'Tinta Bruta', 'Beijo no Asfalto' e 'Rasga Coração' são retratos pulsantes do Brasil


Filmes entram em cartaz nos cinemas nesta quinta, 6; diversas entre si, essas ficções colocam na tela diferentes retratos do Brasil

Por Luiz Carlos Merten

Entram em cartaz nesta quinta, 6, quatro novos filmes brasileiros – um documentário, Henfil e três ficções. Duas delas são adaptações de teatro – Rasga Coração, de Jorge Furtado, da peça de Oduvaldo Vianna Filho, e O Beijo no Asfalto, de Murilo Benício, baseado em Nelson Rodrigues. A terceira é Tinta Bruta, da dupla Márcio Reolon/Filipe Matzembacher, que recebeu dois prêmios importantes no Festival de Berlim, em fevereiro, o Teddy Bear, o chamado Urso de Ouro gay, e o prêmio das associações europeias de cinema de arte e ensaio.

Diversas entre si, essas ficções colocam na tela diferentes retratos do Brasil. Rasga Coração transforma o conflito político em familiar, pai e filho divididos por suas crenças. O Beijo no Asfalto aborda o preconceito – a peça foi publicada em 1960, há 58 anos, portanto. Decorrido todo esse tempo, é como se o mundo tivesse feito um looping e voltado ao mesmo ponto/momento em que o dramaturgo escreveu seu texto. Apesar das leis em defesa da cultura da diversidade, o ódio e a violência contra gays estão mais fortes que nunca. É o tema também de Tinta Bruta – a degradação das cidades, a solidão urbana. É Porto Alegre, mas poderia ser São Paulo. O Brasil (real) pulsa nessas ficções.

Pedro.Shico Menegat é o garoto neon, que faz performances eróticas na internet. Foto: Vitrine Filmes Foto:
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‘Tinta Bruta’, um corpo elétrico e sua necessidade de afeto

Filipe Matzembacher trabalha em dupla com Márcio Reolon. Com seu longa anterior, Beira-Mar, eles foram à Berlinale. Fizeram sucesso. Com Tinta Bruta, retornaram ao Festival de Berlim, em fevereiro, e dessa vez foi a consagração – Urso gay, prêmio da associação europeia de cinemas de arte. “Foram prêmios muito bacanas, porque outorgados por júris bem diversos. O da associação é formado por distribuidores e exibidores de filmes de arte/ensaio. Isso já abre uma porta muito interessante para o filme da gente entrar nesse circuito e passar na Europa toda”, diz Matzembacher.

Tinta Bruta é sobre um garoto, Pedro, que sofre um processo criminal. Só isso bastaria, quem sabe, para desestabilizá-lo, mas a irmã está indo embora e ele vai ficar sozinho. Como o codinome de Garoto Neon, Pedro faz performances eróticas na internet. E descobre que existe outro ‘garoto neon’. “O filme começou a nascer para a gente de uma constatação”, conta Matzembacher. “Porto Alegre foi ficando cada vez mais uma cidade degradada, distante, violenta. As pessoas foram se isolando, ficando solitárias. Começaram a partir. Nós, que ficamos, ao ver todos esses amigos se indo, começamos a pensar no assunto. O filme foi se construindo.” A questão da internet? “Para a geração da gente é muito comum. Está todo mundo ligado nas redes. Começamos a pesquisar opções de lazer, de relacionamentos. E chegamos nesses websites que são bastante comuns na rede.”

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Embora seja um personagem fictício, Pedro, o garoto neon, internaliza uma violência muito forte contra o outro, o diferente. “O Pedro não quer ser vítima, e por isso a violência vira uma via de mão dupla. Não é uma coisa isolada, pontual. O Brasil está muito violento. Há muito preconceito de classe, de gênero, de raça. Esse país virou uma loucura.” Por isso mesmo a acolhida em Berlim foi tão emocionante. “Encontramos um público muito interessado naquilo que estamos mostrando. A resposta foi sempre muito boa em todas as sessões. E o interesse não era só pela forma, era pelos personagens também. Claro que as coisas são indissociáveis, mas esse foi um filme que a gente pensou muito como cinema. Nasceu com a proposta de ousar na forma. Testamos muita coisa, mas era importante que a forma não ofuscasse o personagem. A angústia do Pedro é geracional, é muito viva, muito real.”

O repórter arrisca uma comparação. Apesar de todas as diferenças, Pedro não deixa de ser um outro corpo elétrico, como o do protagonista do longa de Marcelo Caetano que foi um dos melhores filmes de 2017, como Tinta Bruta, no finalzinho de 2018, está sendo um dos melhores deste ano. Mesmo com risco de spoiler, ambos vivem a vida muito erotizados – os tais corpos elétricos – e, no limite, não vislumbram ‘soluções’. São corpos também suspensos, um flutuando no mar, o outro no ritmo inebriante da dança. “Entendo o que você quer dizer, e isso era essencial para a gente. Amoralizar o corpo, tirar toda moralização. O corpo não representa só o desejo e, às vezes, pode até desmistificar o desejo. O corpo do Pedro nos interessa como corpo em movimento – em cenas de dança, sexo, violência.”

E Matzembacher reflete – “Nosso olhar tem muito a ver com o contexto, a situação política do País. Não dá para desviar dessas questões.” É outra coisa que talvez seja comum com Corpo Elétrico – “São filmes sobre relacionamentos, sobre afetos”, complementa Matzembacher. “Acho que, no fundo, é o que está em discussão aqui. Nessa fase tão dura, as pessoas precisam se unir, fortalecer os afetos. O isolamento é muito doloroso.” Shico Menegat, que faz Pedro, é um achado. Sandra Dani, que faz uma participação como a avó, é uma diva gaúcha. Teatro, cinema. “Ela é maravilhosa e nós a queríamos, absolutamente, no filme. Para atrizes como a Sandra papel não tem tamanho. Pode ser uma cena, e elas dominam.” E o Shico? “Você sabia que ele nunca atuou? A partir do momento em que o descobrimos e escolhemos, o Shico passou por um trabalho longo de preparação. Mas ele nos surpreendeu. Em toda parte, o público se rende ao Shico. Ele é intenso, visceral.”

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Murilo Benício e sua homenagem a Nelson Rodrigues e aos atores em 'Beijo no Asfalto'

Pode parecer esquisito, mas a reação do ator e agora diretor Murilo Benício à pergunta inevitável – por que adaptar Beijo no Asfalto? – é de perplexidade. “Não sei, eu também me pergunto por quê. Talvez seja uma consciência da importância de Nelson Rodrigues, e também do quanto é necessário mantê-lo em evidência. Mas o que eu sei, o que nós sabemos – ao seu lado está a mulher e atriz, Débora Falabella –, é que fizemos esse filme num contexto e o estreamos em outro. Como que a gente podia imaginar que essa história fosse ficar mais atual que nunca? Nesse Brasil de repente tão preconceituoso contra gays, negros, o filme, e Nelson, são vitais.”

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Murilo credita ao pai a descoberta de Nelson Rodrigues. “Eu era garoto e ele já falava do Nelson. Meu pai foi fundamental para que eu me tornasse artista. Ele aguçou em mim uma sensibilidade, uma antena para tudo o que ocorria ao redor.” Ator conhecido, e apreciado, ele não se intimida de estrear com um filme desses? “Cara, acho que se tivesse pensado nisso teria ficado travado. Só percebi depois como entrei nesse projeto com a cara e a coragem, Desde o início, fui guiado por uma espécie de intuição. O filme teria de ser uma celebração da nossa profissão. Uma homenagem aos atores, ao nosso processo.”

Foi assim que o filme nasceu com seu formato particular. Tio Vânia em Nova York, de Louis Malle, foi uma referência? “Com certeza, mas também o Looking for Richard, de Al Pacino. São filmes sobre o processo de montar peças, de encontrar um personagem. Nos reunimos ao redor daquela mesa para ensaiar, mas aí o Amir Haddad, a Fernanda (Montenegro), cada um com sua imensa cultura e vivência, foram esclarecendo, contextualizando. O filme nasceu desse formato. A mesa entremeada pelas cenas da peça filmada.” “Minha sorte, além de ter esse elenco maravilhoso, foi ter um fotógrafo como o Lula Carvalho. A câmera na mão dele é uma coisa viva.

Queria que o espectador se sentisse parte do nosso processo – ele (Lula) conseguiu.” A história? Um homem é atropelado. Pede a Arandir, que o socorre, um beijo. O caso repercute na mídia. Homossexualidade? E o Lázaro Ramos no papel? “Lázaro é a pessoa mais gentil que conheço. Sabia que ele ia fazer um Arandir com camadas, só não sabia que ia ser muito melhor que sonhei.”

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Jorge Furtado e a atualidade política de ‘Rasga Coração’

Há dez, 12 anos Jorge Furtado vinha acalentando o sonho de filmar a peça de Oduvaldo Vianna Filho, Rasga Coração. “O texto me impressionou muito, aquela coisa do conflito de gerações, a relação entre pai e filho, mas, ao mesmo tempo em que era apaixonado, eu também me dava conta de que o texto estava defasado e não poderia ser feito no contexto de um governo de esquerda, do PT.” Mas em 2013, com todos aqueles protestos de rua, o texto voltou com força no imaginário dele.

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“Comecei a pensar de novo que seria viável, mas eu não queria reproduzir o contexto em que a peça surgiu. Queria fazer o filme atual. Mal sabia eu que seria atropelado pela realidade. Fiz um filme num contexto, passei na Mostra e o debati com o público. Aí veio a eleição e o filme estreia agora num outro Brasil de direita. Sinceramente, acho que ficou melhor.” O repórter concorda, mas pode um filme mudar em tão pouco tempo, coisa de um mês? “Na verdade, não é o filme que muda, mas o olhar sobre ele. Sempre me interessou muito falar sobre o conflito geracional entre Manguari e o filho na peça do Vianninha (como o dramaturgo era chamado). Só que o conflito entre pai e filho virou esse conflito político que rachou o Brasil na eleição. Sem fazer esforço nenhum, acho que o filme ganhou outro significado.”

É interessante como Rasga Coração e Beijo no Asfalto, outra ficção brasileira que estreia nesta quinta, têm origem no teatro. E também que Rasga Coração e Tinta Bruta sejam produções gaúchas. E todos esses filmes querem revelar o Brasil atual, com todas as suas contradições, os seus preconceitos. Rasga Coração foi escrita por Vianninha entre 1972 e 74, expressando em parte o conflito entre o dramaturgo e seu pai. “O filme é sobre essa geração que chegou à vida adulta em 2013. Seus pais, a geração anterior, tinham a sensação de ter vencido todas as guerras. Pela democracia, pela anistia, pela Constituinte, mas para os filhos eles não fizeram o bastante, tal é o conflito.”

Manguari tem um discurso revolucionário, mas é funcionário público. O filho tem um comportamento libertário, mas não assume suas responsabilidades. Agridem-se o tempo todo. “Drica Moraes, a mãe, fica no meio dos dois. É uma atriz genial, das melhores do Brasil. Com o Marco (Ricca, o Manguari) já tinha trabalhado. Sei o quanto é bom. A surpresa foi o Chay (Suede, o filho). Com os três, o filme cresceu muito.”

Entram em cartaz nesta quinta, 6, quatro novos filmes brasileiros – um documentário, Henfil e três ficções. Duas delas são adaptações de teatro – Rasga Coração, de Jorge Furtado, da peça de Oduvaldo Vianna Filho, e O Beijo no Asfalto, de Murilo Benício, baseado em Nelson Rodrigues. A terceira é Tinta Bruta, da dupla Márcio Reolon/Filipe Matzembacher, que recebeu dois prêmios importantes no Festival de Berlim, em fevereiro, o Teddy Bear, o chamado Urso de Ouro gay, e o prêmio das associações europeias de cinema de arte e ensaio.

Diversas entre si, essas ficções colocam na tela diferentes retratos do Brasil. Rasga Coração transforma o conflito político em familiar, pai e filho divididos por suas crenças. O Beijo no Asfalto aborda o preconceito – a peça foi publicada em 1960, há 58 anos, portanto. Decorrido todo esse tempo, é como se o mundo tivesse feito um looping e voltado ao mesmo ponto/momento em que o dramaturgo escreveu seu texto. Apesar das leis em defesa da cultura da diversidade, o ódio e a violência contra gays estão mais fortes que nunca. É o tema também de Tinta Bruta – a degradação das cidades, a solidão urbana. É Porto Alegre, mas poderia ser São Paulo. O Brasil (real) pulsa nessas ficções.

Pedro.Shico Menegat é o garoto neon, que faz performances eróticas na internet. Foto: Vitrine Filmes Foto:

‘Tinta Bruta’, um corpo elétrico e sua necessidade de afeto

Filipe Matzembacher trabalha em dupla com Márcio Reolon. Com seu longa anterior, Beira-Mar, eles foram à Berlinale. Fizeram sucesso. Com Tinta Bruta, retornaram ao Festival de Berlim, em fevereiro, e dessa vez foi a consagração – Urso gay, prêmio da associação europeia de cinemas de arte. “Foram prêmios muito bacanas, porque outorgados por júris bem diversos. O da associação é formado por distribuidores e exibidores de filmes de arte/ensaio. Isso já abre uma porta muito interessante para o filme da gente entrar nesse circuito e passar na Europa toda”, diz Matzembacher.

Tinta Bruta é sobre um garoto, Pedro, que sofre um processo criminal. Só isso bastaria, quem sabe, para desestabilizá-lo, mas a irmã está indo embora e ele vai ficar sozinho. Como o codinome de Garoto Neon, Pedro faz performances eróticas na internet. E descobre que existe outro ‘garoto neon’. “O filme começou a nascer para a gente de uma constatação”, conta Matzembacher. “Porto Alegre foi ficando cada vez mais uma cidade degradada, distante, violenta. As pessoas foram se isolando, ficando solitárias. Começaram a partir. Nós, que ficamos, ao ver todos esses amigos se indo, começamos a pensar no assunto. O filme foi se construindo.” A questão da internet? “Para a geração da gente é muito comum. Está todo mundo ligado nas redes. Começamos a pesquisar opções de lazer, de relacionamentos. E chegamos nesses websites que são bastante comuns na rede.”

Embora seja um personagem fictício, Pedro, o garoto neon, internaliza uma violência muito forte contra o outro, o diferente. “O Pedro não quer ser vítima, e por isso a violência vira uma via de mão dupla. Não é uma coisa isolada, pontual. O Brasil está muito violento. Há muito preconceito de classe, de gênero, de raça. Esse país virou uma loucura.” Por isso mesmo a acolhida em Berlim foi tão emocionante. “Encontramos um público muito interessado naquilo que estamos mostrando. A resposta foi sempre muito boa em todas as sessões. E o interesse não era só pela forma, era pelos personagens também. Claro que as coisas são indissociáveis, mas esse foi um filme que a gente pensou muito como cinema. Nasceu com a proposta de ousar na forma. Testamos muita coisa, mas era importante que a forma não ofuscasse o personagem. A angústia do Pedro é geracional, é muito viva, muito real.”

O repórter arrisca uma comparação. Apesar de todas as diferenças, Pedro não deixa de ser um outro corpo elétrico, como o do protagonista do longa de Marcelo Caetano que foi um dos melhores filmes de 2017, como Tinta Bruta, no finalzinho de 2018, está sendo um dos melhores deste ano. Mesmo com risco de spoiler, ambos vivem a vida muito erotizados – os tais corpos elétricos – e, no limite, não vislumbram ‘soluções’. São corpos também suspensos, um flutuando no mar, o outro no ritmo inebriante da dança. “Entendo o que você quer dizer, e isso era essencial para a gente. Amoralizar o corpo, tirar toda moralização. O corpo não representa só o desejo e, às vezes, pode até desmistificar o desejo. O corpo do Pedro nos interessa como corpo em movimento – em cenas de dança, sexo, violência.”

E Matzembacher reflete – “Nosso olhar tem muito a ver com o contexto, a situação política do País. Não dá para desviar dessas questões.” É outra coisa que talvez seja comum com Corpo Elétrico – “São filmes sobre relacionamentos, sobre afetos”, complementa Matzembacher. “Acho que, no fundo, é o que está em discussão aqui. Nessa fase tão dura, as pessoas precisam se unir, fortalecer os afetos. O isolamento é muito doloroso.” Shico Menegat, que faz Pedro, é um achado. Sandra Dani, que faz uma participação como a avó, é uma diva gaúcha. Teatro, cinema. “Ela é maravilhosa e nós a queríamos, absolutamente, no filme. Para atrizes como a Sandra papel não tem tamanho. Pode ser uma cena, e elas dominam.” E o Shico? “Você sabia que ele nunca atuou? A partir do momento em que o descobrimos e escolhemos, o Shico passou por um trabalho longo de preparação. Mas ele nos surpreendeu. Em toda parte, o público se rende ao Shico. Ele é intenso, visceral.”

Murilo Benício e sua homenagem a Nelson Rodrigues e aos atores em 'Beijo no Asfalto'

Pode parecer esquisito, mas a reação do ator e agora diretor Murilo Benício à pergunta inevitável – por que adaptar Beijo no Asfalto? – é de perplexidade. “Não sei, eu também me pergunto por quê. Talvez seja uma consciência da importância de Nelson Rodrigues, e também do quanto é necessário mantê-lo em evidência. Mas o que eu sei, o que nós sabemos – ao seu lado está a mulher e atriz, Débora Falabella –, é que fizemos esse filme num contexto e o estreamos em outro. Como que a gente podia imaginar que essa história fosse ficar mais atual que nunca? Nesse Brasil de repente tão preconceituoso contra gays, negros, o filme, e Nelson, são vitais.”

Murilo credita ao pai a descoberta de Nelson Rodrigues. “Eu era garoto e ele já falava do Nelson. Meu pai foi fundamental para que eu me tornasse artista. Ele aguçou em mim uma sensibilidade, uma antena para tudo o que ocorria ao redor.” Ator conhecido, e apreciado, ele não se intimida de estrear com um filme desses? “Cara, acho que se tivesse pensado nisso teria ficado travado. Só percebi depois como entrei nesse projeto com a cara e a coragem, Desde o início, fui guiado por uma espécie de intuição. O filme teria de ser uma celebração da nossa profissão. Uma homenagem aos atores, ao nosso processo.”

Foi assim que o filme nasceu com seu formato particular. Tio Vânia em Nova York, de Louis Malle, foi uma referência? “Com certeza, mas também o Looking for Richard, de Al Pacino. São filmes sobre o processo de montar peças, de encontrar um personagem. Nos reunimos ao redor daquela mesa para ensaiar, mas aí o Amir Haddad, a Fernanda (Montenegro), cada um com sua imensa cultura e vivência, foram esclarecendo, contextualizando. O filme nasceu desse formato. A mesa entremeada pelas cenas da peça filmada.” “Minha sorte, além de ter esse elenco maravilhoso, foi ter um fotógrafo como o Lula Carvalho. A câmera na mão dele é uma coisa viva.

Queria que o espectador se sentisse parte do nosso processo – ele (Lula) conseguiu.” A história? Um homem é atropelado. Pede a Arandir, que o socorre, um beijo. O caso repercute na mídia. Homossexualidade? E o Lázaro Ramos no papel? “Lázaro é a pessoa mais gentil que conheço. Sabia que ele ia fazer um Arandir com camadas, só não sabia que ia ser muito melhor que sonhei.”

Jorge Furtado e a atualidade política de ‘Rasga Coração’

Há dez, 12 anos Jorge Furtado vinha acalentando o sonho de filmar a peça de Oduvaldo Vianna Filho, Rasga Coração. “O texto me impressionou muito, aquela coisa do conflito de gerações, a relação entre pai e filho, mas, ao mesmo tempo em que era apaixonado, eu também me dava conta de que o texto estava defasado e não poderia ser feito no contexto de um governo de esquerda, do PT.” Mas em 2013, com todos aqueles protestos de rua, o texto voltou com força no imaginário dele.

“Comecei a pensar de novo que seria viável, mas eu não queria reproduzir o contexto em que a peça surgiu. Queria fazer o filme atual. Mal sabia eu que seria atropelado pela realidade. Fiz um filme num contexto, passei na Mostra e o debati com o público. Aí veio a eleição e o filme estreia agora num outro Brasil de direita. Sinceramente, acho que ficou melhor.” O repórter concorda, mas pode um filme mudar em tão pouco tempo, coisa de um mês? “Na verdade, não é o filme que muda, mas o olhar sobre ele. Sempre me interessou muito falar sobre o conflito geracional entre Manguari e o filho na peça do Vianninha (como o dramaturgo era chamado). Só que o conflito entre pai e filho virou esse conflito político que rachou o Brasil na eleição. Sem fazer esforço nenhum, acho que o filme ganhou outro significado.”

É interessante como Rasga Coração e Beijo no Asfalto, outra ficção brasileira que estreia nesta quinta, têm origem no teatro. E também que Rasga Coração e Tinta Bruta sejam produções gaúchas. E todos esses filmes querem revelar o Brasil atual, com todas as suas contradições, os seus preconceitos. Rasga Coração foi escrita por Vianninha entre 1972 e 74, expressando em parte o conflito entre o dramaturgo e seu pai. “O filme é sobre essa geração que chegou à vida adulta em 2013. Seus pais, a geração anterior, tinham a sensação de ter vencido todas as guerras. Pela democracia, pela anistia, pela Constituinte, mas para os filhos eles não fizeram o bastante, tal é o conflito.”

Manguari tem um discurso revolucionário, mas é funcionário público. O filho tem um comportamento libertário, mas não assume suas responsabilidades. Agridem-se o tempo todo. “Drica Moraes, a mãe, fica no meio dos dois. É uma atriz genial, das melhores do Brasil. Com o Marco (Ricca, o Manguari) já tinha trabalhado. Sei o quanto é bom. A surpresa foi o Chay (Suede, o filho). Com os três, o filme cresceu muito.”

Entram em cartaz nesta quinta, 6, quatro novos filmes brasileiros – um documentário, Henfil e três ficções. Duas delas são adaptações de teatro – Rasga Coração, de Jorge Furtado, da peça de Oduvaldo Vianna Filho, e O Beijo no Asfalto, de Murilo Benício, baseado em Nelson Rodrigues. A terceira é Tinta Bruta, da dupla Márcio Reolon/Filipe Matzembacher, que recebeu dois prêmios importantes no Festival de Berlim, em fevereiro, o Teddy Bear, o chamado Urso de Ouro gay, e o prêmio das associações europeias de cinema de arte e ensaio.

Diversas entre si, essas ficções colocam na tela diferentes retratos do Brasil. Rasga Coração transforma o conflito político em familiar, pai e filho divididos por suas crenças. O Beijo no Asfalto aborda o preconceito – a peça foi publicada em 1960, há 58 anos, portanto. Decorrido todo esse tempo, é como se o mundo tivesse feito um looping e voltado ao mesmo ponto/momento em que o dramaturgo escreveu seu texto. Apesar das leis em defesa da cultura da diversidade, o ódio e a violência contra gays estão mais fortes que nunca. É o tema também de Tinta Bruta – a degradação das cidades, a solidão urbana. É Porto Alegre, mas poderia ser São Paulo. O Brasil (real) pulsa nessas ficções.

Pedro.Shico Menegat é o garoto neon, que faz performances eróticas na internet. Foto: Vitrine Filmes Foto:

‘Tinta Bruta’, um corpo elétrico e sua necessidade de afeto

Filipe Matzembacher trabalha em dupla com Márcio Reolon. Com seu longa anterior, Beira-Mar, eles foram à Berlinale. Fizeram sucesso. Com Tinta Bruta, retornaram ao Festival de Berlim, em fevereiro, e dessa vez foi a consagração – Urso gay, prêmio da associação europeia de cinemas de arte. “Foram prêmios muito bacanas, porque outorgados por júris bem diversos. O da associação é formado por distribuidores e exibidores de filmes de arte/ensaio. Isso já abre uma porta muito interessante para o filme da gente entrar nesse circuito e passar na Europa toda”, diz Matzembacher.

Tinta Bruta é sobre um garoto, Pedro, que sofre um processo criminal. Só isso bastaria, quem sabe, para desestabilizá-lo, mas a irmã está indo embora e ele vai ficar sozinho. Como o codinome de Garoto Neon, Pedro faz performances eróticas na internet. E descobre que existe outro ‘garoto neon’. “O filme começou a nascer para a gente de uma constatação”, conta Matzembacher. “Porto Alegre foi ficando cada vez mais uma cidade degradada, distante, violenta. As pessoas foram se isolando, ficando solitárias. Começaram a partir. Nós, que ficamos, ao ver todos esses amigos se indo, começamos a pensar no assunto. O filme foi se construindo.” A questão da internet? “Para a geração da gente é muito comum. Está todo mundo ligado nas redes. Começamos a pesquisar opções de lazer, de relacionamentos. E chegamos nesses websites que são bastante comuns na rede.”

Embora seja um personagem fictício, Pedro, o garoto neon, internaliza uma violência muito forte contra o outro, o diferente. “O Pedro não quer ser vítima, e por isso a violência vira uma via de mão dupla. Não é uma coisa isolada, pontual. O Brasil está muito violento. Há muito preconceito de classe, de gênero, de raça. Esse país virou uma loucura.” Por isso mesmo a acolhida em Berlim foi tão emocionante. “Encontramos um público muito interessado naquilo que estamos mostrando. A resposta foi sempre muito boa em todas as sessões. E o interesse não era só pela forma, era pelos personagens também. Claro que as coisas são indissociáveis, mas esse foi um filme que a gente pensou muito como cinema. Nasceu com a proposta de ousar na forma. Testamos muita coisa, mas era importante que a forma não ofuscasse o personagem. A angústia do Pedro é geracional, é muito viva, muito real.”

O repórter arrisca uma comparação. Apesar de todas as diferenças, Pedro não deixa de ser um outro corpo elétrico, como o do protagonista do longa de Marcelo Caetano que foi um dos melhores filmes de 2017, como Tinta Bruta, no finalzinho de 2018, está sendo um dos melhores deste ano. Mesmo com risco de spoiler, ambos vivem a vida muito erotizados – os tais corpos elétricos – e, no limite, não vislumbram ‘soluções’. São corpos também suspensos, um flutuando no mar, o outro no ritmo inebriante da dança. “Entendo o que você quer dizer, e isso era essencial para a gente. Amoralizar o corpo, tirar toda moralização. O corpo não representa só o desejo e, às vezes, pode até desmistificar o desejo. O corpo do Pedro nos interessa como corpo em movimento – em cenas de dança, sexo, violência.”

E Matzembacher reflete – “Nosso olhar tem muito a ver com o contexto, a situação política do País. Não dá para desviar dessas questões.” É outra coisa que talvez seja comum com Corpo Elétrico – “São filmes sobre relacionamentos, sobre afetos”, complementa Matzembacher. “Acho que, no fundo, é o que está em discussão aqui. Nessa fase tão dura, as pessoas precisam se unir, fortalecer os afetos. O isolamento é muito doloroso.” Shico Menegat, que faz Pedro, é um achado. Sandra Dani, que faz uma participação como a avó, é uma diva gaúcha. Teatro, cinema. “Ela é maravilhosa e nós a queríamos, absolutamente, no filme. Para atrizes como a Sandra papel não tem tamanho. Pode ser uma cena, e elas dominam.” E o Shico? “Você sabia que ele nunca atuou? A partir do momento em que o descobrimos e escolhemos, o Shico passou por um trabalho longo de preparação. Mas ele nos surpreendeu. Em toda parte, o público se rende ao Shico. Ele é intenso, visceral.”

Murilo Benício e sua homenagem a Nelson Rodrigues e aos atores em 'Beijo no Asfalto'

Pode parecer esquisito, mas a reação do ator e agora diretor Murilo Benício à pergunta inevitável – por que adaptar Beijo no Asfalto? – é de perplexidade. “Não sei, eu também me pergunto por quê. Talvez seja uma consciência da importância de Nelson Rodrigues, e também do quanto é necessário mantê-lo em evidência. Mas o que eu sei, o que nós sabemos – ao seu lado está a mulher e atriz, Débora Falabella –, é que fizemos esse filme num contexto e o estreamos em outro. Como que a gente podia imaginar que essa história fosse ficar mais atual que nunca? Nesse Brasil de repente tão preconceituoso contra gays, negros, o filme, e Nelson, são vitais.”

Murilo credita ao pai a descoberta de Nelson Rodrigues. “Eu era garoto e ele já falava do Nelson. Meu pai foi fundamental para que eu me tornasse artista. Ele aguçou em mim uma sensibilidade, uma antena para tudo o que ocorria ao redor.” Ator conhecido, e apreciado, ele não se intimida de estrear com um filme desses? “Cara, acho que se tivesse pensado nisso teria ficado travado. Só percebi depois como entrei nesse projeto com a cara e a coragem, Desde o início, fui guiado por uma espécie de intuição. O filme teria de ser uma celebração da nossa profissão. Uma homenagem aos atores, ao nosso processo.”

Foi assim que o filme nasceu com seu formato particular. Tio Vânia em Nova York, de Louis Malle, foi uma referência? “Com certeza, mas também o Looking for Richard, de Al Pacino. São filmes sobre o processo de montar peças, de encontrar um personagem. Nos reunimos ao redor daquela mesa para ensaiar, mas aí o Amir Haddad, a Fernanda (Montenegro), cada um com sua imensa cultura e vivência, foram esclarecendo, contextualizando. O filme nasceu desse formato. A mesa entremeada pelas cenas da peça filmada.” “Minha sorte, além de ter esse elenco maravilhoso, foi ter um fotógrafo como o Lula Carvalho. A câmera na mão dele é uma coisa viva.

Queria que o espectador se sentisse parte do nosso processo – ele (Lula) conseguiu.” A história? Um homem é atropelado. Pede a Arandir, que o socorre, um beijo. O caso repercute na mídia. Homossexualidade? E o Lázaro Ramos no papel? “Lázaro é a pessoa mais gentil que conheço. Sabia que ele ia fazer um Arandir com camadas, só não sabia que ia ser muito melhor que sonhei.”

Jorge Furtado e a atualidade política de ‘Rasga Coração’

Há dez, 12 anos Jorge Furtado vinha acalentando o sonho de filmar a peça de Oduvaldo Vianna Filho, Rasga Coração. “O texto me impressionou muito, aquela coisa do conflito de gerações, a relação entre pai e filho, mas, ao mesmo tempo em que era apaixonado, eu também me dava conta de que o texto estava defasado e não poderia ser feito no contexto de um governo de esquerda, do PT.” Mas em 2013, com todos aqueles protestos de rua, o texto voltou com força no imaginário dele.

“Comecei a pensar de novo que seria viável, mas eu não queria reproduzir o contexto em que a peça surgiu. Queria fazer o filme atual. Mal sabia eu que seria atropelado pela realidade. Fiz um filme num contexto, passei na Mostra e o debati com o público. Aí veio a eleição e o filme estreia agora num outro Brasil de direita. Sinceramente, acho que ficou melhor.” O repórter concorda, mas pode um filme mudar em tão pouco tempo, coisa de um mês? “Na verdade, não é o filme que muda, mas o olhar sobre ele. Sempre me interessou muito falar sobre o conflito geracional entre Manguari e o filho na peça do Vianninha (como o dramaturgo era chamado). Só que o conflito entre pai e filho virou esse conflito político que rachou o Brasil na eleição. Sem fazer esforço nenhum, acho que o filme ganhou outro significado.”

É interessante como Rasga Coração e Beijo no Asfalto, outra ficção brasileira que estreia nesta quinta, têm origem no teatro. E também que Rasga Coração e Tinta Bruta sejam produções gaúchas. E todos esses filmes querem revelar o Brasil atual, com todas as suas contradições, os seus preconceitos. Rasga Coração foi escrita por Vianninha entre 1972 e 74, expressando em parte o conflito entre o dramaturgo e seu pai. “O filme é sobre essa geração que chegou à vida adulta em 2013. Seus pais, a geração anterior, tinham a sensação de ter vencido todas as guerras. Pela democracia, pela anistia, pela Constituinte, mas para os filhos eles não fizeram o bastante, tal é o conflito.”

Manguari tem um discurso revolucionário, mas é funcionário público. O filho tem um comportamento libertário, mas não assume suas responsabilidades. Agridem-se o tempo todo. “Drica Moraes, a mãe, fica no meio dos dois. É uma atriz genial, das melhores do Brasil. Com o Marco (Ricca, o Manguari) já tinha trabalhado. Sei o quanto é bom. A surpresa foi o Chay (Suede, o filho). Com os três, o filme cresceu muito.”

Entram em cartaz nesta quinta, 6, quatro novos filmes brasileiros – um documentário, Henfil e três ficções. Duas delas são adaptações de teatro – Rasga Coração, de Jorge Furtado, da peça de Oduvaldo Vianna Filho, e O Beijo no Asfalto, de Murilo Benício, baseado em Nelson Rodrigues. A terceira é Tinta Bruta, da dupla Márcio Reolon/Filipe Matzembacher, que recebeu dois prêmios importantes no Festival de Berlim, em fevereiro, o Teddy Bear, o chamado Urso de Ouro gay, e o prêmio das associações europeias de cinema de arte e ensaio.

Diversas entre si, essas ficções colocam na tela diferentes retratos do Brasil. Rasga Coração transforma o conflito político em familiar, pai e filho divididos por suas crenças. O Beijo no Asfalto aborda o preconceito – a peça foi publicada em 1960, há 58 anos, portanto. Decorrido todo esse tempo, é como se o mundo tivesse feito um looping e voltado ao mesmo ponto/momento em que o dramaturgo escreveu seu texto. Apesar das leis em defesa da cultura da diversidade, o ódio e a violência contra gays estão mais fortes que nunca. É o tema também de Tinta Bruta – a degradação das cidades, a solidão urbana. É Porto Alegre, mas poderia ser São Paulo. O Brasil (real) pulsa nessas ficções.

Pedro.Shico Menegat é o garoto neon, que faz performances eróticas na internet. Foto: Vitrine Filmes Foto:

‘Tinta Bruta’, um corpo elétrico e sua necessidade de afeto

Filipe Matzembacher trabalha em dupla com Márcio Reolon. Com seu longa anterior, Beira-Mar, eles foram à Berlinale. Fizeram sucesso. Com Tinta Bruta, retornaram ao Festival de Berlim, em fevereiro, e dessa vez foi a consagração – Urso gay, prêmio da associação europeia de cinemas de arte. “Foram prêmios muito bacanas, porque outorgados por júris bem diversos. O da associação é formado por distribuidores e exibidores de filmes de arte/ensaio. Isso já abre uma porta muito interessante para o filme da gente entrar nesse circuito e passar na Europa toda”, diz Matzembacher.

Tinta Bruta é sobre um garoto, Pedro, que sofre um processo criminal. Só isso bastaria, quem sabe, para desestabilizá-lo, mas a irmã está indo embora e ele vai ficar sozinho. Como o codinome de Garoto Neon, Pedro faz performances eróticas na internet. E descobre que existe outro ‘garoto neon’. “O filme começou a nascer para a gente de uma constatação”, conta Matzembacher. “Porto Alegre foi ficando cada vez mais uma cidade degradada, distante, violenta. As pessoas foram se isolando, ficando solitárias. Começaram a partir. Nós, que ficamos, ao ver todos esses amigos se indo, começamos a pensar no assunto. O filme foi se construindo.” A questão da internet? “Para a geração da gente é muito comum. Está todo mundo ligado nas redes. Começamos a pesquisar opções de lazer, de relacionamentos. E chegamos nesses websites que são bastante comuns na rede.”

Embora seja um personagem fictício, Pedro, o garoto neon, internaliza uma violência muito forte contra o outro, o diferente. “O Pedro não quer ser vítima, e por isso a violência vira uma via de mão dupla. Não é uma coisa isolada, pontual. O Brasil está muito violento. Há muito preconceito de classe, de gênero, de raça. Esse país virou uma loucura.” Por isso mesmo a acolhida em Berlim foi tão emocionante. “Encontramos um público muito interessado naquilo que estamos mostrando. A resposta foi sempre muito boa em todas as sessões. E o interesse não era só pela forma, era pelos personagens também. Claro que as coisas são indissociáveis, mas esse foi um filme que a gente pensou muito como cinema. Nasceu com a proposta de ousar na forma. Testamos muita coisa, mas era importante que a forma não ofuscasse o personagem. A angústia do Pedro é geracional, é muito viva, muito real.”

O repórter arrisca uma comparação. Apesar de todas as diferenças, Pedro não deixa de ser um outro corpo elétrico, como o do protagonista do longa de Marcelo Caetano que foi um dos melhores filmes de 2017, como Tinta Bruta, no finalzinho de 2018, está sendo um dos melhores deste ano. Mesmo com risco de spoiler, ambos vivem a vida muito erotizados – os tais corpos elétricos – e, no limite, não vislumbram ‘soluções’. São corpos também suspensos, um flutuando no mar, o outro no ritmo inebriante da dança. “Entendo o que você quer dizer, e isso era essencial para a gente. Amoralizar o corpo, tirar toda moralização. O corpo não representa só o desejo e, às vezes, pode até desmistificar o desejo. O corpo do Pedro nos interessa como corpo em movimento – em cenas de dança, sexo, violência.”

E Matzembacher reflete – “Nosso olhar tem muito a ver com o contexto, a situação política do País. Não dá para desviar dessas questões.” É outra coisa que talvez seja comum com Corpo Elétrico – “São filmes sobre relacionamentos, sobre afetos”, complementa Matzembacher. “Acho que, no fundo, é o que está em discussão aqui. Nessa fase tão dura, as pessoas precisam se unir, fortalecer os afetos. O isolamento é muito doloroso.” Shico Menegat, que faz Pedro, é um achado. Sandra Dani, que faz uma participação como a avó, é uma diva gaúcha. Teatro, cinema. “Ela é maravilhosa e nós a queríamos, absolutamente, no filme. Para atrizes como a Sandra papel não tem tamanho. Pode ser uma cena, e elas dominam.” E o Shico? “Você sabia que ele nunca atuou? A partir do momento em que o descobrimos e escolhemos, o Shico passou por um trabalho longo de preparação. Mas ele nos surpreendeu. Em toda parte, o público se rende ao Shico. Ele é intenso, visceral.”

Murilo Benício e sua homenagem a Nelson Rodrigues e aos atores em 'Beijo no Asfalto'

Pode parecer esquisito, mas a reação do ator e agora diretor Murilo Benício à pergunta inevitável – por que adaptar Beijo no Asfalto? – é de perplexidade. “Não sei, eu também me pergunto por quê. Talvez seja uma consciência da importância de Nelson Rodrigues, e também do quanto é necessário mantê-lo em evidência. Mas o que eu sei, o que nós sabemos – ao seu lado está a mulher e atriz, Débora Falabella –, é que fizemos esse filme num contexto e o estreamos em outro. Como que a gente podia imaginar que essa história fosse ficar mais atual que nunca? Nesse Brasil de repente tão preconceituoso contra gays, negros, o filme, e Nelson, são vitais.”

Murilo credita ao pai a descoberta de Nelson Rodrigues. “Eu era garoto e ele já falava do Nelson. Meu pai foi fundamental para que eu me tornasse artista. Ele aguçou em mim uma sensibilidade, uma antena para tudo o que ocorria ao redor.” Ator conhecido, e apreciado, ele não se intimida de estrear com um filme desses? “Cara, acho que se tivesse pensado nisso teria ficado travado. Só percebi depois como entrei nesse projeto com a cara e a coragem, Desde o início, fui guiado por uma espécie de intuição. O filme teria de ser uma celebração da nossa profissão. Uma homenagem aos atores, ao nosso processo.”

Foi assim que o filme nasceu com seu formato particular. Tio Vânia em Nova York, de Louis Malle, foi uma referência? “Com certeza, mas também o Looking for Richard, de Al Pacino. São filmes sobre o processo de montar peças, de encontrar um personagem. Nos reunimos ao redor daquela mesa para ensaiar, mas aí o Amir Haddad, a Fernanda (Montenegro), cada um com sua imensa cultura e vivência, foram esclarecendo, contextualizando. O filme nasceu desse formato. A mesa entremeada pelas cenas da peça filmada.” “Minha sorte, além de ter esse elenco maravilhoso, foi ter um fotógrafo como o Lula Carvalho. A câmera na mão dele é uma coisa viva.

Queria que o espectador se sentisse parte do nosso processo – ele (Lula) conseguiu.” A história? Um homem é atropelado. Pede a Arandir, que o socorre, um beijo. O caso repercute na mídia. Homossexualidade? E o Lázaro Ramos no papel? “Lázaro é a pessoa mais gentil que conheço. Sabia que ele ia fazer um Arandir com camadas, só não sabia que ia ser muito melhor que sonhei.”

Jorge Furtado e a atualidade política de ‘Rasga Coração’

Há dez, 12 anos Jorge Furtado vinha acalentando o sonho de filmar a peça de Oduvaldo Vianna Filho, Rasga Coração. “O texto me impressionou muito, aquela coisa do conflito de gerações, a relação entre pai e filho, mas, ao mesmo tempo em que era apaixonado, eu também me dava conta de que o texto estava defasado e não poderia ser feito no contexto de um governo de esquerda, do PT.” Mas em 2013, com todos aqueles protestos de rua, o texto voltou com força no imaginário dele.

“Comecei a pensar de novo que seria viável, mas eu não queria reproduzir o contexto em que a peça surgiu. Queria fazer o filme atual. Mal sabia eu que seria atropelado pela realidade. Fiz um filme num contexto, passei na Mostra e o debati com o público. Aí veio a eleição e o filme estreia agora num outro Brasil de direita. Sinceramente, acho que ficou melhor.” O repórter concorda, mas pode um filme mudar em tão pouco tempo, coisa de um mês? “Na verdade, não é o filme que muda, mas o olhar sobre ele. Sempre me interessou muito falar sobre o conflito geracional entre Manguari e o filho na peça do Vianninha (como o dramaturgo era chamado). Só que o conflito entre pai e filho virou esse conflito político que rachou o Brasil na eleição. Sem fazer esforço nenhum, acho que o filme ganhou outro significado.”

É interessante como Rasga Coração e Beijo no Asfalto, outra ficção brasileira que estreia nesta quinta, têm origem no teatro. E também que Rasga Coração e Tinta Bruta sejam produções gaúchas. E todos esses filmes querem revelar o Brasil atual, com todas as suas contradições, os seus preconceitos. Rasga Coração foi escrita por Vianninha entre 1972 e 74, expressando em parte o conflito entre o dramaturgo e seu pai. “O filme é sobre essa geração que chegou à vida adulta em 2013. Seus pais, a geração anterior, tinham a sensação de ter vencido todas as guerras. Pela democracia, pela anistia, pela Constituinte, mas para os filhos eles não fizeram o bastante, tal é o conflito.”

Manguari tem um discurso revolucionário, mas é funcionário público. O filho tem um comportamento libertário, mas não assume suas responsabilidades. Agridem-se o tempo todo. “Drica Moraes, a mãe, fica no meio dos dois. É uma atriz genial, das melhores do Brasil. Com o Marco (Ricca, o Manguari) já tinha trabalhado. Sei o quanto é bom. A surpresa foi o Chay (Suede, o filho). Com os três, o filme cresceu muito.”

Entram em cartaz nesta quinta, 6, quatro novos filmes brasileiros – um documentário, Henfil e três ficções. Duas delas são adaptações de teatro – Rasga Coração, de Jorge Furtado, da peça de Oduvaldo Vianna Filho, e O Beijo no Asfalto, de Murilo Benício, baseado em Nelson Rodrigues. A terceira é Tinta Bruta, da dupla Márcio Reolon/Filipe Matzembacher, que recebeu dois prêmios importantes no Festival de Berlim, em fevereiro, o Teddy Bear, o chamado Urso de Ouro gay, e o prêmio das associações europeias de cinema de arte e ensaio.

Diversas entre si, essas ficções colocam na tela diferentes retratos do Brasil. Rasga Coração transforma o conflito político em familiar, pai e filho divididos por suas crenças. O Beijo no Asfalto aborda o preconceito – a peça foi publicada em 1960, há 58 anos, portanto. Decorrido todo esse tempo, é como se o mundo tivesse feito um looping e voltado ao mesmo ponto/momento em que o dramaturgo escreveu seu texto. Apesar das leis em defesa da cultura da diversidade, o ódio e a violência contra gays estão mais fortes que nunca. É o tema também de Tinta Bruta – a degradação das cidades, a solidão urbana. É Porto Alegre, mas poderia ser São Paulo. O Brasil (real) pulsa nessas ficções.

Pedro.Shico Menegat é o garoto neon, que faz performances eróticas na internet. Foto: Vitrine Filmes Foto:

‘Tinta Bruta’, um corpo elétrico e sua necessidade de afeto

Filipe Matzembacher trabalha em dupla com Márcio Reolon. Com seu longa anterior, Beira-Mar, eles foram à Berlinale. Fizeram sucesso. Com Tinta Bruta, retornaram ao Festival de Berlim, em fevereiro, e dessa vez foi a consagração – Urso gay, prêmio da associação europeia de cinemas de arte. “Foram prêmios muito bacanas, porque outorgados por júris bem diversos. O da associação é formado por distribuidores e exibidores de filmes de arte/ensaio. Isso já abre uma porta muito interessante para o filme da gente entrar nesse circuito e passar na Europa toda”, diz Matzembacher.

Tinta Bruta é sobre um garoto, Pedro, que sofre um processo criminal. Só isso bastaria, quem sabe, para desestabilizá-lo, mas a irmã está indo embora e ele vai ficar sozinho. Como o codinome de Garoto Neon, Pedro faz performances eróticas na internet. E descobre que existe outro ‘garoto neon’. “O filme começou a nascer para a gente de uma constatação”, conta Matzembacher. “Porto Alegre foi ficando cada vez mais uma cidade degradada, distante, violenta. As pessoas foram se isolando, ficando solitárias. Começaram a partir. Nós, que ficamos, ao ver todos esses amigos se indo, começamos a pensar no assunto. O filme foi se construindo.” A questão da internet? “Para a geração da gente é muito comum. Está todo mundo ligado nas redes. Começamos a pesquisar opções de lazer, de relacionamentos. E chegamos nesses websites que são bastante comuns na rede.”

Embora seja um personagem fictício, Pedro, o garoto neon, internaliza uma violência muito forte contra o outro, o diferente. “O Pedro não quer ser vítima, e por isso a violência vira uma via de mão dupla. Não é uma coisa isolada, pontual. O Brasil está muito violento. Há muito preconceito de classe, de gênero, de raça. Esse país virou uma loucura.” Por isso mesmo a acolhida em Berlim foi tão emocionante. “Encontramos um público muito interessado naquilo que estamos mostrando. A resposta foi sempre muito boa em todas as sessões. E o interesse não era só pela forma, era pelos personagens também. Claro que as coisas são indissociáveis, mas esse foi um filme que a gente pensou muito como cinema. Nasceu com a proposta de ousar na forma. Testamos muita coisa, mas era importante que a forma não ofuscasse o personagem. A angústia do Pedro é geracional, é muito viva, muito real.”

O repórter arrisca uma comparação. Apesar de todas as diferenças, Pedro não deixa de ser um outro corpo elétrico, como o do protagonista do longa de Marcelo Caetano que foi um dos melhores filmes de 2017, como Tinta Bruta, no finalzinho de 2018, está sendo um dos melhores deste ano. Mesmo com risco de spoiler, ambos vivem a vida muito erotizados – os tais corpos elétricos – e, no limite, não vislumbram ‘soluções’. São corpos também suspensos, um flutuando no mar, o outro no ritmo inebriante da dança. “Entendo o que você quer dizer, e isso era essencial para a gente. Amoralizar o corpo, tirar toda moralização. O corpo não representa só o desejo e, às vezes, pode até desmistificar o desejo. O corpo do Pedro nos interessa como corpo em movimento – em cenas de dança, sexo, violência.”

E Matzembacher reflete – “Nosso olhar tem muito a ver com o contexto, a situação política do País. Não dá para desviar dessas questões.” É outra coisa que talvez seja comum com Corpo Elétrico – “São filmes sobre relacionamentos, sobre afetos”, complementa Matzembacher. “Acho que, no fundo, é o que está em discussão aqui. Nessa fase tão dura, as pessoas precisam se unir, fortalecer os afetos. O isolamento é muito doloroso.” Shico Menegat, que faz Pedro, é um achado. Sandra Dani, que faz uma participação como a avó, é uma diva gaúcha. Teatro, cinema. “Ela é maravilhosa e nós a queríamos, absolutamente, no filme. Para atrizes como a Sandra papel não tem tamanho. Pode ser uma cena, e elas dominam.” E o Shico? “Você sabia que ele nunca atuou? A partir do momento em que o descobrimos e escolhemos, o Shico passou por um trabalho longo de preparação. Mas ele nos surpreendeu. Em toda parte, o público se rende ao Shico. Ele é intenso, visceral.”

Murilo Benício e sua homenagem a Nelson Rodrigues e aos atores em 'Beijo no Asfalto'

Pode parecer esquisito, mas a reação do ator e agora diretor Murilo Benício à pergunta inevitável – por que adaptar Beijo no Asfalto? – é de perplexidade. “Não sei, eu também me pergunto por quê. Talvez seja uma consciência da importância de Nelson Rodrigues, e também do quanto é necessário mantê-lo em evidência. Mas o que eu sei, o que nós sabemos – ao seu lado está a mulher e atriz, Débora Falabella –, é que fizemos esse filme num contexto e o estreamos em outro. Como que a gente podia imaginar que essa história fosse ficar mais atual que nunca? Nesse Brasil de repente tão preconceituoso contra gays, negros, o filme, e Nelson, são vitais.”

Murilo credita ao pai a descoberta de Nelson Rodrigues. “Eu era garoto e ele já falava do Nelson. Meu pai foi fundamental para que eu me tornasse artista. Ele aguçou em mim uma sensibilidade, uma antena para tudo o que ocorria ao redor.” Ator conhecido, e apreciado, ele não se intimida de estrear com um filme desses? “Cara, acho que se tivesse pensado nisso teria ficado travado. Só percebi depois como entrei nesse projeto com a cara e a coragem, Desde o início, fui guiado por uma espécie de intuição. O filme teria de ser uma celebração da nossa profissão. Uma homenagem aos atores, ao nosso processo.”

Foi assim que o filme nasceu com seu formato particular. Tio Vânia em Nova York, de Louis Malle, foi uma referência? “Com certeza, mas também o Looking for Richard, de Al Pacino. São filmes sobre o processo de montar peças, de encontrar um personagem. Nos reunimos ao redor daquela mesa para ensaiar, mas aí o Amir Haddad, a Fernanda (Montenegro), cada um com sua imensa cultura e vivência, foram esclarecendo, contextualizando. O filme nasceu desse formato. A mesa entremeada pelas cenas da peça filmada.” “Minha sorte, além de ter esse elenco maravilhoso, foi ter um fotógrafo como o Lula Carvalho. A câmera na mão dele é uma coisa viva.

Queria que o espectador se sentisse parte do nosso processo – ele (Lula) conseguiu.” A história? Um homem é atropelado. Pede a Arandir, que o socorre, um beijo. O caso repercute na mídia. Homossexualidade? E o Lázaro Ramos no papel? “Lázaro é a pessoa mais gentil que conheço. Sabia que ele ia fazer um Arandir com camadas, só não sabia que ia ser muito melhor que sonhei.”

Jorge Furtado e a atualidade política de ‘Rasga Coração’

Há dez, 12 anos Jorge Furtado vinha acalentando o sonho de filmar a peça de Oduvaldo Vianna Filho, Rasga Coração. “O texto me impressionou muito, aquela coisa do conflito de gerações, a relação entre pai e filho, mas, ao mesmo tempo em que era apaixonado, eu também me dava conta de que o texto estava defasado e não poderia ser feito no contexto de um governo de esquerda, do PT.” Mas em 2013, com todos aqueles protestos de rua, o texto voltou com força no imaginário dele.

“Comecei a pensar de novo que seria viável, mas eu não queria reproduzir o contexto em que a peça surgiu. Queria fazer o filme atual. Mal sabia eu que seria atropelado pela realidade. Fiz um filme num contexto, passei na Mostra e o debati com o público. Aí veio a eleição e o filme estreia agora num outro Brasil de direita. Sinceramente, acho que ficou melhor.” O repórter concorda, mas pode um filme mudar em tão pouco tempo, coisa de um mês? “Na verdade, não é o filme que muda, mas o olhar sobre ele. Sempre me interessou muito falar sobre o conflito geracional entre Manguari e o filho na peça do Vianninha (como o dramaturgo era chamado). Só que o conflito entre pai e filho virou esse conflito político que rachou o Brasil na eleição. Sem fazer esforço nenhum, acho que o filme ganhou outro significado.”

É interessante como Rasga Coração e Beijo no Asfalto, outra ficção brasileira que estreia nesta quinta, têm origem no teatro. E também que Rasga Coração e Tinta Bruta sejam produções gaúchas. E todos esses filmes querem revelar o Brasil atual, com todas as suas contradições, os seus preconceitos. Rasga Coração foi escrita por Vianninha entre 1972 e 74, expressando em parte o conflito entre o dramaturgo e seu pai. “O filme é sobre essa geração que chegou à vida adulta em 2013. Seus pais, a geração anterior, tinham a sensação de ter vencido todas as guerras. Pela democracia, pela anistia, pela Constituinte, mas para os filhos eles não fizeram o bastante, tal é o conflito.”

Manguari tem um discurso revolucionário, mas é funcionário público. O filho tem um comportamento libertário, mas não assume suas responsabilidades. Agridem-se o tempo todo. “Drica Moraes, a mãe, fica no meio dos dois. É uma atriz genial, das melhores do Brasil. Com o Marco (Ricca, o Manguari) já tinha trabalhado. Sei o quanto é bom. A surpresa foi o Chay (Suede, o filho). Com os três, o filme cresceu muito.”

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