O filme Ainda Estou Aqui, para além e dentro da história que conta, tinha um desafio no meio do caminho - ou do roteiro. Há, na primeira metade, a passagem do protagonismo do comando da família Paiva das mãos de Rubens, o próspero engenheiro, que toca a casa de maneira quase lúdica, para Eunice, a mãe zelosa com cinco filhos e preocupada com o ponto do suflê, refeição predileta dos moradores da espaçosa residência na zona sul carioca e dos amigos que a frequentavam.
Era imprescindível, então, que o diretor Walter Salles contasse com um casal de atores que mergulhasse profundamente no grande trauma da história: uma mulher que, com o desaparecimento do marido, levado por agentes da ditadura militar a prestar um depoimento, tem que assumir a casa e começar uma busca por justiça.
Com a opção de Salles em filmar o roteiro em ordem cronológica, Fernanda Torres, a Eunice, pôde, de fato, ter uma ausência quase real. Selton Mello, por sua vez, com um trabalho minucioso, fez com que a presença de Rubens Paiva se estendesse até a cena final. A história é baseada no livro homônimo do escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do casal Rubens e Eunice.
Em entrevista ao Estadão, Fernanda Torres e Selton Mello falaram sobre a essência de seus personagens no filme e como fizeram para alcançar a essência de cada um deles. Selton não poupa elogios a Fernanda, com quem já havia trabalhado na TV em A Comédia da Vida Privada e Os Normais, em um momento de descontração do papo, quando entregam o que ocorre nos bastidores. “A parceira ideal para trabalhar”, diz.
Fernanda volta a falar sério, ou, “realisticamente”, como ela prefere dizer, para analisar uma possível confirmação de Ainda Estou Aqui, filme original Globoplay, no Oscar 2025 na categoria de melhor filme estrangeiro, ou até mesmo em alguma outra - a atriz corre por fora para uma indicação ao prêmio de melhor atriz.
“Se for nomeado, já dá a festa, entendeu? Porque a pior coisa que pode ocorrer com esse filme é, depois de algo tão incrível, acabar em ‘ah, que pena!’ (se perder). Não pode!”, diz.
Fernanda, o filme conta história de Eunice Paiva, que é também a história de muitas mulheres brasileiras que viveram o tempo da ditadura militar no Brasil. Como escreveu Aldir Blanc, ‘choram Marias e Clarices’, ou seja, Eunice representa muitas outras mulheres também, embora esteja em um microscosmo que é a casa dos Paiva. Como você construiu essa personagem?
Eunice tem muitos lados. Ela começa o filme como a mulher dedicada do grande democrata e engenheiro Rubens Paiva. Ela é uma dona de casa de altíssimo nível - e intelectual. Tanto faz um suflê incrivelmente quanto lê (o escritor alemão) Heiner Müller. Mas ela é tutelada por esse homem. O desaparecimento dele faz com que ela tenha que assumir o protagonismo e ser pai e mãe dessa família, e aceitar que aquele momento utópico acabou. É um acontecimento trágico. A história dela agora é dali para frente. Ela se mantém em silêncio com os filhos porque também não tem resposta, o Estado não lhe dá respostas. Então ela se decide por um silêncio total, que é muito contraditório, misterioso, e se reinventa como advogada. Ela entende, como advogada, que a arbitrariedade que ocorreu com ela também se dá do Estado para com periféricos, pobres, indígenas. Eunice tem uma compreensão disso muito cedo no Brasil.
Há um paralelo entre a Eunice e o Brasil. O País se redemocratizando e ela se reinventando como mulher. Acreditando na Justiça como um instrumento de firmar o pé na redemocratização. O Brasil com a Constituição e ela como advogada. Mais tarde, quando o País começa a perder a memória de por que ele fez essa luta pela democracia, ela tem Alzheimer. É uma mulher que nunca fez questão de aparecer, o que é muito raro. As lutas dela foram sempre muito contundentes, mas ela as travou na sua privacidade. É muito impressionante. Compor essa mulher foi muito complexo. Essa mistura de uma mulher tão feminina e, ao mesmo tempo, tão firme. Eu costumo dizer que é como contar a Guerra de Troia pelo ponto e vista e a Briseuda ou de Penélope, ou seja, das mulheres da guerra.
A passagem do protagonismo de Rubens para Eunice no filme é retratada de uma maneira muito bonita...
Selton - É muito bonito mesmo. E são os reencontros. Eu e Fernanda já trabalhamos em várias configurações, em comédia... Aliás, algo que ainda não falei tão claramente: eu considero a Nanda aquela parceira ideal para trabalhar. Porque é muito inteligente. Uma atriz excepcional. Mas muito divertida. Os bastidores são maravilhosos (risos).
Fernanda - Você também, Selton.
Selton - Nós nos damos muito bem! E nos divertimos, mesmo fazendo um filme com essa dramaticidade, com essa densidade tão grande. Nós morremos de rir.
Há essa descontração até mesmo na hora de filmar?
Selton - Quando temos que entrar em cena, vamos embora! Vamos lá no fundão!
Fernanda - Teve uma cena do início do filme, nós na cama, em que ele vem escovando os dentes e, quando o Selton acabou o plano dele, ele falou assim: “Posso repetir? Porque quando eu saí do banheiro, eu estava muito feliz comigo e no corredor eu já achei que estava muito ruim e agora no armário eu já queria abandonar minha profissão”. Eu falei: isso é a nossa vida! Quando ele foi embora (do filme), eu senti imenso.
Selton, gostaria que você falasse sobre seu personagem pela ótica de uma das músicas escolhida pelo Walter Salles para a trilha sonora, ‘É Preciso dar um Jeito, Meu Amigo’, na voz do Erasmo. Ela tem um verso que diz que ‘as crianças são levadas pelas mãos de gente grande’. E o Rubens Paiva é justamente o lugar de afeto para os filhos, de proteção, em meio a tudo o que o Brasil vivia naquele momento.
É o que a Nanda falou. Tem algo de mágico naquilo que fazemos. Você falou isso e eu pensei em uma outra coisa. Pensei em como fui ajudado pelas crianças (do elenco) do filme. O Marcelinho (o ator mirim Guilherme Silveira), por exemplo, viramos unha e carne. Nós nos sacaneávamos, falávamos sobre futebol. Virou algo muito forte. E eles me ajudaram demais a não me esquecer da função primeira de ser ator - que é a de estar, de brincar, jogar o jogo. É lúdico. Não é para ser levado tão a sério. Eu fui dirigido também por essas crianças. E, aí, me lembro de quando eu era criança e comecei (a carreira). Quando eu encontro uma criança no set, me lembro por que faço isso (ser ator). Talvez eu tenha respondido a você de outra maneira, não? Tem uma pureza ali, na forma de eu me expressar como Rubens, e, talvez, seja isso que traga o encantamento que faça com que ele reverbere durante o filme todo.
A escolha do filme para ser o representante brasileiro no Oscar 2025 criou uma expectativa pelo prêmio. Talvez até como uma revanche pela derrota da Fernanda Montenegro no passado. O que o Oscar significa, nesse momento, para vocês do elenco?
Fernanda - Falando realisticamente... Estamos na shortlist (lista de pré-indicados) de tudo. O que já é um milagre. E em todos os festivais mais importantes e menos importantes do mundo. Tudo isso com um filme falado em português. Mas, claro, tem os tais dos prêmios. E tem o Oscar. Acho que a chance do filme estar entre os escolhidos estrangeiros é imensa. Ganhar, não sei. É um ano com filmes muitos fortes da França, da Alemanha, do Irã... São maravilhosos. Então, não sei se ganharemos. Existe alguma chance para indicações para além (da categoria) filme estrangeiro? Talvez. E se alguma dessas indicações sair, já estourem a champanhe! Não esperem ganhar. Porque é impossível uma pessoa falando português ganhar o Oscar. Quando falam da mamãe, que ela não ganhou... Se for nomeado, já dá a festa, entendeu? Porque a pior coisa que pode ocorrer com esse filme é, depois de algo tão incrível, acabar em ‘ah, que pena!’. Não pode!