Cats, que estreou no West End em 1981, foi o marco inaugural dos megamusicais, abrindo caminho para Les Misérables, Wicked e tantos outros. O espetáculo com música de Andrew Lloyd Webber ficou em cartaz por 21 anos consecutivos em Londres e 18 em Nova York. Mas sua premissa exige um esforço maior de suspensão da descrença, já que se trata de humanos vestidos de gatos que disputam um lugar no céu. Inspirado em poemas de T. S. Eliot, o musical tem um fiapo de história ligando os números. Por isso, apesar do sucesso no teatro, uma adaptação para o cinema sempre seria arriscada. Coube a Tom Hooper, vencedor do Oscar de direção por O Discurso do Rei (2010), a tarefa.
Hooper, que dirigiu também o musical Os Miseráveis (2012) e A Garota Dinamarquesa (2015), apostou em um elenco eclético. Há atores clássicos como Judi Dench, como Deuteronomy, a chefe do bando de gatos conhecido como Jellicles, e Ian McKellen, como Gus, o Theatre Cat. Idris Elba faz o papel de Macavity, o um gato criminoso, enquanto James Corden e Rebel Wilson, respectivamente Bustopher Jones e Jennyanydots, oferecem alívio cômico. Os cantores Taylor Swift e Jason Derulo são Bombalurina e Rum Tum Tugger. Dois papéis importantes, Mr. Mistoffelees e Munkustrap, ficaram com os atores Laurie Davidson e Robbie Fairchild, que tem experiência na Broadway.
A Jennifer Hudson, coube o papel de Grizabella, a gata glamourosa que hoje vive à margem – e canta Memory, a música mais importante da obra (leia a seguir). Bailarina principal do Royal Ballet, Francesca Hayward faz sua estreia no cinema como Victoria, uma jovem gata que se junta ao bando no início do filme e vira seu fio condutor. Além de bailarinos clássicos como Hayward e Fairchild, há gente que veio do teatro musical e nomes como os irmãos franceses Les Twins, que têm origem na street dance e se apresentaram com Beyoncé. “Todos nos ajudamos uns aos outros”, disse Davidson em entrevista ao Estado em Londres. “Era como um caldeirão de culturas que criou algo único e empolgante.”
Os atores passaram pela “escola de gatos”, alguns por três meses. “Foi uma experiência que nunca mais vamos usar na nossa vida de novo, como álgebra”, disse Jason Derulo, em tom de brincadeira. A preparação envolvia jogos em que os atores eram vendados, para confiar mais em seus outros sentidos, ou “estátua”. “Mas Tom Hooper não queria que imitássemos gatos. Somos humanos interpretando gatos, não estamos andando de quatro o tempo todo. Somos humanos felinos, dançando, cantando e atuando como gatos”, contou Francesca Hayward. Rebel Wilson teve apenas duas semanas de treinamento. “Eu cheguei e pensei: ‘Ninguém está achando isso engraçado?’”, disse, rindo. “A gente tinha de cheirar e lamber o outro. Fiz algumas vezes com Sir Ian McKellen, e ele realmente estava envolvido. Chegava a rosnar para os gatos de que não gostava.”
Na hora de filmar, mais desafios: como a ideia era fazer captura de movimentos (como em O Rei Leão ou Avatar), porque o rosto e o corpo dos atores seria completado com orelhas, bigodes, pelos e rabo, tudo era feito numa roupa colante e aparatos no rosto que depois transferem os gestos e expressões faciais para um computador. “Era como estar nu na frente dos outros todo dia”, descreveu Derulo.
Rebel Wilson disse ter perdido mais de três quilos nos quatro dias que levou para filmar seu principal número (que envolve ratos e baratas numa cozinha) por causa do calor da roupa e do set. Fairchild contou que o aquecimento era feito com polichinelos e flexões de braço enquanto cantavam. “Assim ficávamos acostumados ao esforço físico sem que afetasse a voz.” A maior parte dos cenários foi construída em escala gigante para tentar se aproximar às proporções dos gatos. Todos os números musicais foram filmados ao vivo.
Para Jennifer Hudson, o maior desafio foi cantar Memory tomada após tomada, 35 vezes no total. “Vocalmente não foi problema para mim, mas a emoção era realmente exaustiva. Cheguei a tirar um cochilo em pleno set”, disse a atriz. Francesca Hayward, que nunca tinha cantado em público, ficou com a missão de defender a única canção original do filme, Beautiful Ghosts, composta por Taylor Swift e Lloyd Webber.
A escolha de fazer um misto de humanos e gatos com ajuda dos efeitos especiais foi o principal alvo das críticas quando saíram os trailers. “Teve um pequeno filme chamado Avatar que despertou o mesmo tipo de reação. Toda vez que algo é diferente, a resposta é extrema”, ironizou Rebel Wilson. O filme estreou na sexta-feira, dia 20, nos Estados Unidos, sob uma chuva de críticas negativas, mas engraçadas. Nas sessões, as pessoas cantam, dançam e interagem com o longa. Depois que o filme já estava em cartaz, houve uma atualização dos efeitos especiais (que ainda não estavam finalizados na sessão de imprensa em Londres, menos de dez dias antes da estreia). O longa parece que não vai ter o mesmo sucesso da peça, já que arrecadou apenas US$ 6,5 milhões no primeiro fim de semana americano, ficando em quarto lugar na lista.
Memory. Vencedora do Oscar por Dreamgirls – Em Busca de um Sonho, Jennifer Hudson tem a missão de entoar Memory, a canção mais famosa de Cats, na adaptação cinematográfica. Ela falou ao Estado sobre o filme e a importância dessa música em sua vida.
Você conhecia bem a música? Sim. Cats sempre foi representada por essa música para mim. E minha conexão com tudo é sempre pela música.
A canção é o momento de maior emoção do filme. Como se colocou naquele estado emocional? Acho que, em algum momento da vida, todos nos sentimos rejeitados como minha personagem, Grizabella, ou achamos não ser capazes. Mas a música em si me emociona. Tivemos de filmar mais de 30 vezes porque, nas primeiras 13 ou 14, eu não conseguia me conter, abria o berreiro no meio. E me lembrava muito da minha mãe dizendo: “Você está sempre chorando, apenas cante a música!”. Então, precisei de um tempo para encontrar o equilíbrio da emoção e poder contar a história de Grizabella.
'Memory' foi cantada por tantas pessoas diferentes. Como encontrar a sua versão? Essa era minha principal questão. Também porque a música é tão perfeita que não precisa de nada. É um clássico, não dá para tirar do coMntexto, nem adicionar um riff aqui ou estender uma nota acolá. Então, achei que a única forma era me permitir sentir o que quer que eu sentisse, e essa seria a minha versão. Ser honesta comigo mesma.
Acha que gosta de trabalhar sob pressão? Porque, depois de cantar 'Memory', você vai encarnar Aretha Franklin, em 'Respect'. Eu sempre me pergunto isso. Por que estou fazendo isso comigo? Mas minha mãe sempre me dizia que eu trabalho bem sob pressão. E eu gosto muito de um desafio.
Mas sempre foi assim? Deixava para fazer suas tarefas de escola na última hora? Sempre fui aplicada. Mas acho que a vida sempre prepara você para o que vem a seguir. Me lembro que, estava no curso avançado de canto na escola, tinha uma competição, minha avó morreu e a irmã dela também, tudo na mesma semana em que estava me preparando. Vendo como foi minha vida depois, e as coisas com que tive de lidar, enquanto fazia o que faço, me pareceu uma preparação (em 2008, dois anos depois de Hudson ganhar o Oscar, sua mãe, seu irmão e seu sobrinho de 7 anos foram assassinados pelo ex-marido da sua irmã). Mas minha mãe sempre dizia que o que não merece trabalho duro não vale a pena. E, ao pensar nesses desafios todos, cantar Memory, fazer Respect, eu também penso no que ela dizia: “Você só pode fazer o seu melhor”. Eu nunca vou ser Aretha Franklin, mas posso fazer o melhor que Jennifer Hudson pode fazer.
Conheceu Aretha Franklin? Como está se preparando? Sim, eu a encontrei várias vezes. Meu método é muito simples: durmo com Aretha, acordo com Aretha. Na minha cabeça, estou nos anos 1960 agora.
Você é gateira? Sim. Cresci tendo gatos e, quando entrei no projeto, disse ao diretor Tom Hooper que ia arrumar dois gatos e que ia nomeá-los Grizabella e Macavity. E tenho dois gatos, Grizabella e Macavity, além de três cachorros, Oscar, Grammy e Dreamgirl. Grizabella se parece comigo no filme. E quis que Macavity fosse um Sphynx porque ele parece do mal, e Macavity é o vilão, mas juro que é o gato mais doce do mundo. / M.M.