementos oníricos e elementos de fantasia.
  • Mau sonho: Freud - Além da Alma (1962), de John Huston. Gosto do filme, mas ele tem uma visão mecânica a respeito da maneira como os traumas infantis participam na criação da psicanálise. Ele não está à altura da sutileza dos processos psíquicos.

Luiz Carlos Merten

  • Bom sonho: Freud - Além da Alma (1962), de John Huston. Estes sonhos permitem a Montgomery Clift formular os conceitos dos complexos de Édipo e Electra. Para mim, é o filme divisor na carreira do cineasta.
  • Mau sonho: Sonhos (1990), de Akira Kurosawa. Por mais belo que seja o visual, não creio que seja um grande Kurosawa. A superficialidade faz do filme, para mim, uma das obras menos interessantes do autor.

Paul Matthews (Nicolas Cage) é um homem comum. Este professor de biologia jamais se destacou no meio acadêmico. Ele mantém uma relação distanciada com as filhas adolescentes, e vive um casamento morno com a esposa. No entanto, certo dia, o sujeito começa a aparecer nos sonhos dos estudantes, dos conhecidos, e mesmo de pessoas que nunca o encontraram.

Ninguém consegue explicar o fenômeno que transforma Paul numa celebridade instantânea, e faz com que se sinta especial pela primeira vez. Mas o que fazer quando as experiências noturnas se convertem em pesadelos? Esta é a premissa de O Homem dos Sonhos (2023), comédia dramática escrita e dirigida por Kristoffer Borgli. A estreia está marcada nos cinemas para 4 de abril, pela Califórnia Filmes.

O cineasta oferece inúmeras narrativas de sonhos. Paul aparece em instantes de erotismo, e também durante acidentes de carro. Ele assiste à flutuação de uma filha pelos ares, enquanto tenta esfaquear a outra. Participa de cenários apocalípticos, além de perseguições na floresta. O longa-metragem age na chave do duplo: cria-se de repente uma persona para o professor, muito mais interessante do que ele próprio. Ora, o sujeito se vê devorado pela cópia, substituído pelo simulacro.

O Homem dos Sonhos tem uma proposta interessante, para além da atuação do Nicolas Cage”, menciona a crítica de cinema Lorenna Montenegro. “A percepção do sonho é trabalhada na chave da metalinguagem, uma abordagem comum nestes casos. Logo, o sonho dentro do sonho reflete o filme dentro do filme. Para alguns personagens, Paul se torna violento, dependendo do momento que a pessoa atravessa. Isso cria uma fissura na história central.”

Nicolas Cage é Paul Matthews em 'O Homem dos Sonhos' Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Mas, afinal, para que servem os sonhos?

Filmes como este nos lembram das inúmeras histórias fantasiosas, insanas ou perturbadoras que acompanham nossos sonos todas as noites. “Mas os sonhos não são absurdos!”, pontua de imediato Sérgio Telles, psicanalista e autor da série de livros O Psicanalista Vai ao Cinema.

“O sonho, como diz o Freud, é a via régia para o inconsciente, ou seja, o caminho principal. Antes de Freud, partia-se do pressuposto que éramos todos conscientes e racionais. Mas ele sintetizou e mapeou o psiquismo, regido por leis diferentes da lógica consciente.”

Telles prossegue. “O sonho é a expressão máxima do inconsciente, da realização de desejos. Freud descobriu que a nossa mente funciona através da gestão permanente de conflitos. Várias pulsões se confrontam: sexuais, de conservação, pressões do superego, pressões morais, etc. Este mundo de conflitos está reprimido na vida consciente, e dá origem a sintomas: fobias, depressões, angústias, obsessões.”

“O que o Freud mostra é que os sonhos aparentam um absurdo, porque eles têm um conteúdo manifesto, e o conteúdo latente. O conteúdo manifesto é a historinha que você lembra: ‘Eu pulei de um prédio, apareceu um bicho, etc.’. Isso não faz sentido nenhum. Mas quando você começa a interpretar, vem a discussão: qual prédio era aquele? A pessoa já esteve em um prédio parecido? O analista desconstrói as condensações e revela outra lógica, bastante consistente. O sonho tem esta característica de se expressar por imagens visuais. Nisso, os filmes são extremamente próximos dos sonhos.”

Personagem de Nicolas Cage começa a habitar os sonhos dos moradores da cidade onde vive Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

O professor de biologia, em O Homem dos Sonhos, também se expressa em termos psicanalíticos: “O sonho é como uma psicose. Os sonhos começam a delirar enquanto dormimos”, afirma o personagem de Nicolas Cage. Adiante, frisa: “Jung estava certo. Existe um inconsciente coletivo.”

Mesmo assim, o psicanalista e crítico de cinema do Estadão, Luiz Zanin, garante que um fenômeno como aquele acontecido em O Homem dos Sonhos diz respeito unicamente à ficção: “O sonho compartilhado por várias pessoas ao mesmo tempo seria explicado por elementos compartilhados socialmente.”

“Freud diz que os sonhos são formados por restos diurnos. Digamos que várias pessoas testemunhem o mesmo acidente. Estes grandes acontecimentos sociais pertencem ao patrimônio comum de uma determinada sociedade, então, podem entrar nos sonhos de várias pessoas enquanto material de construção.”

“Mas a psicanálise diz que cada um dos sonhadores constrói seu sonho de forma totalmente pessoal. Cada sonho é diferente do outro, porque cada indivíduo é diferente do outro. O sonho compartilhado, desta maneira, seria uma fantasia ficcional.”

O cinema também sonha

Zanin expande esta lógica à sétima arte. “A psicanálise sempre foi muito tentadora enquanto ferramenta para as artes. O fascínio dos surrealistas com a psicanálise, nos anos 1920, representa um marco disso.”

“Quando você pega os dois primeiros filmes de Luis Buñuel, Um Cão Andaluz (1929) e A Idade do Ouro (1930), percebe que são filmes completamente oníricos, psicanalíticos. O primeiro foi feito em colaboração com o Salvador Dalí, inclusive. Eles estruturaram o filme pela premissa ‘tudo o que tiver sentido imediato, a gente corta.’”

“O artista faz um uso especial e privilegiado do inconsciente”, concorda Telles. “Freud dizia que os artistas teriam maior porosidade com o inconsciente. Já o ser humano comum teria uma muralha de ferro entre o consciente e o inconsciente. No caso do artista, seria possível transitar entre essas duas esferas com certa facilidade.”

Para Luiz Zanin, “há cineastas muito racionalistas, que aproveitam menos da vida interior. Mas existem outros que vão diretamente nisso. Buñuel fez isso a vida inteira. Existe o caso contemporâneo de David Lynch: os filmes dele são sonhos. Se partir para um discurso totalmente racional do que está vendo, você não entra naqueles filmes.”

“Outro que encontrou nos sonhos uma fonte extraordinária para a sua arte, foi o Fellini. Fellini se formou no surrealismo, e foi roteirista para eles inicialmente. Depois, chega à sua explosão de criatividade em obras banhadas no onírico, caso de (1963) e Julieta dos Espíritos (1965), até o último filme, A Voz da Lua (1990), que aborda a loucura. Fellini tinha o hábito de anotar e desenhar os seus sonhos. Estas anotações eram utilizadas muitas vezes nos filmes dele.”

“Em , os produtores achavam que o filme seria ininteligível para o público. Propuseram então ao Fellini, para facilitar o acesso ao público, de fazer as partes de sonho em preto e branco, e os trechos de ‘realidade’ em cores, para distingui-los. O Fellini recusou completamente. Disse que era impossível dissociar a realidade do sonho da realidade da vida.”

Montenegro completa: “Existem também os filmes da Maya Deren, do Kenneth Anger, além de alguns do Spike Jonze, ou aqueles dirigidos e roteirizados pelo Charlie Kaufman. Além disso, existe Ingmar Bergman. Impossível falar de cinema onírico sem pensar em Bergman. São diretores que navegam entre sonhar acordado e experimentar os filmes como algo real. Como lidar com nossas projeções, com a sensação de déjà vu?”

“Gostaria de citar um exemplo brasileiro”, sublinha Luiz Carlos Merten, crítico do Estadão. “Um exemplo muito mais simples, aparentemente. Dercy Gonçalves como a costureira da escola de samba que, extenuada, adormece sobre a máquina de costura e se vê projetada na Veneza dos Doges, tema do enredo da escola. O filme é Uma Certa Lucrécia, de Fernando de Barros (1957).”

Em tempos de realismo

O cinema brasileiro, em especial, tem sido marcado por um apelo ao realismo social, voltando-se à vida de personagens em situações desfavorecidas. Até por isso, as incursões na fantasia ou no terror despertam atenção da crítica enquanto maneira particularmente forte de representar os dilemas específicos desta sociedade. Nossa linguagem seria menos propensa ao onírico, neste sentido?

“Temos que parar de ser intransigentes, enquanto críticos e pensadores de arte”, pontua Lorenna Montenegro. “A nossa experiência de cinema está conectada com os temas que nos interessam. O realismo se frutifica aqui como ocorreu na Itália, durante o neorrealismo, e nos países do trópico sul, além dos vizinhos latino-americanos. São temas que nos interessam.”

“Para além deste realismo que pode soar arcaico ou simplista, trabalhamos muito o realismo fantástico. Quando pegamos a filmografia dos cineastas do Filmes de Plástico, por exemplo, vemos uma utilização da fantasia, do melodrama, que não rompem com o social”, ela menciona, em referência a filmes como Quintal (2015), de André Novais Oliveira, e Marte Um (2022), de Gabriel Martins.

Na opinião de Luiz Carlos Merten, a configuração do cinema caseiro, em streaming, dificulta a apreciação de um cinema dos sonhos. “A questão é que hoje, cada vez menos, o público frui os filmes em salas especiais. São diversas as telas, e a imersão muitas vezes fica em segundo ou terceiro plano. As pessoas se preocupam mais em entender a história do que em fruir, e isso vai contra o que creio no cinema. Não deixa de ser antiaristotélico.”

Em O Homem dos Sonhos, a realidade se torna o inimigo principal de Paul. Para o sujeito cuja relevância social depende das ilusões e sonhos de terceiros, é preciso que continuem sonhando, fabricando um Paul especial. Isso porque, se o fenômeno passar, o sujeito volta a ser “um perfeito zé-ninguém”, nas palavras de seus amigos. Existe um aspecto muito amargo por trás da comédia.

Cena do filme 'A Hora do Lobo', de Ingmar Bergman Foto: Lopert Pictures/Divulgação

Os melhores e piores sonhos no cinema

Pedimos aos especialistas desta matéria que citassem um ótimo exemplo de utilização dos sonhos nos cinemas, assim como uma representação particularmente fraca.

Lorenna Montenegro

  • Bom sonho: A Hora do Lobo (1968), de Ingmar Bergman. Essa percepção do fascismo e da guerra, e suas consequências de exaustão mental e ruptura da realidade, funcionam como excelente representação de um pesadelo.
  • Mau sonho: Matrix (1999), das irmãs Wachowski. Gosto do filme, mas ele representa o simulacro e as simulações, a partir de Baudrillard, de maneira fraca. Para quem tem tamanho orçamento, é mais fácil seguir o caminho da ficção científica.

Sérgio Telles

  • Bom sonho: Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky. O personagem está na Itália, com saudade da Rússia. Ele tem um cachorro em casa, e de tanta saudade, sonha que o cachorro entra na sua vida. A fluidez entre dois mundos, a falta de barreira corresponde a este aspecto brumoso dos sonhos.
  • Mau sonho: A Origem (2010), de Christopher Nolan. Trata-se de um grande diretor, mas esta concepção de sonho não tem nada a ver com nossos sonhos de todos dias. O nosso sonho não tem o caráter de algo desmoronando como um quebra-cabeça. Não funciona assim.

Luiz Zanin

  • Bom sonho: (1963), de Federico Fellini. É o meu filme favorito de todos. Ele trabalha a relação com pai e mãe através de imagens de sonhos — existe uma cena em que o personagem voa, por exemplo. O filme é estruturado entre elementos oníricos e elementos de fantasia.
  • Mau sonho: Freud - Além da Alma (1962), de John Huston. Gosto do filme, mas ele tem uma visão mecânica a respeito da maneira como os traumas infantis participam na criação da psicanálise. Ele não está à altura da sutileza dos processos psíquicos.

Luiz Carlos Merten

  • Bom sonho: Freud - Além da Alma (1962), de John Huston. Estes sonhos permitem a Montgomery Clift formular os conceitos dos complexos de Édipo e Electra. Para mim, é o filme divisor na carreira do cineasta.
  • Mau sonho: Sonhos (1990), de Akira Kurosawa. Por mais belo que seja o visual, não creio que seja um grande Kurosawa. A superficialidade faz do filme, para mim, uma das obras menos interessantes do autor.

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