Tom Cruise: como a ética de trabalho incansável do ator de 61 anos virou a salvação de Hollywood


Ator de ‘Missão: Impossível’ acumula combinação única de comprometimento total, habilidades físicas impressionantes, entusiasmo ilimitado e bom gosto instintivo; leia análise

Por Ann Hornaday
Atualização:

THE WASHINGTON POST - Tom Cruise está prestes a voltar às nossas vidas com Missão: Impossível - Acerto de Contas - Parte 1, a primeira metade da sétima parte da franquia de ação e aventura que ele lançou em 1996, que estreia na quinta-feira, 13.

O filme foi adiado quatro vezes. O burburinho gira em torno da última de uma série de acrobacias cada vez mais audaciosas de Tom como o superagente Ethan Hunt, desta vez com o protagonista pilotando sua motocicleta no topo de uma montanha e depois saltando de paraquedas até um trem em alta velocidade para – o que mais? – salvar o mundo.

Tudo muito adequado para uma série de filmes construída sobre o espetáculo. Mas o elemento mais mítico do que é essencialmente uma lista de reviravoltas – embora executada de maneira impressionante – é o próprio Tom Cruise.

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Desde sua estreia na tela, em 1981, no filme de Brooke Shields Amor sem Fim, Cruise provou ter uma durabilidade extraordinária dentro e fora das telas – talvez não a “última” estrela de cinema, como alguns o apelidaram, mas seguramente a fera mais carismática do ecossistema do entretenimento.

Podemos ficar assustados com sua vida privada, intrigados com seus relacionamentos, céticos quanto à sua sinceridade e cronicamente curiosos sobre quem ele é de verdade. Mas Tom Cruise só absorve nossa ambivalência e faz com que ela o deixe mais rápido, mais forte, mais inalcançável. Por tudo isso, continuamos fiéis a Tom Cruise, apenas por causa da forma universal, mas profundamente pessoal, de catarse que só ele pode oferecer.

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Depois de Amor sem Fim, Cruise interpretou arquétipos da era Reagan numa série de papéis de destaque:

  • um cadete rebelde em Toque de Recolher,
  • um adolescente bem americano na brilhante comédia Negócio Arriscado,
  • um piloto de caça arrogante em Top Gun.
Tom Cruise em "Top Gun: Maverick."  Foto: Divulgação / Paramount Pictures
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‘Top Gun: Maverick’

Depois de insistir por muito tempo que nunca faria uma sequência da ficção militar-industrial de sucesso, ele reprisou seu papel no ano passado em Top Gun: Maverick, que revigorou as cambaleantes salas de cinema depois da pandemia, do streaming e da crescente irrelevância.

Maverick, recriação estilística quase idêntica ao original, com Cruise interpretando uma versão mais humilde e cansada de seu insuportavelmente competente personagem-título, acabou arrecadando cerca de US$ 1,5 bilhão, tornando-se a ave rara mais rara de Hollywood: um fenômeno da cultura pop global e transgeracional conduzido por um ser humano de verdade, e não por atores intercambiáveis soterrados por camadas de Spandex e CGI.

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“Você salvou a pele de Hollywood”, disse Steven Spielberg a Cruise em um vídeo que viralizou durante a temporada do Oscar. Mas Cruise também salvou a própria pele. Ou, melhor dizendo, provou que seu domínio sobre o público não se perdeu e continua sobrenaturalmente – até inexplicavelmente – forte.

Sua beleza física angular já foi preenchida e suavizada. Suas acrobacias perigosas estão se aproximando de um território difícil. E sua vida fora das telas às vezes parece mais opaca do que nunca, com desastres de relações públicas pouco lembrados.

De alguma forma, o Tom dentro de Cruise transcendeu tudo: uma combinação única de comprometimento total, ética de trabalho incansável, habilidades físicas impressionantes, entusiasmo ilimitado e bom gosto instintivo que lhe permitiram ir além da fama. “Não basta ser um grande ator e ter um carisma de estrela”, explica o diretor Doug Liman. “Você precisa de todas essas qualidades juntas. Se você não tem uma delas, você não é Tom Cruise”.

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Liman se lembra da primeira vez em que apresentou a Cruise o thriller de ficção científica No Limite do Amanhã. O ator ficou interessado, mas, antes de se comprometer, pediu a Liman não mudanças no roteiro ou aprovação de outras estrelas, mas ideias sobre a arte conceitual para o filme. “[Foi] tipo, como seria o trailer do filme?”, Liman explica. “Porque você pode desenvolver um ótimo roteiro, mas, se não for um filme que as pessoas queiram ver, não adianta nada”

Para Liman, o pedido sobre a arte conceitual de Cruise foi só outra maneira de fazer a pergunta que o consume acima de todas as outras e ajuda a explicar sua potência: o que as pessoas querem e como posso entregar o que elas que querem? “Ele reconhece genuinamente que é uma estrela de cinema porque as pessoas gostam dos filmes dele, e não o contrário”, diz Liman. “Não é como se ele fosse ungido. Ele realmente se preocupa com seu público e quer fazer o preço do ingresso valer a pena”.

Obsessão em agradar

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A obsessão de Cruise em nos agradar – e a determinação que ele investe para fazer com que tudo pareça ser feito sem qualquer esforço – não deve ser confundida com bajulação. É algo mais orgânico. E, seja congênito, calculado ou uma mistura das coisas, ele chegou ao ponto em que sua intuição para o sucesso de um filme já virou puro reflexo.

Quase desde o início, Cruise fez questão de trabalhar com os melhores, o que explica um currículo que traz nomes como Kubrick, Spielberg e Scorsese, além de Oliver Stone, Paul Thomas Anderson e Michael Mann.

Quando ele começou os filmes Missão: Impossível, contratou Robert Towne, o lendário roteirista de Chinatown, para sofisticar as fórmulas que pareciam batidas. Nos últimos dezesseis anos, seu principal colaborador foi Christopher McQuarrie, roteirista de Os Suspeitos. Como produtor e estrela, ele é todo um departamento de controle de qualidade, cuidando de tudo, desde o elenco até os efeitos visuais (que, para o bem do valor de produção, geralmente são práticos e não digitais).

“As pessoas não sabem como ele é holístico no trabalho de cineasta”, observa Ben Stiller, que conhece Cruise há mais de trinta anos, desde que se conheceram enquanto Cruise filmava A Firma.

Foi Cruise, diz Stiller, quem disse a ele e ao roteirista Justin Theroux que o roteiro da sátira de Hollywood Trovão Tropical precisava de mais um personagem. “Ele disse: ‘Você está tirando sarro dos atores e dos agentes, mas não tem um chefe de estúdio”, lembra Stiller.

Cruise acabou interpretando esse personagem, um executivo de produção estúpido e careca chamado Les Grossman, que se tornou a figura mais icônica do filme, em grande parte graças à disposição de Cruise em parecer ridículo. (O que exemplifica outra regra do Tom dentro de Cruise: entrar 100% no jogo. “Vamos nessa!”, respondeu o ator mais famoso do mundo quando Stiller pediu para ele aparecer num vídeo bobo que ele estava filmando para sua esposa, Christine Taylor. “Adorei!”, gritou Cruise quando Liman lhe disse que queria que ele fizesse papel de covarde em No Limite do Amanhã).

Se você conversar com pessoas que trabalharam com Cruise, desde o início da carreira até os dias atuais, só vai ouvir sobre seu amor genuíno, quase vertiginoso, pelo que faz.

Enquanto dava entrevistas para Minority Report em 2002, Spielberg se lembrou melancolicamente de chegar ao set logo pela manhã e lá encontrar Cruise, pronto para trabalhar.

Sem reclamar

Liman se lembra de definir oito da manhã como horário de início para o elenco de No Limite do Amanhã; Cruise chegava pelo menos quinze minutos antes, perguntando onde estava todo mundo. “Ele dizia: ‘É tipo pegar um voo, as pessoas precisam chegar cedo e estar prontas para viajar’”, diz Liman. “Às vezes, com estrelas de cinema, você precisa ir lá arrancá-las do trailer. Mas com Tom era mais assim: ‘Recebemos essa oportunidade incrível e precisamos usar cada segundo para obter o máximo de valor de produção e performance na tela’”.

Esses discursos motivacionais são marca registrada de Cruise – só de vez em quando viram reclamações, como quando ele criticou algumas pessoas da equipe de Acerto de Contas por violarem as precauções contra a pandemia, ainda em 2021. “Somos o padrão-ouro”, ele disse em um vídeo que viralizou instantaneamente. “Agora eles estão lá em Hollywood fazendo filmes por nossa causa. Porque eles acreditam em nós e no que estamos fazendo aqui. Toda noite ligo para [palavrões] todos os estúdios, todas as seguradoras, todos os produtores, e eles estão aprendendo e usando nosso exemplo para fazer os filmes deles. Estamos criando milhares de empregos, seu [palavrão]. Não quero ver isso nunca mais. Nunca mais!”.

Poucos contestariam que a explosão de Cruise não foi o produto da afetação de uma estrela de cinema, mas sim do foco e do compromisso que o definiram desde o início.

“Tom Cruise adora fazer filmes”, diz April Grace, que estrelou a seu lado em Magnolia, de Anderson. No filme, Cruise interpreta um guru de autoajuda misógino chamado Frank T.J. Mackey, cujo passado vem à tona durante uma entrevista cada vez mais tensa com a jornalista interpretada por Grace. O personagem de Mackey foi um desvio surpreendente para Cruise, que já havia interpretado homens imperfeitos antes, mas ninguém tão rancoroso. Sua cena com Grace é uma luta de boxe tensa e bem calibrada de fintas e defesas verbais, com o personagem de Cruise indo da condescendência loquaz ao medo e, finalmente, à agressão.

Grace lembra que Cruise trabalhava com ela mesmo quando não era necessário. “Já trabalhei com atores muito inferiores que me deixavam para repassar o texto com um assistente quando estavam fora das câmeras”, diz Grace. “Mas Tom não trabalha assim. Certo dia, seu rosto ficou literalmente esmagado contra o [lado] da câmera, para entrar o máximo possível na minha linha de visão, mesmo que eu pudesse ver apenas o canto de seu olho”, diz ela. “Ele estava tipo, ‘Do que você precisa, o que posso fazer, como posso ajudar?’”.

Caso Oprah

É fácil revirar os olhos para a energia messiânica de Cruise, seu fanatismo em nome de uma forma de arte que, pelo menos para ele, parece menos uma profissão do que uma vocação sagrada (será coincidência que ele chegou a pensar em se tornar padre franciscano?). Se você mudar um pouco a lente, até mesmo suas qualidades mais admiráveis assumem contornos de supercompensação: sua obsessão em satisfazer o público como uma extensão da necessidade de trazer alegria e diversão para sua mãe e irmãs depois que seus pais se separaram quando Cruise estava na sexta série; sua ânsia de ler tudo à vista depois de superar a dislexia – com a ajuda, ele disse, da Igreja da Cientologia, na qual ingressou em 1986.

A impressão de que Cruise exagerava ficou maior em 2005, quando ele confessou seu amor pela então namorada Katie Holmes pulando loucamente no sofá durante uma entrevista a Oprah Winfrey. Alguns meses depois, ele criticou Shields por tomar remédios para depressão pós-parto, o que levou a uma entrevista infame no programa Today, durante a qual ele defendeu a Cientologia e sua postura antipsiquiatria para o apresentador Matt Lauer. “Matt. Matt, Matt, Matt, Matt. Você é falastrão”, disse Cruise. “Você nem sabe o que é Ritalina”. Cruise parecia arrogante, impositivo, desequilibrado.

Muitos observadores acharam que ele nunca iria se recuperar. Na época, ele rompeu relações com Spielberg, cujo filme Guerra dos Mundos ele deveria estar promovendo. (Eles ainda não voltaram a trabalhar juntos). E não seria a última vez que Cruise seria questionado, especialmente em relação ao seu relacionamento com a Cientologia, que é oficialmente reconhecida como igreja, mas muitos ex-praticantes e jornalistas a consideram um culto perigoso e abusivo.

Assim como a Entidade, o programa de inteligência artificial que Hunt persegue em Acerto de Contas, Cruise aprende, corrige e tenta de novo. Depois do desastre de 2005, ele montou uma equipe de publicidade de primeira e praticamente se calou, ficando disponível apenas seletivamente. (Ele recusou um pedido de entrevista para este artigo). Sempre revirando o ambiente e as expectativas do público em busca de dados, ele ajusta e melhora, finalmente alcançando o equilíbrio zen perfeito de megacelebridade: onipresença quase constante e distância inescrutável.

Segundo mais importante da Cientologia

É essa capacidade de sair ileso que enlouquece os detratores de Cruise. “Acontece que tenho um enorme conjunto de fatos, particularmente no que diz respeito à maneira como ele e a Cientologia tratam as mulheres, que para mim dificulta muito essa adulação”, diz Maureen Orth, que escreveu um artigo preocupante sobre o relacionamento de Cruise com a atriz e ativista Nazanin Boniadi para a Vanity Fair em 2012. “Não apenas por causa dele, mas [porque] ele é a segunda pessoa mais importante da Cientologia, junto com [o líder da igreja] David Miscavige. A imprensa também não faz seu trabalho direito. Ele sempre consegue passe-livre. Nunca é questionado sobre essas coisas”.

De fato, quando Jerrod Carmichael, apresentador do Globo de Ouro, fez uma piada sobre Cruise e a Cientologia este ano, a piada funcionou, mas não ganhou força. (Carmichael sugeriu que trocassem os prêmios que Cruise devolveu em protesto pelo “retorno seguro” da esposa de Miscavige, Shelly, que não era vista em público havia anos).

Sempre um avatar geracional, Cruise se tornou receptáculo não para nossas aspirações e fantasias, mas também para a exaustão do século 21: pandemias, tumultos políticos da era Trump, demandas prementes de que as ações e crenças privadas de nossas celebridades se alinhem completamente às nossas. Sentindo a ferida na nossa consciência coletiva, o Tom dentro de Cruise age tanto como purgativo quanto como bálsamo. Quem mais conseguiria nos unir após o trauma, a hostilidade tribal e a separação forçada que definiu a vida americana desde 2016?

Cruise esteve notoriamente ausente do Oscar deste ano, apesar de Top Gun: Maverick ter sido indicado a seis prêmios, incluindo o de melhor filme. A desculpa oficial foi um conflito de agenda, mas ele estaria dentro de seu direito de manter o respeito que lhe devem, não por ele ter salvado a pele de Hollywood, mas por ser um ator excelente por mais de quatro décadas. Inacreditavelmente, ele foi indicado apenas três vezes por suas atuações, em Nascido em 4 de julho, Jerry Maguire e Magnolia.

Jovem confiante

Jon Avnet, que produziu Negócio Arriscado, percebeu a capacidade de Cruise desde o momento em que ele fez teste para o papel de Joel Goodsen no filme, quando Avnet reconheceu “uma forma de confiança – não era arrogância – mas uma forma de confiança muito incomum para um jovem de 19 anos”. Mesmo assim, observa Avnet, Cruise conseguiu compreender o complicado equilíbrio tonal de Negócio Arriscado, que parece ser uma comédia sexual adolescente antes de se tornar uma crítica mais sombria sobre o capitalismo contemporâneo. “Aquela combinação de levar a coisa a sério e ao mesmo tempo ter um senso de humor irônico, mantendo um nível de inocência ou falta de sofisticação”, diz Avnet.

Quanto ao motivo pelo qual o reconhecimento artístico escapou a Cruise, Avnet explica: “Existe uma tradição em Hollywood que é cruel com pessoas com certos dons. As pessoas votam com mesquinhez”.

Agora uma nova geração cresceu com Tom Cruise: os filhos dos boomers e da Geração X, para quem os filmes Missão: Impossível são uma tradição familiar.

Mas, para entender o poder de Cruise, eles precisam ir ao catálogo mais antigo – Questão de Honra e Rain Man, Colateral e Minority Report, Magnolia e Trovão Tropical – para testemunhar em primeira mão o que um ator extraordinariamente versátil pode ser e sempre foi. Na tentativa de preservar as salas de cinema, ele apostou tudo no blockbuster. Depois da parcela final de Missão: Impossível no ano que vem, ele está prestes a fazer história como o primeiro ator a filmar um filme na Estação Espacial Internacional.

Depois de salvar o planeta Terra, restam apenas perguntas. Até onde Cruise irá para explorar aquela energia “Vamos nessa!” a serviço de perseguições, acrobacias e cenários hipercinéticos? “Tenho vinte anos para alcançá-lo”, disse Cruise recentemente ao Sydney Morning Herald, referindo-se a Harrison Ford, de 80 anos. “Espero continuar fazendo filmes Missão: Impossível até ter a idade dele”.

“Sinto que ele é inteligente o bastante para saber que mudar as coisas ou explorar uma área que as pessoas não esperam que ele vá é muito empolgante. As pessoas gostam disso e acho que ele também”, diz Stiller. “Também acho que, a essa altura, ele fez tanta coisa que conquistou o direito de relaxar um pouco”.

O Tom dentro de Cruise permite muitas coisas: relaxar não é uma delas. Talvez até pudesse ser, mas só com a permissão do público. Em última análise, o domínio de Cruise sobre nós é melhor explicado por nosso domínio sobre ele. Ele ainda está diante da câmera, o rosto o mais próximo possível, esperando que digamos a ele exatamente o que queremos.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE WASHINGTON POST - Tom Cruise está prestes a voltar às nossas vidas com Missão: Impossível - Acerto de Contas - Parte 1, a primeira metade da sétima parte da franquia de ação e aventura que ele lançou em 1996, que estreia na quinta-feira, 13.

O filme foi adiado quatro vezes. O burburinho gira em torno da última de uma série de acrobacias cada vez mais audaciosas de Tom como o superagente Ethan Hunt, desta vez com o protagonista pilotando sua motocicleta no topo de uma montanha e depois saltando de paraquedas até um trem em alta velocidade para – o que mais? – salvar o mundo.

Tudo muito adequado para uma série de filmes construída sobre o espetáculo. Mas o elemento mais mítico do que é essencialmente uma lista de reviravoltas – embora executada de maneira impressionante – é o próprio Tom Cruise.

Desde sua estreia na tela, em 1981, no filme de Brooke Shields Amor sem Fim, Cruise provou ter uma durabilidade extraordinária dentro e fora das telas – talvez não a “última” estrela de cinema, como alguns o apelidaram, mas seguramente a fera mais carismática do ecossistema do entretenimento.

Podemos ficar assustados com sua vida privada, intrigados com seus relacionamentos, céticos quanto à sua sinceridade e cronicamente curiosos sobre quem ele é de verdade. Mas Tom Cruise só absorve nossa ambivalência e faz com que ela o deixe mais rápido, mais forte, mais inalcançável. Por tudo isso, continuamos fiéis a Tom Cruise, apenas por causa da forma universal, mas profundamente pessoal, de catarse que só ele pode oferecer.

Depois de Amor sem Fim, Cruise interpretou arquétipos da era Reagan numa série de papéis de destaque:

  • um cadete rebelde em Toque de Recolher,
  • um adolescente bem americano na brilhante comédia Negócio Arriscado,
  • um piloto de caça arrogante em Top Gun.
Tom Cruise em "Top Gun: Maverick."  Foto: Divulgação / Paramount Pictures

‘Top Gun: Maverick’

Depois de insistir por muito tempo que nunca faria uma sequência da ficção militar-industrial de sucesso, ele reprisou seu papel no ano passado em Top Gun: Maverick, que revigorou as cambaleantes salas de cinema depois da pandemia, do streaming e da crescente irrelevância.

Maverick, recriação estilística quase idêntica ao original, com Cruise interpretando uma versão mais humilde e cansada de seu insuportavelmente competente personagem-título, acabou arrecadando cerca de US$ 1,5 bilhão, tornando-se a ave rara mais rara de Hollywood: um fenômeno da cultura pop global e transgeracional conduzido por um ser humano de verdade, e não por atores intercambiáveis soterrados por camadas de Spandex e CGI.

“Você salvou a pele de Hollywood”, disse Steven Spielberg a Cruise em um vídeo que viralizou durante a temporada do Oscar. Mas Cruise também salvou a própria pele. Ou, melhor dizendo, provou que seu domínio sobre o público não se perdeu e continua sobrenaturalmente – até inexplicavelmente – forte.

Sua beleza física angular já foi preenchida e suavizada. Suas acrobacias perigosas estão se aproximando de um território difícil. E sua vida fora das telas às vezes parece mais opaca do que nunca, com desastres de relações públicas pouco lembrados.

De alguma forma, o Tom dentro de Cruise transcendeu tudo: uma combinação única de comprometimento total, ética de trabalho incansável, habilidades físicas impressionantes, entusiasmo ilimitado e bom gosto instintivo que lhe permitiram ir além da fama. “Não basta ser um grande ator e ter um carisma de estrela”, explica o diretor Doug Liman. “Você precisa de todas essas qualidades juntas. Se você não tem uma delas, você não é Tom Cruise”.

Liman se lembra da primeira vez em que apresentou a Cruise o thriller de ficção científica No Limite do Amanhã. O ator ficou interessado, mas, antes de se comprometer, pediu a Liman não mudanças no roteiro ou aprovação de outras estrelas, mas ideias sobre a arte conceitual para o filme. “[Foi] tipo, como seria o trailer do filme?”, Liman explica. “Porque você pode desenvolver um ótimo roteiro, mas, se não for um filme que as pessoas queiram ver, não adianta nada”

Para Liman, o pedido sobre a arte conceitual de Cruise foi só outra maneira de fazer a pergunta que o consume acima de todas as outras e ajuda a explicar sua potência: o que as pessoas querem e como posso entregar o que elas que querem? “Ele reconhece genuinamente que é uma estrela de cinema porque as pessoas gostam dos filmes dele, e não o contrário”, diz Liman. “Não é como se ele fosse ungido. Ele realmente se preocupa com seu público e quer fazer o preço do ingresso valer a pena”.

Obsessão em agradar

A obsessão de Cruise em nos agradar – e a determinação que ele investe para fazer com que tudo pareça ser feito sem qualquer esforço – não deve ser confundida com bajulação. É algo mais orgânico. E, seja congênito, calculado ou uma mistura das coisas, ele chegou ao ponto em que sua intuição para o sucesso de um filme já virou puro reflexo.

Quase desde o início, Cruise fez questão de trabalhar com os melhores, o que explica um currículo que traz nomes como Kubrick, Spielberg e Scorsese, além de Oliver Stone, Paul Thomas Anderson e Michael Mann.

Quando ele começou os filmes Missão: Impossível, contratou Robert Towne, o lendário roteirista de Chinatown, para sofisticar as fórmulas que pareciam batidas. Nos últimos dezesseis anos, seu principal colaborador foi Christopher McQuarrie, roteirista de Os Suspeitos. Como produtor e estrela, ele é todo um departamento de controle de qualidade, cuidando de tudo, desde o elenco até os efeitos visuais (que, para o bem do valor de produção, geralmente são práticos e não digitais).

“As pessoas não sabem como ele é holístico no trabalho de cineasta”, observa Ben Stiller, que conhece Cruise há mais de trinta anos, desde que se conheceram enquanto Cruise filmava A Firma.

Foi Cruise, diz Stiller, quem disse a ele e ao roteirista Justin Theroux que o roteiro da sátira de Hollywood Trovão Tropical precisava de mais um personagem. “Ele disse: ‘Você está tirando sarro dos atores e dos agentes, mas não tem um chefe de estúdio”, lembra Stiller.

Cruise acabou interpretando esse personagem, um executivo de produção estúpido e careca chamado Les Grossman, que se tornou a figura mais icônica do filme, em grande parte graças à disposição de Cruise em parecer ridículo. (O que exemplifica outra regra do Tom dentro de Cruise: entrar 100% no jogo. “Vamos nessa!”, respondeu o ator mais famoso do mundo quando Stiller pediu para ele aparecer num vídeo bobo que ele estava filmando para sua esposa, Christine Taylor. “Adorei!”, gritou Cruise quando Liman lhe disse que queria que ele fizesse papel de covarde em No Limite do Amanhã).

Se você conversar com pessoas que trabalharam com Cruise, desde o início da carreira até os dias atuais, só vai ouvir sobre seu amor genuíno, quase vertiginoso, pelo que faz.

Enquanto dava entrevistas para Minority Report em 2002, Spielberg se lembrou melancolicamente de chegar ao set logo pela manhã e lá encontrar Cruise, pronto para trabalhar.

Sem reclamar

Liman se lembra de definir oito da manhã como horário de início para o elenco de No Limite do Amanhã; Cruise chegava pelo menos quinze minutos antes, perguntando onde estava todo mundo. “Ele dizia: ‘É tipo pegar um voo, as pessoas precisam chegar cedo e estar prontas para viajar’”, diz Liman. “Às vezes, com estrelas de cinema, você precisa ir lá arrancá-las do trailer. Mas com Tom era mais assim: ‘Recebemos essa oportunidade incrível e precisamos usar cada segundo para obter o máximo de valor de produção e performance na tela’”.

Esses discursos motivacionais são marca registrada de Cruise – só de vez em quando viram reclamações, como quando ele criticou algumas pessoas da equipe de Acerto de Contas por violarem as precauções contra a pandemia, ainda em 2021. “Somos o padrão-ouro”, ele disse em um vídeo que viralizou instantaneamente. “Agora eles estão lá em Hollywood fazendo filmes por nossa causa. Porque eles acreditam em nós e no que estamos fazendo aqui. Toda noite ligo para [palavrões] todos os estúdios, todas as seguradoras, todos os produtores, e eles estão aprendendo e usando nosso exemplo para fazer os filmes deles. Estamos criando milhares de empregos, seu [palavrão]. Não quero ver isso nunca mais. Nunca mais!”.

Poucos contestariam que a explosão de Cruise não foi o produto da afetação de uma estrela de cinema, mas sim do foco e do compromisso que o definiram desde o início.

“Tom Cruise adora fazer filmes”, diz April Grace, que estrelou a seu lado em Magnolia, de Anderson. No filme, Cruise interpreta um guru de autoajuda misógino chamado Frank T.J. Mackey, cujo passado vem à tona durante uma entrevista cada vez mais tensa com a jornalista interpretada por Grace. O personagem de Mackey foi um desvio surpreendente para Cruise, que já havia interpretado homens imperfeitos antes, mas ninguém tão rancoroso. Sua cena com Grace é uma luta de boxe tensa e bem calibrada de fintas e defesas verbais, com o personagem de Cruise indo da condescendência loquaz ao medo e, finalmente, à agressão.

Grace lembra que Cruise trabalhava com ela mesmo quando não era necessário. “Já trabalhei com atores muito inferiores que me deixavam para repassar o texto com um assistente quando estavam fora das câmeras”, diz Grace. “Mas Tom não trabalha assim. Certo dia, seu rosto ficou literalmente esmagado contra o [lado] da câmera, para entrar o máximo possível na minha linha de visão, mesmo que eu pudesse ver apenas o canto de seu olho”, diz ela. “Ele estava tipo, ‘Do que você precisa, o que posso fazer, como posso ajudar?’”.

Caso Oprah

É fácil revirar os olhos para a energia messiânica de Cruise, seu fanatismo em nome de uma forma de arte que, pelo menos para ele, parece menos uma profissão do que uma vocação sagrada (será coincidência que ele chegou a pensar em se tornar padre franciscano?). Se você mudar um pouco a lente, até mesmo suas qualidades mais admiráveis assumem contornos de supercompensação: sua obsessão em satisfazer o público como uma extensão da necessidade de trazer alegria e diversão para sua mãe e irmãs depois que seus pais se separaram quando Cruise estava na sexta série; sua ânsia de ler tudo à vista depois de superar a dislexia – com a ajuda, ele disse, da Igreja da Cientologia, na qual ingressou em 1986.

A impressão de que Cruise exagerava ficou maior em 2005, quando ele confessou seu amor pela então namorada Katie Holmes pulando loucamente no sofá durante uma entrevista a Oprah Winfrey. Alguns meses depois, ele criticou Shields por tomar remédios para depressão pós-parto, o que levou a uma entrevista infame no programa Today, durante a qual ele defendeu a Cientologia e sua postura antipsiquiatria para o apresentador Matt Lauer. “Matt. Matt, Matt, Matt, Matt. Você é falastrão”, disse Cruise. “Você nem sabe o que é Ritalina”. Cruise parecia arrogante, impositivo, desequilibrado.

Muitos observadores acharam que ele nunca iria se recuperar. Na época, ele rompeu relações com Spielberg, cujo filme Guerra dos Mundos ele deveria estar promovendo. (Eles ainda não voltaram a trabalhar juntos). E não seria a última vez que Cruise seria questionado, especialmente em relação ao seu relacionamento com a Cientologia, que é oficialmente reconhecida como igreja, mas muitos ex-praticantes e jornalistas a consideram um culto perigoso e abusivo.

Assim como a Entidade, o programa de inteligência artificial que Hunt persegue em Acerto de Contas, Cruise aprende, corrige e tenta de novo. Depois do desastre de 2005, ele montou uma equipe de publicidade de primeira e praticamente se calou, ficando disponível apenas seletivamente. (Ele recusou um pedido de entrevista para este artigo). Sempre revirando o ambiente e as expectativas do público em busca de dados, ele ajusta e melhora, finalmente alcançando o equilíbrio zen perfeito de megacelebridade: onipresença quase constante e distância inescrutável.

Segundo mais importante da Cientologia

É essa capacidade de sair ileso que enlouquece os detratores de Cruise. “Acontece que tenho um enorme conjunto de fatos, particularmente no que diz respeito à maneira como ele e a Cientologia tratam as mulheres, que para mim dificulta muito essa adulação”, diz Maureen Orth, que escreveu um artigo preocupante sobre o relacionamento de Cruise com a atriz e ativista Nazanin Boniadi para a Vanity Fair em 2012. “Não apenas por causa dele, mas [porque] ele é a segunda pessoa mais importante da Cientologia, junto com [o líder da igreja] David Miscavige. A imprensa também não faz seu trabalho direito. Ele sempre consegue passe-livre. Nunca é questionado sobre essas coisas”.

De fato, quando Jerrod Carmichael, apresentador do Globo de Ouro, fez uma piada sobre Cruise e a Cientologia este ano, a piada funcionou, mas não ganhou força. (Carmichael sugeriu que trocassem os prêmios que Cruise devolveu em protesto pelo “retorno seguro” da esposa de Miscavige, Shelly, que não era vista em público havia anos).

Sempre um avatar geracional, Cruise se tornou receptáculo não para nossas aspirações e fantasias, mas também para a exaustão do século 21: pandemias, tumultos políticos da era Trump, demandas prementes de que as ações e crenças privadas de nossas celebridades se alinhem completamente às nossas. Sentindo a ferida na nossa consciência coletiva, o Tom dentro de Cruise age tanto como purgativo quanto como bálsamo. Quem mais conseguiria nos unir após o trauma, a hostilidade tribal e a separação forçada que definiu a vida americana desde 2016?

Cruise esteve notoriamente ausente do Oscar deste ano, apesar de Top Gun: Maverick ter sido indicado a seis prêmios, incluindo o de melhor filme. A desculpa oficial foi um conflito de agenda, mas ele estaria dentro de seu direito de manter o respeito que lhe devem, não por ele ter salvado a pele de Hollywood, mas por ser um ator excelente por mais de quatro décadas. Inacreditavelmente, ele foi indicado apenas três vezes por suas atuações, em Nascido em 4 de julho, Jerry Maguire e Magnolia.

Jovem confiante

Jon Avnet, que produziu Negócio Arriscado, percebeu a capacidade de Cruise desde o momento em que ele fez teste para o papel de Joel Goodsen no filme, quando Avnet reconheceu “uma forma de confiança – não era arrogância – mas uma forma de confiança muito incomum para um jovem de 19 anos”. Mesmo assim, observa Avnet, Cruise conseguiu compreender o complicado equilíbrio tonal de Negócio Arriscado, que parece ser uma comédia sexual adolescente antes de se tornar uma crítica mais sombria sobre o capitalismo contemporâneo. “Aquela combinação de levar a coisa a sério e ao mesmo tempo ter um senso de humor irônico, mantendo um nível de inocência ou falta de sofisticação”, diz Avnet.

Quanto ao motivo pelo qual o reconhecimento artístico escapou a Cruise, Avnet explica: “Existe uma tradição em Hollywood que é cruel com pessoas com certos dons. As pessoas votam com mesquinhez”.

Agora uma nova geração cresceu com Tom Cruise: os filhos dos boomers e da Geração X, para quem os filmes Missão: Impossível são uma tradição familiar.

Mas, para entender o poder de Cruise, eles precisam ir ao catálogo mais antigo – Questão de Honra e Rain Man, Colateral e Minority Report, Magnolia e Trovão Tropical – para testemunhar em primeira mão o que um ator extraordinariamente versátil pode ser e sempre foi. Na tentativa de preservar as salas de cinema, ele apostou tudo no blockbuster. Depois da parcela final de Missão: Impossível no ano que vem, ele está prestes a fazer história como o primeiro ator a filmar um filme na Estação Espacial Internacional.

Depois de salvar o planeta Terra, restam apenas perguntas. Até onde Cruise irá para explorar aquela energia “Vamos nessa!” a serviço de perseguições, acrobacias e cenários hipercinéticos? “Tenho vinte anos para alcançá-lo”, disse Cruise recentemente ao Sydney Morning Herald, referindo-se a Harrison Ford, de 80 anos. “Espero continuar fazendo filmes Missão: Impossível até ter a idade dele”.

“Sinto que ele é inteligente o bastante para saber que mudar as coisas ou explorar uma área que as pessoas não esperam que ele vá é muito empolgante. As pessoas gostam disso e acho que ele também”, diz Stiller. “Também acho que, a essa altura, ele fez tanta coisa que conquistou o direito de relaxar um pouco”.

O Tom dentro de Cruise permite muitas coisas: relaxar não é uma delas. Talvez até pudesse ser, mas só com a permissão do público. Em última análise, o domínio de Cruise sobre nós é melhor explicado por nosso domínio sobre ele. Ele ainda está diante da câmera, o rosto o mais próximo possível, esperando que digamos a ele exatamente o que queremos.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE WASHINGTON POST - Tom Cruise está prestes a voltar às nossas vidas com Missão: Impossível - Acerto de Contas - Parte 1, a primeira metade da sétima parte da franquia de ação e aventura que ele lançou em 1996, que estreia na quinta-feira, 13.

O filme foi adiado quatro vezes. O burburinho gira em torno da última de uma série de acrobacias cada vez mais audaciosas de Tom como o superagente Ethan Hunt, desta vez com o protagonista pilotando sua motocicleta no topo de uma montanha e depois saltando de paraquedas até um trem em alta velocidade para – o que mais? – salvar o mundo.

Tudo muito adequado para uma série de filmes construída sobre o espetáculo. Mas o elemento mais mítico do que é essencialmente uma lista de reviravoltas – embora executada de maneira impressionante – é o próprio Tom Cruise.

Desde sua estreia na tela, em 1981, no filme de Brooke Shields Amor sem Fim, Cruise provou ter uma durabilidade extraordinária dentro e fora das telas – talvez não a “última” estrela de cinema, como alguns o apelidaram, mas seguramente a fera mais carismática do ecossistema do entretenimento.

Podemos ficar assustados com sua vida privada, intrigados com seus relacionamentos, céticos quanto à sua sinceridade e cronicamente curiosos sobre quem ele é de verdade. Mas Tom Cruise só absorve nossa ambivalência e faz com que ela o deixe mais rápido, mais forte, mais inalcançável. Por tudo isso, continuamos fiéis a Tom Cruise, apenas por causa da forma universal, mas profundamente pessoal, de catarse que só ele pode oferecer.

Depois de Amor sem Fim, Cruise interpretou arquétipos da era Reagan numa série de papéis de destaque:

  • um cadete rebelde em Toque de Recolher,
  • um adolescente bem americano na brilhante comédia Negócio Arriscado,
  • um piloto de caça arrogante em Top Gun.
Tom Cruise em "Top Gun: Maverick."  Foto: Divulgação / Paramount Pictures

‘Top Gun: Maverick’

Depois de insistir por muito tempo que nunca faria uma sequência da ficção militar-industrial de sucesso, ele reprisou seu papel no ano passado em Top Gun: Maverick, que revigorou as cambaleantes salas de cinema depois da pandemia, do streaming e da crescente irrelevância.

Maverick, recriação estilística quase idêntica ao original, com Cruise interpretando uma versão mais humilde e cansada de seu insuportavelmente competente personagem-título, acabou arrecadando cerca de US$ 1,5 bilhão, tornando-se a ave rara mais rara de Hollywood: um fenômeno da cultura pop global e transgeracional conduzido por um ser humano de verdade, e não por atores intercambiáveis soterrados por camadas de Spandex e CGI.

“Você salvou a pele de Hollywood”, disse Steven Spielberg a Cruise em um vídeo que viralizou durante a temporada do Oscar. Mas Cruise também salvou a própria pele. Ou, melhor dizendo, provou que seu domínio sobre o público não se perdeu e continua sobrenaturalmente – até inexplicavelmente – forte.

Sua beleza física angular já foi preenchida e suavizada. Suas acrobacias perigosas estão se aproximando de um território difícil. E sua vida fora das telas às vezes parece mais opaca do que nunca, com desastres de relações públicas pouco lembrados.

De alguma forma, o Tom dentro de Cruise transcendeu tudo: uma combinação única de comprometimento total, ética de trabalho incansável, habilidades físicas impressionantes, entusiasmo ilimitado e bom gosto instintivo que lhe permitiram ir além da fama. “Não basta ser um grande ator e ter um carisma de estrela”, explica o diretor Doug Liman. “Você precisa de todas essas qualidades juntas. Se você não tem uma delas, você não é Tom Cruise”.

Liman se lembra da primeira vez em que apresentou a Cruise o thriller de ficção científica No Limite do Amanhã. O ator ficou interessado, mas, antes de se comprometer, pediu a Liman não mudanças no roteiro ou aprovação de outras estrelas, mas ideias sobre a arte conceitual para o filme. “[Foi] tipo, como seria o trailer do filme?”, Liman explica. “Porque você pode desenvolver um ótimo roteiro, mas, se não for um filme que as pessoas queiram ver, não adianta nada”

Para Liman, o pedido sobre a arte conceitual de Cruise foi só outra maneira de fazer a pergunta que o consume acima de todas as outras e ajuda a explicar sua potência: o que as pessoas querem e como posso entregar o que elas que querem? “Ele reconhece genuinamente que é uma estrela de cinema porque as pessoas gostam dos filmes dele, e não o contrário”, diz Liman. “Não é como se ele fosse ungido. Ele realmente se preocupa com seu público e quer fazer o preço do ingresso valer a pena”.

Obsessão em agradar

A obsessão de Cruise em nos agradar – e a determinação que ele investe para fazer com que tudo pareça ser feito sem qualquer esforço – não deve ser confundida com bajulação. É algo mais orgânico. E, seja congênito, calculado ou uma mistura das coisas, ele chegou ao ponto em que sua intuição para o sucesso de um filme já virou puro reflexo.

Quase desde o início, Cruise fez questão de trabalhar com os melhores, o que explica um currículo que traz nomes como Kubrick, Spielberg e Scorsese, além de Oliver Stone, Paul Thomas Anderson e Michael Mann.

Quando ele começou os filmes Missão: Impossível, contratou Robert Towne, o lendário roteirista de Chinatown, para sofisticar as fórmulas que pareciam batidas. Nos últimos dezesseis anos, seu principal colaborador foi Christopher McQuarrie, roteirista de Os Suspeitos. Como produtor e estrela, ele é todo um departamento de controle de qualidade, cuidando de tudo, desde o elenco até os efeitos visuais (que, para o bem do valor de produção, geralmente são práticos e não digitais).

“As pessoas não sabem como ele é holístico no trabalho de cineasta”, observa Ben Stiller, que conhece Cruise há mais de trinta anos, desde que se conheceram enquanto Cruise filmava A Firma.

Foi Cruise, diz Stiller, quem disse a ele e ao roteirista Justin Theroux que o roteiro da sátira de Hollywood Trovão Tropical precisava de mais um personagem. “Ele disse: ‘Você está tirando sarro dos atores e dos agentes, mas não tem um chefe de estúdio”, lembra Stiller.

Cruise acabou interpretando esse personagem, um executivo de produção estúpido e careca chamado Les Grossman, que se tornou a figura mais icônica do filme, em grande parte graças à disposição de Cruise em parecer ridículo. (O que exemplifica outra regra do Tom dentro de Cruise: entrar 100% no jogo. “Vamos nessa!”, respondeu o ator mais famoso do mundo quando Stiller pediu para ele aparecer num vídeo bobo que ele estava filmando para sua esposa, Christine Taylor. “Adorei!”, gritou Cruise quando Liman lhe disse que queria que ele fizesse papel de covarde em No Limite do Amanhã).

Se você conversar com pessoas que trabalharam com Cruise, desde o início da carreira até os dias atuais, só vai ouvir sobre seu amor genuíno, quase vertiginoso, pelo que faz.

Enquanto dava entrevistas para Minority Report em 2002, Spielberg se lembrou melancolicamente de chegar ao set logo pela manhã e lá encontrar Cruise, pronto para trabalhar.

Sem reclamar

Liman se lembra de definir oito da manhã como horário de início para o elenco de No Limite do Amanhã; Cruise chegava pelo menos quinze minutos antes, perguntando onde estava todo mundo. “Ele dizia: ‘É tipo pegar um voo, as pessoas precisam chegar cedo e estar prontas para viajar’”, diz Liman. “Às vezes, com estrelas de cinema, você precisa ir lá arrancá-las do trailer. Mas com Tom era mais assim: ‘Recebemos essa oportunidade incrível e precisamos usar cada segundo para obter o máximo de valor de produção e performance na tela’”.

Esses discursos motivacionais são marca registrada de Cruise – só de vez em quando viram reclamações, como quando ele criticou algumas pessoas da equipe de Acerto de Contas por violarem as precauções contra a pandemia, ainda em 2021. “Somos o padrão-ouro”, ele disse em um vídeo que viralizou instantaneamente. “Agora eles estão lá em Hollywood fazendo filmes por nossa causa. Porque eles acreditam em nós e no que estamos fazendo aqui. Toda noite ligo para [palavrões] todos os estúdios, todas as seguradoras, todos os produtores, e eles estão aprendendo e usando nosso exemplo para fazer os filmes deles. Estamos criando milhares de empregos, seu [palavrão]. Não quero ver isso nunca mais. Nunca mais!”.

Poucos contestariam que a explosão de Cruise não foi o produto da afetação de uma estrela de cinema, mas sim do foco e do compromisso que o definiram desde o início.

“Tom Cruise adora fazer filmes”, diz April Grace, que estrelou a seu lado em Magnolia, de Anderson. No filme, Cruise interpreta um guru de autoajuda misógino chamado Frank T.J. Mackey, cujo passado vem à tona durante uma entrevista cada vez mais tensa com a jornalista interpretada por Grace. O personagem de Mackey foi um desvio surpreendente para Cruise, que já havia interpretado homens imperfeitos antes, mas ninguém tão rancoroso. Sua cena com Grace é uma luta de boxe tensa e bem calibrada de fintas e defesas verbais, com o personagem de Cruise indo da condescendência loquaz ao medo e, finalmente, à agressão.

Grace lembra que Cruise trabalhava com ela mesmo quando não era necessário. “Já trabalhei com atores muito inferiores que me deixavam para repassar o texto com um assistente quando estavam fora das câmeras”, diz Grace. “Mas Tom não trabalha assim. Certo dia, seu rosto ficou literalmente esmagado contra o [lado] da câmera, para entrar o máximo possível na minha linha de visão, mesmo que eu pudesse ver apenas o canto de seu olho”, diz ela. “Ele estava tipo, ‘Do que você precisa, o que posso fazer, como posso ajudar?’”.

Caso Oprah

É fácil revirar os olhos para a energia messiânica de Cruise, seu fanatismo em nome de uma forma de arte que, pelo menos para ele, parece menos uma profissão do que uma vocação sagrada (será coincidência que ele chegou a pensar em se tornar padre franciscano?). Se você mudar um pouco a lente, até mesmo suas qualidades mais admiráveis assumem contornos de supercompensação: sua obsessão em satisfazer o público como uma extensão da necessidade de trazer alegria e diversão para sua mãe e irmãs depois que seus pais se separaram quando Cruise estava na sexta série; sua ânsia de ler tudo à vista depois de superar a dislexia – com a ajuda, ele disse, da Igreja da Cientologia, na qual ingressou em 1986.

A impressão de que Cruise exagerava ficou maior em 2005, quando ele confessou seu amor pela então namorada Katie Holmes pulando loucamente no sofá durante uma entrevista a Oprah Winfrey. Alguns meses depois, ele criticou Shields por tomar remédios para depressão pós-parto, o que levou a uma entrevista infame no programa Today, durante a qual ele defendeu a Cientologia e sua postura antipsiquiatria para o apresentador Matt Lauer. “Matt. Matt, Matt, Matt, Matt. Você é falastrão”, disse Cruise. “Você nem sabe o que é Ritalina”. Cruise parecia arrogante, impositivo, desequilibrado.

Muitos observadores acharam que ele nunca iria se recuperar. Na época, ele rompeu relações com Spielberg, cujo filme Guerra dos Mundos ele deveria estar promovendo. (Eles ainda não voltaram a trabalhar juntos). E não seria a última vez que Cruise seria questionado, especialmente em relação ao seu relacionamento com a Cientologia, que é oficialmente reconhecida como igreja, mas muitos ex-praticantes e jornalistas a consideram um culto perigoso e abusivo.

Assim como a Entidade, o programa de inteligência artificial que Hunt persegue em Acerto de Contas, Cruise aprende, corrige e tenta de novo. Depois do desastre de 2005, ele montou uma equipe de publicidade de primeira e praticamente se calou, ficando disponível apenas seletivamente. (Ele recusou um pedido de entrevista para este artigo). Sempre revirando o ambiente e as expectativas do público em busca de dados, ele ajusta e melhora, finalmente alcançando o equilíbrio zen perfeito de megacelebridade: onipresença quase constante e distância inescrutável.

Segundo mais importante da Cientologia

É essa capacidade de sair ileso que enlouquece os detratores de Cruise. “Acontece que tenho um enorme conjunto de fatos, particularmente no que diz respeito à maneira como ele e a Cientologia tratam as mulheres, que para mim dificulta muito essa adulação”, diz Maureen Orth, que escreveu um artigo preocupante sobre o relacionamento de Cruise com a atriz e ativista Nazanin Boniadi para a Vanity Fair em 2012. “Não apenas por causa dele, mas [porque] ele é a segunda pessoa mais importante da Cientologia, junto com [o líder da igreja] David Miscavige. A imprensa também não faz seu trabalho direito. Ele sempre consegue passe-livre. Nunca é questionado sobre essas coisas”.

De fato, quando Jerrod Carmichael, apresentador do Globo de Ouro, fez uma piada sobre Cruise e a Cientologia este ano, a piada funcionou, mas não ganhou força. (Carmichael sugeriu que trocassem os prêmios que Cruise devolveu em protesto pelo “retorno seguro” da esposa de Miscavige, Shelly, que não era vista em público havia anos).

Sempre um avatar geracional, Cruise se tornou receptáculo não para nossas aspirações e fantasias, mas também para a exaustão do século 21: pandemias, tumultos políticos da era Trump, demandas prementes de que as ações e crenças privadas de nossas celebridades se alinhem completamente às nossas. Sentindo a ferida na nossa consciência coletiva, o Tom dentro de Cruise age tanto como purgativo quanto como bálsamo. Quem mais conseguiria nos unir após o trauma, a hostilidade tribal e a separação forçada que definiu a vida americana desde 2016?

Cruise esteve notoriamente ausente do Oscar deste ano, apesar de Top Gun: Maverick ter sido indicado a seis prêmios, incluindo o de melhor filme. A desculpa oficial foi um conflito de agenda, mas ele estaria dentro de seu direito de manter o respeito que lhe devem, não por ele ter salvado a pele de Hollywood, mas por ser um ator excelente por mais de quatro décadas. Inacreditavelmente, ele foi indicado apenas três vezes por suas atuações, em Nascido em 4 de julho, Jerry Maguire e Magnolia.

Jovem confiante

Jon Avnet, que produziu Negócio Arriscado, percebeu a capacidade de Cruise desde o momento em que ele fez teste para o papel de Joel Goodsen no filme, quando Avnet reconheceu “uma forma de confiança – não era arrogância – mas uma forma de confiança muito incomum para um jovem de 19 anos”. Mesmo assim, observa Avnet, Cruise conseguiu compreender o complicado equilíbrio tonal de Negócio Arriscado, que parece ser uma comédia sexual adolescente antes de se tornar uma crítica mais sombria sobre o capitalismo contemporâneo. “Aquela combinação de levar a coisa a sério e ao mesmo tempo ter um senso de humor irônico, mantendo um nível de inocência ou falta de sofisticação”, diz Avnet.

Quanto ao motivo pelo qual o reconhecimento artístico escapou a Cruise, Avnet explica: “Existe uma tradição em Hollywood que é cruel com pessoas com certos dons. As pessoas votam com mesquinhez”.

Agora uma nova geração cresceu com Tom Cruise: os filhos dos boomers e da Geração X, para quem os filmes Missão: Impossível são uma tradição familiar.

Mas, para entender o poder de Cruise, eles precisam ir ao catálogo mais antigo – Questão de Honra e Rain Man, Colateral e Minority Report, Magnolia e Trovão Tropical – para testemunhar em primeira mão o que um ator extraordinariamente versátil pode ser e sempre foi. Na tentativa de preservar as salas de cinema, ele apostou tudo no blockbuster. Depois da parcela final de Missão: Impossível no ano que vem, ele está prestes a fazer história como o primeiro ator a filmar um filme na Estação Espacial Internacional.

Depois de salvar o planeta Terra, restam apenas perguntas. Até onde Cruise irá para explorar aquela energia “Vamos nessa!” a serviço de perseguições, acrobacias e cenários hipercinéticos? “Tenho vinte anos para alcançá-lo”, disse Cruise recentemente ao Sydney Morning Herald, referindo-se a Harrison Ford, de 80 anos. “Espero continuar fazendo filmes Missão: Impossível até ter a idade dele”.

“Sinto que ele é inteligente o bastante para saber que mudar as coisas ou explorar uma área que as pessoas não esperam que ele vá é muito empolgante. As pessoas gostam disso e acho que ele também”, diz Stiller. “Também acho que, a essa altura, ele fez tanta coisa que conquistou o direito de relaxar um pouco”.

O Tom dentro de Cruise permite muitas coisas: relaxar não é uma delas. Talvez até pudesse ser, mas só com a permissão do público. Em última análise, o domínio de Cruise sobre nós é melhor explicado por nosso domínio sobre ele. Ele ainda está diante da câmera, o rosto o mais próximo possível, esperando que digamos a ele exatamente o que queremos.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE WASHINGTON POST - Tom Cruise está prestes a voltar às nossas vidas com Missão: Impossível - Acerto de Contas - Parte 1, a primeira metade da sétima parte da franquia de ação e aventura que ele lançou em 1996, que estreia na quinta-feira, 13.

O filme foi adiado quatro vezes. O burburinho gira em torno da última de uma série de acrobacias cada vez mais audaciosas de Tom como o superagente Ethan Hunt, desta vez com o protagonista pilotando sua motocicleta no topo de uma montanha e depois saltando de paraquedas até um trem em alta velocidade para – o que mais? – salvar o mundo.

Tudo muito adequado para uma série de filmes construída sobre o espetáculo. Mas o elemento mais mítico do que é essencialmente uma lista de reviravoltas – embora executada de maneira impressionante – é o próprio Tom Cruise.

Desde sua estreia na tela, em 1981, no filme de Brooke Shields Amor sem Fim, Cruise provou ter uma durabilidade extraordinária dentro e fora das telas – talvez não a “última” estrela de cinema, como alguns o apelidaram, mas seguramente a fera mais carismática do ecossistema do entretenimento.

Podemos ficar assustados com sua vida privada, intrigados com seus relacionamentos, céticos quanto à sua sinceridade e cronicamente curiosos sobre quem ele é de verdade. Mas Tom Cruise só absorve nossa ambivalência e faz com que ela o deixe mais rápido, mais forte, mais inalcançável. Por tudo isso, continuamos fiéis a Tom Cruise, apenas por causa da forma universal, mas profundamente pessoal, de catarse que só ele pode oferecer.

Depois de Amor sem Fim, Cruise interpretou arquétipos da era Reagan numa série de papéis de destaque:

  • um cadete rebelde em Toque de Recolher,
  • um adolescente bem americano na brilhante comédia Negócio Arriscado,
  • um piloto de caça arrogante em Top Gun.
Tom Cruise em "Top Gun: Maverick."  Foto: Divulgação / Paramount Pictures

‘Top Gun: Maverick’

Depois de insistir por muito tempo que nunca faria uma sequência da ficção militar-industrial de sucesso, ele reprisou seu papel no ano passado em Top Gun: Maverick, que revigorou as cambaleantes salas de cinema depois da pandemia, do streaming e da crescente irrelevância.

Maverick, recriação estilística quase idêntica ao original, com Cruise interpretando uma versão mais humilde e cansada de seu insuportavelmente competente personagem-título, acabou arrecadando cerca de US$ 1,5 bilhão, tornando-se a ave rara mais rara de Hollywood: um fenômeno da cultura pop global e transgeracional conduzido por um ser humano de verdade, e não por atores intercambiáveis soterrados por camadas de Spandex e CGI.

“Você salvou a pele de Hollywood”, disse Steven Spielberg a Cruise em um vídeo que viralizou durante a temporada do Oscar. Mas Cruise também salvou a própria pele. Ou, melhor dizendo, provou que seu domínio sobre o público não se perdeu e continua sobrenaturalmente – até inexplicavelmente – forte.

Sua beleza física angular já foi preenchida e suavizada. Suas acrobacias perigosas estão se aproximando de um território difícil. E sua vida fora das telas às vezes parece mais opaca do que nunca, com desastres de relações públicas pouco lembrados.

De alguma forma, o Tom dentro de Cruise transcendeu tudo: uma combinação única de comprometimento total, ética de trabalho incansável, habilidades físicas impressionantes, entusiasmo ilimitado e bom gosto instintivo que lhe permitiram ir além da fama. “Não basta ser um grande ator e ter um carisma de estrela”, explica o diretor Doug Liman. “Você precisa de todas essas qualidades juntas. Se você não tem uma delas, você não é Tom Cruise”.

Liman se lembra da primeira vez em que apresentou a Cruise o thriller de ficção científica No Limite do Amanhã. O ator ficou interessado, mas, antes de se comprometer, pediu a Liman não mudanças no roteiro ou aprovação de outras estrelas, mas ideias sobre a arte conceitual para o filme. “[Foi] tipo, como seria o trailer do filme?”, Liman explica. “Porque você pode desenvolver um ótimo roteiro, mas, se não for um filme que as pessoas queiram ver, não adianta nada”

Para Liman, o pedido sobre a arte conceitual de Cruise foi só outra maneira de fazer a pergunta que o consume acima de todas as outras e ajuda a explicar sua potência: o que as pessoas querem e como posso entregar o que elas que querem? “Ele reconhece genuinamente que é uma estrela de cinema porque as pessoas gostam dos filmes dele, e não o contrário”, diz Liman. “Não é como se ele fosse ungido. Ele realmente se preocupa com seu público e quer fazer o preço do ingresso valer a pena”.

Obsessão em agradar

A obsessão de Cruise em nos agradar – e a determinação que ele investe para fazer com que tudo pareça ser feito sem qualquer esforço – não deve ser confundida com bajulação. É algo mais orgânico. E, seja congênito, calculado ou uma mistura das coisas, ele chegou ao ponto em que sua intuição para o sucesso de um filme já virou puro reflexo.

Quase desde o início, Cruise fez questão de trabalhar com os melhores, o que explica um currículo que traz nomes como Kubrick, Spielberg e Scorsese, além de Oliver Stone, Paul Thomas Anderson e Michael Mann.

Quando ele começou os filmes Missão: Impossível, contratou Robert Towne, o lendário roteirista de Chinatown, para sofisticar as fórmulas que pareciam batidas. Nos últimos dezesseis anos, seu principal colaborador foi Christopher McQuarrie, roteirista de Os Suspeitos. Como produtor e estrela, ele é todo um departamento de controle de qualidade, cuidando de tudo, desde o elenco até os efeitos visuais (que, para o bem do valor de produção, geralmente são práticos e não digitais).

“As pessoas não sabem como ele é holístico no trabalho de cineasta”, observa Ben Stiller, que conhece Cruise há mais de trinta anos, desde que se conheceram enquanto Cruise filmava A Firma.

Foi Cruise, diz Stiller, quem disse a ele e ao roteirista Justin Theroux que o roteiro da sátira de Hollywood Trovão Tropical precisava de mais um personagem. “Ele disse: ‘Você está tirando sarro dos atores e dos agentes, mas não tem um chefe de estúdio”, lembra Stiller.

Cruise acabou interpretando esse personagem, um executivo de produção estúpido e careca chamado Les Grossman, que se tornou a figura mais icônica do filme, em grande parte graças à disposição de Cruise em parecer ridículo. (O que exemplifica outra regra do Tom dentro de Cruise: entrar 100% no jogo. “Vamos nessa!”, respondeu o ator mais famoso do mundo quando Stiller pediu para ele aparecer num vídeo bobo que ele estava filmando para sua esposa, Christine Taylor. “Adorei!”, gritou Cruise quando Liman lhe disse que queria que ele fizesse papel de covarde em No Limite do Amanhã).

Se você conversar com pessoas que trabalharam com Cruise, desde o início da carreira até os dias atuais, só vai ouvir sobre seu amor genuíno, quase vertiginoso, pelo que faz.

Enquanto dava entrevistas para Minority Report em 2002, Spielberg se lembrou melancolicamente de chegar ao set logo pela manhã e lá encontrar Cruise, pronto para trabalhar.

Sem reclamar

Liman se lembra de definir oito da manhã como horário de início para o elenco de No Limite do Amanhã; Cruise chegava pelo menos quinze minutos antes, perguntando onde estava todo mundo. “Ele dizia: ‘É tipo pegar um voo, as pessoas precisam chegar cedo e estar prontas para viajar’”, diz Liman. “Às vezes, com estrelas de cinema, você precisa ir lá arrancá-las do trailer. Mas com Tom era mais assim: ‘Recebemos essa oportunidade incrível e precisamos usar cada segundo para obter o máximo de valor de produção e performance na tela’”.

Esses discursos motivacionais são marca registrada de Cruise – só de vez em quando viram reclamações, como quando ele criticou algumas pessoas da equipe de Acerto de Contas por violarem as precauções contra a pandemia, ainda em 2021. “Somos o padrão-ouro”, ele disse em um vídeo que viralizou instantaneamente. “Agora eles estão lá em Hollywood fazendo filmes por nossa causa. Porque eles acreditam em nós e no que estamos fazendo aqui. Toda noite ligo para [palavrões] todos os estúdios, todas as seguradoras, todos os produtores, e eles estão aprendendo e usando nosso exemplo para fazer os filmes deles. Estamos criando milhares de empregos, seu [palavrão]. Não quero ver isso nunca mais. Nunca mais!”.

Poucos contestariam que a explosão de Cruise não foi o produto da afetação de uma estrela de cinema, mas sim do foco e do compromisso que o definiram desde o início.

“Tom Cruise adora fazer filmes”, diz April Grace, que estrelou a seu lado em Magnolia, de Anderson. No filme, Cruise interpreta um guru de autoajuda misógino chamado Frank T.J. Mackey, cujo passado vem à tona durante uma entrevista cada vez mais tensa com a jornalista interpretada por Grace. O personagem de Mackey foi um desvio surpreendente para Cruise, que já havia interpretado homens imperfeitos antes, mas ninguém tão rancoroso. Sua cena com Grace é uma luta de boxe tensa e bem calibrada de fintas e defesas verbais, com o personagem de Cruise indo da condescendência loquaz ao medo e, finalmente, à agressão.

Grace lembra que Cruise trabalhava com ela mesmo quando não era necessário. “Já trabalhei com atores muito inferiores que me deixavam para repassar o texto com um assistente quando estavam fora das câmeras”, diz Grace. “Mas Tom não trabalha assim. Certo dia, seu rosto ficou literalmente esmagado contra o [lado] da câmera, para entrar o máximo possível na minha linha de visão, mesmo que eu pudesse ver apenas o canto de seu olho”, diz ela. “Ele estava tipo, ‘Do que você precisa, o que posso fazer, como posso ajudar?’”.

Caso Oprah

É fácil revirar os olhos para a energia messiânica de Cruise, seu fanatismo em nome de uma forma de arte que, pelo menos para ele, parece menos uma profissão do que uma vocação sagrada (será coincidência que ele chegou a pensar em se tornar padre franciscano?). Se você mudar um pouco a lente, até mesmo suas qualidades mais admiráveis assumem contornos de supercompensação: sua obsessão em satisfazer o público como uma extensão da necessidade de trazer alegria e diversão para sua mãe e irmãs depois que seus pais se separaram quando Cruise estava na sexta série; sua ânsia de ler tudo à vista depois de superar a dislexia – com a ajuda, ele disse, da Igreja da Cientologia, na qual ingressou em 1986.

A impressão de que Cruise exagerava ficou maior em 2005, quando ele confessou seu amor pela então namorada Katie Holmes pulando loucamente no sofá durante uma entrevista a Oprah Winfrey. Alguns meses depois, ele criticou Shields por tomar remédios para depressão pós-parto, o que levou a uma entrevista infame no programa Today, durante a qual ele defendeu a Cientologia e sua postura antipsiquiatria para o apresentador Matt Lauer. “Matt. Matt, Matt, Matt, Matt. Você é falastrão”, disse Cruise. “Você nem sabe o que é Ritalina”. Cruise parecia arrogante, impositivo, desequilibrado.

Muitos observadores acharam que ele nunca iria se recuperar. Na época, ele rompeu relações com Spielberg, cujo filme Guerra dos Mundos ele deveria estar promovendo. (Eles ainda não voltaram a trabalhar juntos). E não seria a última vez que Cruise seria questionado, especialmente em relação ao seu relacionamento com a Cientologia, que é oficialmente reconhecida como igreja, mas muitos ex-praticantes e jornalistas a consideram um culto perigoso e abusivo.

Assim como a Entidade, o programa de inteligência artificial que Hunt persegue em Acerto de Contas, Cruise aprende, corrige e tenta de novo. Depois do desastre de 2005, ele montou uma equipe de publicidade de primeira e praticamente se calou, ficando disponível apenas seletivamente. (Ele recusou um pedido de entrevista para este artigo). Sempre revirando o ambiente e as expectativas do público em busca de dados, ele ajusta e melhora, finalmente alcançando o equilíbrio zen perfeito de megacelebridade: onipresença quase constante e distância inescrutável.

Segundo mais importante da Cientologia

É essa capacidade de sair ileso que enlouquece os detratores de Cruise. “Acontece que tenho um enorme conjunto de fatos, particularmente no que diz respeito à maneira como ele e a Cientologia tratam as mulheres, que para mim dificulta muito essa adulação”, diz Maureen Orth, que escreveu um artigo preocupante sobre o relacionamento de Cruise com a atriz e ativista Nazanin Boniadi para a Vanity Fair em 2012. “Não apenas por causa dele, mas [porque] ele é a segunda pessoa mais importante da Cientologia, junto com [o líder da igreja] David Miscavige. A imprensa também não faz seu trabalho direito. Ele sempre consegue passe-livre. Nunca é questionado sobre essas coisas”.

De fato, quando Jerrod Carmichael, apresentador do Globo de Ouro, fez uma piada sobre Cruise e a Cientologia este ano, a piada funcionou, mas não ganhou força. (Carmichael sugeriu que trocassem os prêmios que Cruise devolveu em protesto pelo “retorno seguro” da esposa de Miscavige, Shelly, que não era vista em público havia anos).

Sempre um avatar geracional, Cruise se tornou receptáculo não para nossas aspirações e fantasias, mas também para a exaustão do século 21: pandemias, tumultos políticos da era Trump, demandas prementes de que as ações e crenças privadas de nossas celebridades se alinhem completamente às nossas. Sentindo a ferida na nossa consciência coletiva, o Tom dentro de Cruise age tanto como purgativo quanto como bálsamo. Quem mais conseguiria nos unir após o trauma, a hostilidade tribal e a separação forçada que definiu a vida americana desde 2016?

Cruise esteve notoriamente ausente do Oscar deste ano, apesar de Top Gun: Maverick ter sido indicado a seis prêmios, incluindo o de melhor filme. A desculpa oficial foi um conflito de agenda, mas ele estaria dentro de seu direito de manter o respeito que lhe devem, não por ele ter salvado a pele de Hollywood, mas por ser um ator excelente por mais de quatro décadas. Inacreditavelmente, ele foi indicado apenas três vezes por suas atuações, em Nascido em 4 de julho, Jerry Maguire e Magnolia.

Jovem confiante

Jon Avnet, que produziu Negócio Arriscado, percebeu a capacidade de Cruise desde o momento em que ele fez teste para o papel de Joel Goodsen no filme, quando Avnet reconheceu “uma forma de confiança – não era arrogância – mas uma forma de confiança muito incomum para um jovem de 19 anos”. Mesmo assim, observa Avnet, Cruise conseguiu compreender o complicado equilíbrio tonal de Negócio Arriscado, que parece ser uma comédia sexual adolescente antes de se tornar uma crítica mais sombria sobre o capitalismo contemporâneo. “Aquela combinação de levar a coisa a sério e ao mesmo tempo ter um senso de humor irônico, mantendo um nível de inocência ou falta de sofisticação”, diz Avnet.

Quanto ao motivo pelo qual o reconhecimento artístico escapou a Cruise, Avnet explica: “Existe uma tradição em Hollywood que é cruel com pessoas com certos dons. As pessoas votam com mesquinhez”.

Agora uma nova geração cresceu com Tom Cruise: os filhos dos boomers e da Geração X, para quem os filmes Missão: Impossível são uma tradição familiar.

Mas, para entender o poder de Cruise, eles precisam ir ao catálogo mais antigo – Questão de Honra e Rain Man, Colateral e Minority Report, Magnolia e Trovão Tropical – para testemunhar em primeira mão o que um ator extraordinariamente versátil pode ser e sempre foi. Na tentativa de preservar as salas de cinema, ele apostou tudo no blockbuster. Depois da parcela final de Missão: Impossível no ano que vem, ele está prestes a fazer história como o primeiro ator a filmar um filme na Estação Espacial Internacional.

Depois de salvar o planeta Terra, restam apenas perguntas. Até onde Cruise irá para explorar aquela energia “Vamos nessa!” a serviço de perseguições, acrobacias e cenários hipercinéticos? “Tenho vinte anos para alcançá-lo”, disse Cruise recentemente ao Sydney Morning Herald, referindo-se a Harrison Ford, de 80 anos. “Espero continuar fazendo filmes Missão: Impossível até ter a idade dele”.

“Sinto que ele é inteligente o bastante para saber que mudar as coisas ou explorar uma área que as pessoas não esperam que ele vá é muito empolgante. As pessoas gostam disso e acho que ele também”, diz Stiller. “Também acho que, a essa altura, ele fez tanta coisa que conquistou o direito de relaxar um pouco”.

O Tom dentro de Cruise permite muitas coisas: relaxar não é uma delas. Talvez até pudesse ser, mas só com a permissão do público. Em última análise, o domínio de Cruise sobre nós é melhor explicado por nosso domínio sobre ele. Ele ainda está diante da câmera, o rosto o mais próximo possível, esperando que digamos a ele exatamente o que queremos.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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