'Todos os Mortos' é um retrato do Brasil pós abolição da escravatura


Filme, que estreia nesta quinta (10), tem abordagem intimista e elementos contemporâneos para explicar o racismo estrutural no País

Por Luiz Carlos Merten

Tudo começou há sete, oito anos. Inspirado em três recortes de jornais, Caetano Gotardo começou a escrever o que se tornaria Todos os Mortos. O amigo Marco Dutra uniu-se a ele, e a história começou a desenhar-se. O Brasil, dez anos após a libertação dos escravizados. Os recortes coletados por Gotardo somaram-se a uma preocupação de Dutra, que queria refletir sobre duas famílias atravessando um momento de mudança. O que restou da patriarcal família Soares, que perdeu a fortuna? E a família Nascimento, formada pela ex-escravizada Iná e o filho. Qual é seu papel na nova/velha estrutura social brasileira? “Já havia a vontade de discutir a escravidão e o racismo como um problema estrutural brasileiro, mas esse debate foi-se intensificando durante todo esse tempo. Mesmo assim, não poderíamos imaginar que o filme chegaria em meio a uma pandemia e a um movimento que se tornou tão forte como o Vidas Negras Importam”, reflete Gotardo.

Mulheres de duas famílias conduzem a trama de 'Todos os Mortos' num Brasil dez anos após a abolição do trabalho escravo Foto: Hélène Louvart

Todos os Mortos estreia nesta quinta, 10. Teve a sua Première no Festival de Berlim, em fevereiro. Integrou a mostra Panorama. A próxima exibição, em outro festival – na China –, ocorreu somente seis meses depois, em agosto. Todos os Mortos participou de muitos festivais, e curiosamente foram todos, ou quase todos, presenciais, mas com participação reduzida de diretores. Os festivais remotos estruturaram-se dessa maneira, previam debates online.

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Os presenciais – na Europa – só tiveram a participação de diretores locais, os debates remotos terminaram não ocorrendo. Marco Dutra e Caetano Gotardo conversam com o Estadão pelo Zoom. Dutra está radicado em Johannesburgo com o companheiro, Gotardo, em São Paulo. De forma remota, finalizaram, durante a pandemia a série Noturnos, que investiga o lado B, como mestre de horror, do poeta Vinicius de Moraes. O trabalho tem ajudado a manter a sanidade, face a tanta incerteza.

Já havia uma personagem branca e outra negra, mas as tensões sociais e raciais de As Boas Maneiras, que Dutra codirigiu com Juliana Rojas, eram certamente diferentes das de Todos os Mortos. As Boas Maneiras nasceu de um sonho que ele teve – as duas mulheres, a branca e a preta, e o bebê monstruoso. Todos os Mortos veio por outra via. A matriarca branca e a filha que chama a ex-escravizada para realizar um rito afro, na expectativa de melhorar a condição física de Dona Isabel. A outra filha é freira, então há todo um cuidado para que o rito africano não colida com a tradição cristã. A casa passa a ser habitada por fantasmas. E tudo se desenrola numa São Paulo intemporal, com resquícios de modernidade.

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À medida que a história se tornava complexa no imaginário dos diretores (e roteiristas), com personagens representativos de um mundo em crise, Dutra e Gotardo sentiram a necessidade de ampliar o círculo de colaboradores. Foram atrás de gente especializada como a escritora e antropóloga Goli Guerreiro, que elaborou o conceito da Terceira Diáspora, a partir das trocas culturais na internet. “O filme situa-se num momento específico, mas é habitado por questões que atravessam o tempo. Estamos falando de um Brasil de mais de 100 anos, mas numa perspectiva contemporânea, para tentar entender como a estrutura definida com o fim da escravidão está presente em nossa sociedade atual”, diz Gotardo. A questão no centro de Todos os Mortos não é só a negritude, mas também o que é ser branco nesse mundo.

Outro colaborador importante foi Salloma Salomão, que terminou por criar a trilha. “Com ele discutimos muito essa ideia de que o Brasil, naquele momento, teve a oportunidade de se organizar diferentemente, mas perdeu a chance e não mudou a estrutura”, conta Dutra. “E é por isso que o filme, ao olhar o passado pela perspectiva do presente, opera cruzamentos de tempo. Temos muitos personagens em cena, e a preocupação é que eles tivessem uma vida e não fossem apenas porta-vozes para determinados temas”, acrescenta Gotardo. A abordagem é intimista, familiar. “Salloma Salomão tem essa visão muito clara de que a hierarquia racial que existiu entre a Colônia e o Império não foi totalmente preservada, mas elementos da escravidão entraram na intimidade das famílias brasileiras e criaram esse racismo esatrutural. É sobre isso que estamos tratando”, conta Gotardo.

Em uma das cenas de 'Todos os Mortos', a matriarca branca e a filha chama a ex-escravizada para realizar um rito afro Foto: Hélène Louvart
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Desde o início os diretores pensavam na força das personagens femininas. Montaram uma equipe predominantemente formada por mulheres – a produtora Sara Silveira, a diretora de fotografia Hélène Louvart – de A Vida Invisível -, as atrizes. Em Berlim, Leonor Silveira, a mítica intérprete de grandes filmes de Manoel de Oliveira, já destacara o que para ela era uma marca muito forte dos 'meninos'. “Eles sempre tiveram consciência do lugar de fala deles – homens, brancos -, e como consequência se posicionaram no lugar de escuta.”

Todas as Mortes nasceu de um diálogo muito forte de toda a equipe, todo mundo querendo dar sua contribuição. Soma-se a M-8, Quando a Morte Socorre a Vida, de Jeferson De, também em cartaz nos cinemas. São filmes que espelham o Brasil da desigualdade, do racismo, e da violência.

Tudo começou há sete, oito anos. Inspirado em três recortes de jornais, Caetano Gotardo começou a escrever o que se tornaria Todos os Mortos. O amigo Marco Dutra uniu-se a ele, e a história começou a desenhar-se. O Brasil, dez anos após a libertação dos escravizados. Os recortes coletados por Gotardo somaram-se a uma preocupação de Dutra, que queria refletir sobre duas famílias atravessando um momento de mudança. O que restou da patriarcal família Soares, que perdeu a fortuna? E a família Nascimento, formada pela ex-escravizada Iná e o filho. Qual é seu papel na nova/velha estrutura social brasileira? “Já havia a vontade de discutir a escravidão e o racismo como um problema estrutural brasileiro, mas esse debate foi-se intensificando durante todo esse tempo. Mesmo assim, não poderíamos imaginar que o filme chegaria em meio a uma pandemia e a um movimento que se tornou tão forte como o Vidas Negras Importam”, reflete Gotardo.

Mulheres de duas famílias conduzem a trama de 'Todos os Mortos' num Brasil dez anos após a abolição do trabalho escravo Foto: Hélène Louvart

Todos os Mortos estreia nesta quinta, 10. Teve a sua Première no Festival de Berlim, em fevereiro. Integrou a mostra Panorama. A próxima exibição, em outro festival – na China –, ocorreu somente seis meses depois, em agosto. Todos os Mortos participou de muitos festivais, e curiosamente foram todos, ou quase todos, presenciais, mas com participação reduzida de diretores. Os festivais remotos estruturaram-se dessa maneira, previam debates online.

Os presenciais – na Europa – só tiveram a participação de diretores locais, os debates remotos terminaram não ocorrendo. Marco Dutra e Caetano Gotardo conversam com o Estadão pelo Zoom. Dutra está radicado em Johannesburgo com o companheiro, Gotardo, em São Paulo. De forma remota, finalizaram, durante a pandemia a série Noturnos, que investiga o lado B, como mestre de horror, do poeta Vinicius de Moraes. O trabalho tem ajudado a manter a sanidade, face a tanta incerteza.

Já havia uma personagem branca e outra negra, mas as tensões sociais e raciais de As Boas Maneiras, que Dutra codirigiu com Juliana Rojas, eram certamente diferentes das de Todos os Mortos. As Boas Maneiras nasceu de um sonho que ele teve – as duas mulheres, a branca e a preta, e o bebê monstruoso. Todos os Mortos veio por outra via. A matriarca branca e a filha que chama a ex-escravizada para realizar um rito afro, na expectativa de melhorar a condição física de Dona Isabel. A outra filha é freira, então há todo um cuidado para que o rito africano não colida com a tradição cristã. A casa passa a ser habitada por fantasmas. E tudo se desenrola numa São Paulo intemporal, com resquícios de modernidade.

À medida que a história se tornava complexa no imaginário dos diretores (e roteiristas), com personagens representativos de um mundo em crise, Dutra e Gotardo sentiram a necessidade de ampliar o círculo de colaboradores. Foram atrás de gente especializada como a escritora e antropóloga Goli Guerreiro, que elaborou o conceito da Terceira Diáspora, a partir das trocas culturais na internet. “O filme situa-se num momento específico, mas é habitado por questões que atravessam o tempo. Estamos falando de um Brasil de mais de 100 anos, mas numa perspectiva contemporânea, para tentar entender como a estrutura definida com o fim da escravidão está presente em nossa sociedade atual”, diz Gotardo. A questão no centro de Todos os Mortos não é só a negritude, mas também o que é ser branco nesse mundo.

Outro colaborador importante foi Salloma Salomão, que terminou por criar a trilha. “Com ele discutimos muito essa ideia de que o Brasil, naquele momento, teve a oportunidade de se organizar diferentemente, mas perdeu a chance e não mudou a estrutura”, conta Dutra. “E é por isso que o filme, ao olhar o passado pela perspectiva do presente, opera cruzamentos de tempo. Temos muitos personagens em cena, e a preocupação é que eles tivessem uma vida e não fossem apenas porta-vozes para determinados temas”, acrescenta Gotardo. A abordagem é intimista, familiar. “Salloma Salomão tem essa visão muito clara de que a hierarquia racial que existiu entre a Colônia e o Império não foi totalmente preservada, mas elementos da escravidão entraram na intimidade das famílias brasileiras e criaram esse racismo esatrutural. É sobre isso que estamos tratando”, conta Gotardo.

Em uma das cenas de 'Todos os Mortos', a matriarca branca e a filha chama a ex-escravizada para realizar um rito afro Foto: Hélène Louvart

Desde o início os diretores pensavam na força das personagens femininas. Montaram uma equipe predominantemente formada por mulheres – a produtora Sara Silveira, a diretora de fotografia Hélène Louvart – de A Vida Invisível -, as atrizes. Em Berlim, Leonor Silveira, a mítica intérprete de grandes filmes de Manoel de Oliveira, já destacara o que para ela era uma marca muito forte dos 'meninos'. “Eles sempre tiveram consciência do lugar de fala deles – homens, brancos -, e como consequência se posicionaram no lugar de escuta.”

Todas as Mortes nasceu de um diálogo muito forte de toda a equipe, todo mundo querendo dar sua contribuição. Soma-se a M-8, Quando a Morte Socorre a Vida, de Jeferson De, também em cartaz nos cinemas. São filmes que espelham o Brasil da desigualdade, do racismo, e da violência.

Tudo começou há sete, oito anos. Inspirado em três recortes de jornais, Caetano Gotardo começou a escrever o que se tornaria Todos os Mortos. O amigo Marco Dutra uniu-se a ele, e a história começou a desenhar-se. O Brasil, dez anos após a libertação dos escravizados. Os recortes coletados por Gotardo somaram-se a uma preocupação de Dutra, que queria refletir sobre duas famílias atravessando um momento de mudança. O que restou da patriarcal família Soares, que perdeu a fortuna? E a família Nascimento, formada pela ex-escravizada Iná e o filho. Qual é seu papel na nova/velha estrutura social brasileira? “Já havia a vontade de discutir a escravidão e o racismo como um problema estrutural brasileiro, mas esse debate foi-se intensificando durante todo esse tempo. Mesmo assim, não poderíamos imaginar que o filme chegaria em meio a uma pandemia e a um movimento que se tornou tão forte como o Vidas Negras Importam”, reflete Gotardo.

Mulheres de duas famílias conduzem a trama de 'Todos os Mortos' num Brasil dez anos após a abolição do trabalho escravo Foto: Hélène Louvart

Todos os Mortos estreia nesta quinta, 10. Teve a sua Première no Festival de Berlim, em fevereiro. Integrou a mostra Panorama. A próxima exibição, em outro festival – na China –, ocorreu somente seis meses depois, em agosto. Todos os Mortos participou de muitos festivais, e curiosamente foram todos, ou quase todos, presenciais, mas com participação reduzida de diretores. Os festivais remotos estruturaram-se dessa maneira, previam debates online.

Os presenciais – na Europa – só tiveram a participação de diretores locais, os debates remotos terminaram não ocorrendo. Marco Dutra e Caetano Gotardo conversam com o Estadão pelo Zoom. Dutra está radicado em Johannesburgo com o companheiro, Gotardo, em São Paulo. De forma remota, finalizaram, durante a pandemia a série Noturnos, que investiga o lado B, como mestre de horror, do poeta Vinicius de Moraes. O trabalho tem ajudado a manter a sanidade, face a tanta incerteza.

Já havia uma personagem branca e outra negra, mas as tensões sociais e raciais de As Boas Maneiras, que Dutra codirigiu com Juliana Rojas, eram certamente diferentes das de Todos os Mortos. As Boas Maneiras nasceu de um sonho que ele teve – as duas mulheres, a branca e a preta, e o bebê monstruoso. Todos os Mortos veio por outra via. A matriarca branca e a filha que chama a ex-escravizada para realizar um rito afro, na expectativa de melhorar a condição física de Dona Isabel. A outra filha é freira, então há todo um cuidado para que o rito africano não colida com a tradição cristã. A casa passa a ser habitada por fantasmas. E tudo se desenrola numa São Paulo intemporal, com resquícios de modernidade.

À medida que a história se tornava complexa no imaginário dos diretores (e roteiristas), com personagens representativos de um mundo em crise, Dutra e Gotardo sentiram a necessidade de ampliar o círculo de colaboradores. Foram atrás de gente especializada como a escritora e antropóloga Goli Guerreiro, que elaborou o conceito da Terceira Diáspora, a partir das trocas culturais na internet. “O filme situa-se num momento específico, mas é habitado por questões que atravessam o tempo. Estamos falando de um Brasil de mais de 100 anos, mas numa perspectiva contemporânea, para tentar entender como a estrutura definida com o fim da escravidão está presente em nossa sociedade atual”, diz Gotardo. A questão no centro de Todos os Mortos não é só a negritude, mas também o que é ser branco nesse mundo.

Outro colaborador importante foi Salloma Salomão, que terminou por criar a trilha. “Com ele discutimos muito essa ideia de que o Brasil, naquele momento, teve a oportunidade de se organizar diferentemente, mas perdeu a chance e não mudou a estrutura”, conta Dutra. “E é por isso que o filme, ao olhar o passado pela perspectiva do presente, opera cruzamentos de tempo. Temos muitos personagens em cena, e a preocupação é que eles tivessem uma vida e não fossem apenas porta-vozes para determinados temas”, acrescenta Gotardo. A abordagem é intimista, familiar. “Salloma Salomão tem essa visão muito clara de que a hierarquia racial que existiu entre a Colônia e o Império não foi totalmente preservada, mas elementos da escravidão entraram na intimidade das famílias brasileiras e criaram esse racismo esatrutural. É sobre isso que estamos tratando”, conta Gotardo.

Em uma das cenas de 'Todos os Mortos', a matriarca branca e a filha chama a ex-escravizada para realizar um rito afro Foto: Hélène Louvart

Desde o início os diretores pensavam na força das personagens femininas. Montaram uma equipe predominantemente formada por mulheres – a produtora Sara Silveira, a diretora de fotografia Hélène Louvart – de A Vida Invisível -, as atrizes. Em Berlim, Leonor Silveira, a mítica intérprete de grandes filmes de Manoel de Oliveira, já destacara o que para ela era uma marca muito forte dos 'meninos'. “Eles sempre tiveram consciência do lugar de fala deles – homens, brancos -, e como consequência se posicionaram no lugar de escuta.”

Todas as Mortes nasceu de um diálogo muito forte de toda a equipe, todo mundo querendo dar sua contribuição. Soma-se a M-8, Quando a Morte Socorre a Vida, de Jeferson De, também em cartaz nos cinemas. São filmes que espelham o Brasil da desigualdade, do racismo, e da violência.

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