Gabriela Amaral Almeida fez sua formação nos anos 1980 e 90, quando os filmes de terror invadiam as madrugadas da TV aberta e eram o gênero dominante nas prateleiras das locadoras de vídeos. Era uma menina suscetível, que curtia relatos sobre medo, morte. Seu maior choque foi a descoberta de Psicose, de Alfred Hitchcock, quando tinha 15 ou 16 anos. De uma forma ainda difusa, ela percebeu que era o que queria fazer. O que, exatamente, não sabia. Na universidade, ainda na Bahia, descobriu que podia fazer filmes, ou então estudá-los. Tornou-se mestra, foi para Cuba, cursou a tradicional Escola de San Antonio de Los Baños. Tornou-se roteirista, diretora.
Estreia nesta quinta, 2, seu segundo longa, A Sombra do Pai. Deveria ter sido o primeiro, após longa gestação. Mas a liberação dos recursos atrasou e Gabriela não queria ficar um ano repassando o filme na cabeça. Tinha medo que ele passasse do ponto. Bateu na porta do produtor Rodrigo Teixeira, ofereceu-lhe o projeto de O Animal Cordial, que foi filmado e estreou antes. A Sombra do Pai virou o segundo longa, Rodrigo Teixeira segue associado – e foi decisivo da pós-produção de A Sombra do Pai.
O cinema de gênero, leia-se terror, consolida-se no Brasil. Antes, havia os filmes de Zé do Caixão. Hoje, existe a geração de Gabriela, de Marco Dutra e Juliana Rojas, de Marina Meliande. Filmes como os citados de Gabriela, e também Trabalhar Cansa, As Boas Maneiras e Mormaço, que vai estrear na próxima quinta, 9. Andrucha Waddington finaliza Juízo, terror sobrenatural espírita que tem roteiro de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro no elenco. Na junket de Sob Pressão – sua série que estreia nesta quinta, na Globo –, Andrucha disse quer adorou fazer cinema de gênero. Acrescentou que o filme está bom, assustador.
Cada um no seu momento. A Sombra do Pai é sobre essa garota que perdeu a mãe e vive com a tia e o pai. A tia vai se casar, o pai dá duro na construção civil. Não tem tempo de fazer o luto, e talvez não perceba a profundidade das mudanças na filha, uma garota sensitiva, que acredita em vida após a morte e cujo sonho é trazer a mãe de volta.
Gabriela reflete que o Brasil atual virou terreno propício para o cinema de gênero. “Às vezes tenho a impressão que tudo isso que vivemos é um pesadelo, não é real, como se o Brasil, a partir dos momentos de 2013, tivesse entrado numa realidade paralela. É tanto horror que nem sei.” Na verdade, e cedo, ela descobriu que, por mais que o gênero lhe tenha fornecido uma ferramenta para olhar o mundo – e que ela devolve como narrativa –, não busca no terror uma forma de alienação, mas justamente, pelo contrário, uma afirmação política.
Pois Gabriela sabe que o horror, ou o terror da realidade, supera o dos filmes. Aprendeu em casa. “Meu pai era engenheiro especializado em ferrovias. Tinha uma função social importante, era um homem admirado, com uma posição. De um dia para o outro, os poderosos resolveram que a malha férrea não seria mais necessária, que os trens estavam obsoletos e seriam substituídos pela malha viária, por carros. Meu pai, que estava no auge, sentiu o golpe. Vi-o transformar-se, virar um farrapo de si mesmo. Isso me marcou. E acho que, na atualidade, o que me interessa é fazer cinema de gênero para colocar na tela o processo de desumanização que está nas base do capitalismo, do neoliberalismo. Não é o humano que importa. A concentração de riqueza, a exclusão social, esse é o verdadeiro terror dos tempos modernos.”
Na trama de A Sombra do Pai, Júlio Machado não supera a morte da mulher nem o suicídio do colega demitido no canteiro de obras. Internaliza os fantasmas que o destroem. A filha e a tia acreditam na religiosidade popular. Luciana Paes vive fazendo trabalhos para se casar. Nina Medeiros quer a mãe de volta. Nina é fantástica. “Fizemos um casting extenso, mas ela foi encontrada na rua, na saída da escola. Nina é um doce, mas encarnou a personagem de um jeito que tem gente que me diz, depois de ver o filme, que tem medo dela”, diz a diretora.
Como baiana, Gabriela convive muito bem com o sincretismo religioso. “Hoje eu acho que exige uma cobrança, um dirigismo religioso. As religiões afro, como tudo que é negro nesse Brasil, parece que parou de merecer respeito. Eu me criei entre as benzedeiras dos terreiros e a comunhão da igreja. Tudo somava. Hoje, infelizmente, não é assim.”
Por mais crítico e até ideológico que seja seu cinema, Gabriela evita o que para ela seria um problema – a ideologização dos personagens. “Personagem tem de viver, se vira porta-voz do diretor a dramaturgia fica comprometida.”