Woody Allen discute sexo, casamento, amor, perseguição e aposentadoria: ‘Estou cansado’; veja vídeo


Em entrevista ao ‘Estadão’, o cineasta de 88 anos fala sobre a nova comédia ‘Golpe de Sorte em Paris’, 50º filme de sua carreira, e aborda temas recorrentes de sua vasta obra cinematográfica - além de comentar suas impressões sobre Machado de Assis

Por Gabriel Zorzetto
Atualização:
Foto: O2 Filmes/Divulgação
Entrevista comWoody AllenCineasta

Woody Allen acredita que teve “muita sorte” em sua vida e que foi um cineasta apenas “bom o suficiente para entreter as pessoas”. Modéstia condizente ao mestre do humor autodepreciativo, pessimista e neurótico. Para muitos, porém, Allen foi bem mais do que isso. Ao longo de mais de cinco décadas, o diretor abordou com rara destreza e honestidade a complexidade dos relacionamentos amorosos e definiu um estilo próprio na história da sétima arte.

Cronista das trivialidades, ele começou na comédia stand-up, nos anos 1950, depois escreveu para programas televisivos de humor e então seguiu carreira monumental no cinema, tendo vencido 4 Oscars e acumulado outras 20 indicações. Realizador de clássicos como Annie Hall (1977), Manhattan (1979) e Hannah e Suas Irmãs (1986), ele extraiu de Nova York, sua terra natal, histórias deliciosas que se tornaram universais.

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Ao contrário da maioria dos colegas americanos de sua geração, Allen trouxe para as telonas profundas reflexões filosóficas acerca do comportamento humano. Seus filmes serviram quase como uma espécie de terapia para expor sentimentos reprimidos na sociedade, sempre com leveza e sarcasmo. O diretor nunca negou ter bebido da fonte de caras como Ingmar Bergman ou Federico Fellini, influências latentes em sua filmografia.

Por causa dessa obsessão pelo cinema europeu, Woody também expandiu os horizontes e gravou em algumas cidades do Velho Continente: Londres em Match Point (2005), Scoop (2006) e O Sonho de Cassandra (2007); Barcelona em Vicky Cristina Barcelona (2008); San Sebastián em O Festival do Amor (2020); Roma em Para Roma com Amor (2012); e Paris em Meia-Noite em Paris (2011) e Golpe de Sorte em Paris – 50º filme de sua carreira, que chega aos cinemas brasileiros em 19 de setembro. A comédia foi rodada integralmente em francês, algo inédito para Allen.

Em entrevista de 15 minutos por videoconferência ao Estadão, direto de sua casa na Big Apple, o diretor de 88 anos falou sobre a nova produção, além de temas recorrentes de sua vasta obra, como sexo, amor, casamento e ciúmes. O roteirista ainda comentou sua admiração por Machado de Assis, a possibilidade de aposentadoria e disse que não ‘levou a sério’ a tentativa de ‘cancelamento’ em torno de seu nome após as polêmicas recentes envolvendo sua ex-mulher, a atriz Mia Farrow.

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'Golpe de Sorte em Paris', novo filme de Woody Allen, estreia no Brasil no dia 19 de setembro Foto: Thierry Valletoux/Divulgação

Tudo começou quando Allen se apaixonou pela jovem Soon-Yi Previn, com quem ele é casado há mais de 20 anos. Soon-Yi é filha adotiva de Farrow e, após a história vir à tona, a estrela de A Rosa Púrpura do Cairo (1985) tentou provar na Justiça que o cineasta teria molestado Dylan, outra filha do casal. Duas investigações independentes, porém, concluíram que não houve abuso e o caso nunca foi ao tribunal.

Desde então, o artista foi perseguido pela mídia e por parte da opinião pública, além de ter perdido oportunidades de trabalho em Hollywood. Autor de primeira categoria, ele escreveu extensamente sobre o assunto em sua Autobiografia (2020, Globo Livros) e, por esta razão, o tema não foi tratado diretamente nesta entrevista.

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Como foi transportar seu humor para a língua francesa?

Foi muito fácil, realmente, porque todos os atores falavam inglês. Então eu podia falar com eles na minha língua nativa, e então eles atuavam em francês. Mas quando você vê pessoas atuando em outro idioma, é muito fácil notar, como tenho certeza que você fez em muitos filmes que são em idiomas estrangeiros para você, você pode dizer quem são os bons atores, quem são os grandes atores e quais não são tão fortes. E então era muito fácil. Eu os assistia, eles faziam, e eu podia dizer o que eles estavam dizendo, pois escrevi a coisa, e eles fizeram bem. E se eu precisava que eles estivessem um pouco mais bravos ou um pouco mais doces ou o que fosse, eu diria a eles em inglês. Eles entendiam e faziam.

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O senhor é o maior contador de histórias de Nova York, mas também explorou cidades europeias como Roma, Londres e Paris. O que a Europa oferece que a América carece?

Bem, apenas a mudança de atmosfera e o fato de que o cinema europeu foi uma grande influência na minha geração de cineastas. Quando comecei, todos os grandes filmes que vimos em Nova York eram feitos por italianos, franceses, suecos, eram todos filmes europeus. E então fazer filmes na Europa era uma grande honra para nós. E é por isso que meu 50º filme eu fiz em francês, porque o cinema francês foi tão influente para nós, e também o cinema italiano e o cinema sueco. Buñuel ou Fellini, são deuses do cinema. Além disso, cada país na Europa tem uma sensação única. Se você faz um filme em Paris, você faz um filme muito diferente do que faria em Barcelona, que é bastante diferente de fazer um em Manhattan. Fiz tantos filmes em Nova York que [gravar na Europa] me deu algumas atmosferas diferentes.

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Seu novo filme é uma ode ao acaso e o senhor mencionou em sua autobiografia que resumiria sua vida como ‘sorte’. Por quê? Não se vê como um cineasta talentoso?

Eu me vejo minha vida inteira como sendo sortudo. Eu vim de uma família agradável. Eu tive sucesso no meu trabalho. Eu tive sorte de ter um talento que as pessoas reconheceram e gostaram. Eu tenho sido saudável na minha vida até agora. Eu tenho uma família agradável. Sabe, eu fui muito, muito sortudo. Eu não tive azar terrível, espero que não me alcance. E como cineasta acho que fui bom. Quero dizer, não na classe de Kurosawa, mas ‘OK’. Sou bom o suficiente para entreter as pessoas. Você pode ir a um dos meus filmes e, se eu fiz um bom filme, você não terá perdido seu tempo. Valerá a pena. Isso não é para dizer que todos os meus filmes são bons. Alguns são bons, alguns não são. Mas se você conseguir pegar um bom, pode ser divertido para você.

Você pode ir a um dos meus filmes e, se eu fiz um bom filme, você não terá perdido seu tempo. Valerá a pena. Isso não é para dizer que todos os meus filmes são bons. Alguns são bons, alguns não são.

Woody Allen

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Talvez não exista outro cineasta que saiba abordar a complexidade das relações amorosas como o senhor. Por que os homens não gostam de discutir a relação com as mulheres?

Bem, provavelmente, quanto menos se fala, melhor. Quero dizer, porque relacionamentos são emocionais e falar é cerebral. Você está falando do intelecto, na verdade. Você está tentando fazer sentido das coisas e articulá-las de maneira coerente. E você está falando sobre coisas que são baseadas em sentimentos em você que são conflitantes, intensos, contraditórios e assustadores. Então, é um assunto muito difícil de se falar. Se isso leva a conversas sobre sexo, aí você realmente está em apuros porque quanto menos se fala sobre isso, melhor. Não é um bom assunto para se falar. Então, quanto menos falar sobre o relacionamento, você simplesmente o aproveita mais. E se não aproveita, corrija ou passe para outro. Mas falar sobre isso o tempo todo é muito difícil de colocar em termos intelectuais lógicos e coerentes aquilo que é baseado em sentimentos emocionais e selvagens.

O cineasta Woody Allen venceu 4 Oscars Foto: Reprodução/Woody Allen via Facebook

O casamento é um tema presente neste filme, bem como em toda a sua obra. O senhor acredita que o casamento se tornou uma instituição fracassada e cínica?

Não, não. Eu acho que o casamento é bom, mas dependendo de cada circunstância é muito diferente. Eu acho que o problema era anos atrás, quando havia um estigma se você não se casasse. E isso era um estigma ridículo. Muitas mulheres não queriam se casar. Muitos homens não queriam se casar. E não deveria haver nada do que se envergonhar sobre isso. Mas cada situação é diferente. Uma pessoa vive sua vida sem nunca se casar, ou completamente solteira ou morando junto com alguém e outra pessoa quer se casar e desfrutar dos laços legais do casamento. Mas não há uma generalização. É diferente em cada caso de cada pessoa.

Woody Allen e Diane Keaton no clássico 'Manhattan' Foto: Reprodução/Woody Allen via Facebook

E o personagem de Jean no filme também é muito ciumento. Acha que o ciúme é natural e faz parte dos relacionamentos?

Eu acho que o ciúme é algo que as pessoas muitas vezes têm que lidar. Algumas são mais propensas a se tornarem ciumentas e outras pessoas são menos propensas. Mas certamente é um fator na vida de muitas pessoas que, se a ocasião surgir, elas têm que lidar com isso, viver com isso e se acomodar da melhor maneira possível.

Uma de suas frases mais famosas vem de ‘Noites Eróticas de uma Noite de Verão’ (1983): ‘A diferença entre sexo e amor é que o sexo alivia a tensão e o amor é a causa’ – um complementa o outro, certo?

Eu sempre sinto que há dois tipos de sexo. Há o sexo quando você está solteiro, onde não está relacionado ao amor. Está relacionado apenas à intimidade entre as pessoas por prazer e não tem um significado mais profundo para qualquer uma das partes. E então há o tipo de sexo que de alguma forma reafirma ou intensifica seu sentimento pela pessoa que você ama. E toda vez que você faz sexo com essa pessoa, intensifica esse sentimento que você tem por ela. Mas todo mundo tem seus próprios sentimentos. Eles chegam às próprias conclusões sobre sexo. E difere, sabe, para todo mundo em toda cultura.

O senhor atuou em muitos de seus filmes. Acha que o público e alguns críticos podem ter confundido as ideias de Woody Allen com as ideias dos personagens de Woody Allen?

Sim, esse é um problema comum que os atores têm. Sabe, um ator como John Wayne, as pessoas achavam que era um grande herói másculo na vida real. Acho que Marlon Brando disse muitas vezes que as pessoas o confundiam com os personagens que ele interpretava nos filmes. E em um nível menor, isso aconteceu comigo. As pessoas pensam que o personagem que eu interpreto nos filmes reflete quem eu sou na vida real. E, sabe, há algumas semelhanças. Mas no cinema, o personagem que eu interpreto é tão grandemente exagerado que, se eu fizesse isso na vida real, eu não aguentaria. Eu não poderia fazer nada. Então, não sou o personagem que você vê nos filmes. Eu me visto como esse personagem, e soo como ele. Mas eu sou bastante diferente na minha vida séria.

Em um dos seus melhores filmes, ‘Memórias’ (1980), o senhor explorou o relacionamento de amor e ódio do público com celebridades, o que me leva a uma pergunta sobre a cultura do cancelamento. Alec Baldwin, Kevin Spacey e você enfrentaram a cultura do cancelamento. Como o senhor mantém sua mente saudável lidando com esse tipo de perseguição?

Bem, não posso falar por eles porque eles estavam enfrentando situações diferentes. E ambos se saíram muito bem quando foram a tribunal, de forma vitoriosa. Eu não tive um problema tão grande, pois nunca tive que ir ao tribunal. E então eu nunca realmente levei a sério. Apenas continuei trabalhando e não pensei sobre isso e fiz meus filmes. E, sabe, na prática, nunca me afetou de forma alguma. Quero dizer, as pessoas que gostavam dos filmes vieram ver os filmes. As pessoas que não gostavam dos filmes ficaram longe. Não foi diferente do que 20 anos atrás, 50 anos atrás. Então, para mim, não foi um problema. Eu simplesmente nunca pensei nisso e funcionou. E sempre pude trabalhar. E ainda posso trabalhar, se eu escolher.

Woody Allen (ao centro) dirige cena de 'Golpe de Sorte em Paris' Foto: Thierry Valetoux/Divulgação: O2 Play

O senhor já revelou que gosta de Machado de Assis. O que mais te atraiu nele? Leu outros livros brasileiros?

Alguém uma vez me enviou seu livro [Memórias Póstumas de Brás Cubas] e disse que achava que eu gostaria. E eu li e gostei. Achei ele muito espirituoso. Eu acho, como Susan Sontag apontou na introdução a uma das coletâneas de seus livros, ou daquele livro, que ele era surpreendentemente moderno. Fiquei surpreso com alguém escrevendo nos anos em que ele escreveu soar tão moderno. Fiquei muito, muito impressionado. E então li outras histórias dele. Ele era muito espirituoso, divertido, cínico e não sentimental. Era tudo o que você gostaria em um escritor cômico.

‘Golpe de Sorte em Paris’ foi realmente seu último filme ou o senhor vai fazer pelo menos mais um?

Por anos, eu sempre tive dificuldade em levantar dinheiro para filmes. E não gosto de, sabe, fazer ligações, ir almoçar ou jantar, tentar um pouco aqui e levantar algum dinheiro lá. Estou cansado disso. Cinquenta filmes são suficientes. Agora, se alguém aparecer e disser: ‘nós amamos seus filmes, pagaremos por outro filme para você fazer’, e eu não tenha que ter um milhão de conversas, então eu provavelmente faria porque tenho algumas boas ideias para filmes. Mas sou preguiçoso. Eu não quero trabalhar novamente em solicitar financiamento. Então se alguém sair do nada e disser que vai financiar meu filme, ótimo. Mas caso contrário, eu ficaria feliz em apenas escrever para o teatro.

Pôster nacional de 'Golpe de Sorte em Paris' Foto: Divulgação/O2 Play

Golpe de Sorte em Paris

  • Direção e roteiro: Woody Allen
  • Elenco: Lou de Laage, Niels Schneider, Anna Laik, Melvil Poupaud
  • Lançamento: 19 de setembro (O2 Filmes)

Woody Allen acredita que teve “muita sorte” em sua vida e que foi um cineasta apenas “bom o suficiente para entreter as pessoas”. Modéstia condizente ao mestre do humor autodepreciativo, pessimista e neurótico. Para muitos, porém, Allen foi bem mais do que isso. Ao longo de mais de cinco décadas, o diretor abordou com rara destreza e honestidade a complexidade dos relacionamentos amorosos e definiu um estilo próprio na história da sétima arte.

Cronista das trivialidades, ele começou na comédia stand-up, nos anos 1950, depois escreveu para programas televisivos de humor e então seguiu carreira monumental no cinema, tendo vencido 4 Oscars e acumulado outras 20 indicações. Realizador de clássicos como Annie Hall (1977), Manhattan (1979) e Hannah e Suas Irmãs (1986), ele extraiu de Nova York, sua terra natal, histórias deliciosas que se tornaram universais.

Ao contrário da maioria dos colegas americanos de sua geração, Allen trouxe para as telonas profundas reflexões filosóficas acerca do comportamento humano. Seus filmes serviram quase como uma espécie de terapia para expor sentimentos reprimidos na sociedade, sempre com leveza e sarcasmo. O diretor nunca negou ter bebido da fonte de caras como Ingmar Bergman ou Federico Fellini, influências latentes em sua filmografia.

Por causa dessa obsessão pelo cinema europeu, Woody também expandiu os horizontes e gravou em algumas cidades do Velho Continente: Londres em Match Point (2005), Scoop (2006) e O Sonho de Cassandra (2007); Barcelona em Vicky Cristina Barcelona (2008); San Sebastián em O Festival do Amor (2020); Roma em Para Roma com Amor (2012); e Paris em Meia-Noite em Paris (2011) e Golpe de Sorte em Paris – 50º filme de sua carreira, que chega aos cinemas brasileiros em 19 de setembro. A comédia foi rodada integralmente em francês, algo inédito para Allen.

Em entrevista de 15 minutos por videoconferência ao Estadão, direto de sua casa na Big Apple, o diretor de 88 anos falou sobre a nova produção, além de temas recorrentes de sua vasta obra, como sexo, amor, casamento e ciúmes. O roteirista ainda comentou sua admiração por Machado de Assis, a possibilidade de aposentadoria e disse que não ‘levou a sério’ a tentativa de ‘cancelamento’ em torno de seu nome após as polêmicas recentes envolvendo sua ex-mulher, a atriz Mia Farrow.

'Golpe de Sorte em Paris', novo filme de Woody Allen, estreia no Brasil no dia 19 de setembro Foto: Thierry Valletoux/Divulgação

Tudo começou quando Allen se apaixonou pela jovem Soon-Yi Previn, com quem ele é casado há mais de 20 anos. Soon-Yi é filha adotiva de Farrow e, após a história vir à tona, a estrela de A Rosa Púrpura do Cairo (1985) tentou provar na Justiça que o cineasta teria molestado Dylan, outra filha do casal. Duas investigações independentes, porém, concluíram que não houve abuso e o caso nunca foi ao tribunal.

Desde então, o artista foi perseguido pela mídia e por parte da opinião pública, além de ter perdido oportunidades de trabalho em Hollywood. Autor de primeira categoria, ele escreveu extensamente sobre o assunto em sua Autobiografia (2020, Globo Livros) e, por esta razão, o tema não foi tratado diretamente nesta entrevista.

Como foi transportar seu humor para a língua francesa?

Foi muito fácil, realmente, porque todos os atores falavam inglês. Então eu podia falar com eles na minha língua nativa, e então eles atuavam em francês. Mas quando você vê pessoas atuando em outro idioma, é muito fácil notar, como tenho certeza que você fez em muitos filmes que são em idiomas estrangeiros para você, você pode dizer quem são os bons atores, quem são os grandes atores e quais não são tão fortes. E então era muito fácil. Eu os assistia, eles faziam, e eu podia dizer o que eles estavam dizendo, pois escrevi a coisa, e eles fizeram bem. E se eu precisava que eles estivessem um pouco mais bravos ou um pouco mais doces ou o que fosse, eu diria a eles em inglês. Eles entendiam e faziam.

O senhor é o maior contador de histórias de Nova York, mas também explorou cidades europeias como Roma, Londres e Paris. O que a Europa oferece que a América carece?

Bem, apenas a mudança de atmosfera e o fato de que o cinema europeu foi uma grande influência na minha geração de cineastas. Quando comecei, todos os grandes filmes que vimos em Nova York eram feitos por italianos, franceses, suecos, eram todos filmes europeus. E então fazer filmes na Europa era uma grande honra para nós. E é por isso que meu 50º filme eu fiz em francês, porque o cinema francês foi tão influente para nós, e também o cinema italiano e o cinema sueco. Buñuel ou Fellini, são deuses do cinema. Além disso, cada país na Europa tem uma sensação única. Se você faz um filme em Paris, você faz um filme muito diferente do que faria em Barcelona, que é bastante diferente de fazer um em Manhattan. Fiz tantos filmes em Nova York que [gravar na Europa] me deu algumas atmosferas diferentes.

Seu novo filme é uma ode ao acaso e o senhor mencionou em sua autobiografia que resumiria sua vida como ‘sorte’. Por quê? Não se vê como um cineasta talentoso?

Eu me vejo minha vida inteira como sendo sortudo. Eu vim de uma família agradável. Eu tive sucesso no meu trabalho. Eu tive sorte de ter um talento que as pessoas reconheceram e gostaram. Eu tenho sido saudável na minha vida até agora. Eu tenho uma família agradável. Sabe, eu fui muito, muito sortudo. Eu não tive azar terrível, espero que não me alcance. E como cineasta acho que fui bom. Quero dizer, não na classe de Kurosawa, mas ‘OK’. Sou bom o suficiente para entreter as pessoas. Você pode ir a um dos meus filmes e, se eu fiz um bom filme, você não terá perdido seu tempo. Valerá a pena. Isso não é para dizer que todos os meus filmes são bons. Alguns são bons, alguns não são. Mas se você conseguir pegar um bom, pode ser divertido para você.

Você pode ir a um dos meus filmes e, se eu fiz um bom filme, você não terá perdido seu tempo. Valerá a pena. Isso não é para dizer que todos os meus filmes são bons. Alguns são bons, alguns não são.

Woody Allen

Talvez não exista outro cineasta que saiba abordar a complexidade das relações amorosas como o senhor. Por que os homens não gostam de discutir a relação com as mulheres?

Bem, provavelmente, quanto menos se fala, melhor. Quero dizer, porque relacionamentos são emocionais e falar é cerebral. Você está falando do intelecto, na verdade. Você está tentando fazer sentido das coisas e articulá-las de maneira coerente. E você está falando sobre coisas que são baseadas em sentimentos em você que são conflitantes, intensos, contraditórios e assustadores. Então, é um assunto muito difícil de se falar. Se isso leva a conversas sobre sexo, aí você realmente está em apuros porque quanto menos se fala sobre isso, melhor. Não é um bom assunto para se falar. Então, quanto menos falar sobre o relacionamento, você simplesmente o aproveita mais. E se não aproveita, corrija ou passe para outro. Mas falar sobre isso o tempo todo é muito difícil de colocar em termos intelectuais lógicos e coerentes aquilo que é baseado em sentimentos emocionais e selvagens.

O cineasta Woody Allen venceu 4 Oscars Foto: Reprodução/Woody Allen via Facebook

O casamento é um tema presente neste filme, bem como em toda a sua obra. O senhor acredita que o casamento se tornou uma instituição fracassada e cínica?

Não, não. Eu acho que o casamento é bom, mas dependendo de cada circunstância é muito diferente. Eu acho que o problema era anos atrás, quando havia um estigma se você não se casasse. E isso era um estigma ridículo. Muitas mulheres não queriam se casar. Muitos homens não queriam se casar. E não deveria haver nada do que se envergonhar sobre isso. Mas cada situação é diferente. Uma pessoa vive sua vida sem nunca se casar, ou completamente solteira ou morando junto com alguém e outra pessoa quer se casar e desfrutar dos laços legais do casamento. Mas não há uma generalização. É diferente em cada caso de cada pessoa.

Woody Allen e Diane Keaton no clássico 'Manhattan' Foto: Reprodução/Woody Allen via Facebook

E o personagem de Jean no filme também é muito ciumento. Acha que o ciúme é natural e faz parte dos relacionamentos?

Eu acho que o ciúme é algo que as pessoas muitas vezes têm que lidar. Algumas são mais propensas a se tornarem ciumentas e outras pessoas são menos propensas. Mas certamente é um fator na vida de muitas pessoas que, se a ocasião surgir, elas têm que lidar com isso, viver com isso e se acomodar da melhor maneira possível.

Uma de suas frases mais famosas vem de ‘Noites Eróticas de uma Noite de Verão’ (1983): ‘A diferença entre sexo e amor é que o sexo alivia a tensão e o amor é a causa’ – um complementa o outro, certo?

Eu sempre sinto que há dois tipos de sexo. Há o sexo quando você está solteiro, onde não está relacionado ao amor. Está relacionado apenas à intimidade entre as pessoas por prazer e não tem um significado mais profundo para qualquer uma das partes. E então há o tipo de sexo que de alguma forma reafirma ou intensifica seu sentimento pela pessoa que você ama. E toda vez que você faz sexo com essa pessoa, intensifica esse sentimento que você tem por ela. Mas todo mundo tem seus próprios sentimentos. Eles chegam às próprias conclusões sobre sexo. E difere, sabe, para todo mundo em toda cultura.

O senhor atuou em muitos de seus filmes. Acha que o público e alguns críticos podem ter confundido as ideias de Woody Allen com as ideias dos personagens de Woody Allen?

Sim, esse é um problema comum que os atores têm. Sabe, um ator como John Wayne, as pessoas achavam que era um grande herói másculo na vida real. Acho que Marlon Brando disse muitas vezes que as pessoas o confundiam com os personagens que ele interpretava nos filmes. E em um nível menor, isso aconteceu comigo. As pessoas pensam que o personagem que eu interpreto nos filmes reflete quem eu sou na vida real. E, sabe, há algumas semelhanças. Mas no cinema, o personagem que eu interpreto é tão grandemente exagerado que, se eu fizesse isso na vida real, eu não aguentaria. Eu não poderia fazer nada. Então, não sou o personagem que você vê nos filmes. Eu me visto como esse personagem, e soo como ele. Mas eu sou bastante diferente na minha vida séria.

Em um dos seus melhores filmes, ‘Memórias’ (1980), o senhor explorou o relacionamento de amor e ódio do público com celebridades, o que me leva a uma pergunta sobre a cultura do cancelamento. Alec Baldwin, Kevin Spacey e você enfrentaram a cultura do cancelamento. Como o senhor mantém sua mente saudável lidando com esse tipo de perseguição?

Bem, não posso falar por eles porque eles estavam enfrentando situações diferentes. E ambos se saíram muito bem quando foram a tribunal, de forma vitoriosa. Eu não tive um problema tão grande, pois nunca tive que ir ao tribunal. E então eu nunca realmente levei a sério. Apenas continuei trabalhando e não pensei sobre isso e fiz meus filmes. E, sabe, na prática, nunca me afetou de forma alguma. Quero dizer, as pessoas que gostavam dos filmes vieram ver os filmes. As pessoas que não gostavam dos filmes ficaram longe. Não foi diferente do que 20 anos atrás, 50 anos atrás. Então, para mim, não foi um problema. Eu simplesmente nunca pensei nisso e funcionou. E sempre pude trabalhar. E ainda posso trabalhar, se eu escolher.

Woody Allen (ao centro) dirige cena de 'Golpe de Sorte em Paris' Foto: Thierry Valetoux/Divulgação: O2 Play

O senhor já revelou que gosta de Machado de Assis. O que mais te atraiu nele? Leu outros livros brasileiros?

Alguém uma vez me enviou seu livro [Memórias Póstumas de Brás Cubas] e disse que achava que eu gostaria. E eu li e gostei. Achei ele muito espirituoso. Eu acho, como Susan Sontag apontou na introdução a uma das coletâneas de seus livros, ou daquele livro, que ele era surpreendentemente moderno. Fiquei surpreso com alguém escrevendo nos anos em que ele escreveu soar tão moderno. Fiquei muito, muito impressionado. E então li outras histórias dele. Ele era muito espirituoso, divertido, cínico e não sentimental. Era tudo o que você gostaria em um escritor cômico.

‘Golpe de Sorte em Paris’ foi realmente seu último filme ou o senhor vai fazer pelo menos mais um?

Por anos, eu sempre tive dificuldade em levantar dinheiro para filmes. E não gosto de, sabe, fazer ligações, ir almoçar ou jantar, tentar um pouco aqui e levantar algum dinheiro lá. Estou cansado disso. Cinquenta filmes são suficientes. Agora, se alguém aparecer e disser: ‘nós amamos seus filmes, pagaremos por outro filme para você fazer’, e eu não tenha que ter um milhão de conversas, então eu provavelmente faria porque tenho algumas boas ideias para filmes. Mas sou preguiçoso. Eu não quero trabalhar novamente em solicitar financiamento. Então se alguém sair do nada e disser que vai financiar meu filme, ótimo. Mas caso contrário, eu ficaria feliz em apenas escrever para o teatro.

Pôster nacional de 'Golpe de Sorte em Paris' Foto: Divulgação/O2 Play

Golpe de Sorte em Paris

  • Direção e roteiro: Woody Allen
  • Elenco: Lou de Laage, Niels Schneider, Anna Laik, Melvil Poupaud
  • Lançamento: 19 de setembro (O2 Filmes)

Woody Allen acredita que teve “muita sorte” em sua vida e que foi um cineasta apenas “bom o suficiente para entreter as pessoas”. Modéstia condizente ao mestre do humor autodepreciativo, pessimista e neurótico. Para muitos, porém, Allen foi bem mais do que isso. Ao longo de mais de cinco décadas, o diretor abordou com rara destreza e honestidade a complexidade dos relacionamentos amorosos e definiu um estilo próprio na história da sétima arte.

Cronista das trivialidades, ele começou na comédia stand-up, nos anos 1950, depois escreveu para programas televisivos de humor e então seguiu carreira monumental no cinema, tendo vencido 4 Oscars e acumulado outras 20 indicações. Realizador de clássicos como Annie Hall (1977), Manhattan (1979) e Hannah e Suas Irmãs (1986), ele extraiu de Nova York, sua terra natal, histórias deliciosas que se tornaram universais.

Ao contrário da maioria dos colegas americanos de sua geração, Allen trouxe para as telonas profundas reflexões filosóficas acerca do comportamento humano. Seus filmes serviram quase como uma espécie de terapia para expor sentimentos reprimidos na sociedade, sempre com leveza e sarcasmo. O diretor nunca negou ter bebido da fonte de caras como Ingmar Bergman ou Federico Fellini, influências latentes em sua filmografia.

Por causa dessa obsessão pelo cinema europeu, Woody também expandiu os horizontes e gravou em algumas cidades do Velho Continente: Londres em Match Point (2005), Scoop (2006) e O Sonho de Cassandra (2007); Barcelona em Vicky Cristina Barcelona (2008); San Sebastián em O Festival do Amor (2020); Roma em Para Roma com Amor (2012); e Paris em Meia-Noite em Paris (2011) e Golpe de Sorte em Paris – 50º filme de sua carreira, que chega aos cinemas brasileiros em 19 de setembro. A comédia foi rodada integralmente em francês, algo inédito para Allen.

Em entrevista de 15 minutos por videoconferência ao Estadão, direto de sua casa na Big Apple, o diretor de 88 anos falou sobre a nova produção, além de temas recorrentes de sua vasta obra, como sexo, amor, casamento e ciúmes. O roteirista ainda comentou sua admiração por Machado de Assis, a possibilidade de aposentadoria e disse que não ‘levou a sério’ a tentativa de ‘cancelamento’ em torno de seu nome após as polêmicas recentes envolvendo sua ex-mulher, a atriz Mia Farrow.

'Golpe de Sorte em Paris', novo filme de Woody Allen, estreia no Brasil no dia 19 de setembro Foto: Thierry Valletoux/Divulgação

Tudo começou quando Allen se apaixonou pela jovem Soon-Yi Previn, com quem ele é casado há mais de 20 anos. Soon-Yi é filha adotiva de Farrow e, após a história vir à tona, a estrela de A Rosa Púrpura do Cairo (1985) tentou provar na Justiça que o cineasta teria molestado Dylan, outra filha do casal. Duas investigações independentes, porém, concluíram que não houve abuso e o caso nunca foi ao tribunal.

Desde então, o artista foi perseguido pela mídia e por parte da opinião pública, além de ter perdido oportunidades de trabalho em Hollywood. Autor de primeira categoria, ele escreveu extensamente sobre o assunto em sua Autobiografia (2020, Globo Livros) e, por esta razão, o tema não foi tratado diretamente nesta entrevista.

Como foi transportar seu humor para a língua francesa?

Foi muito fácil, realmente, porque todos os atores falavam inglês. Então eu podia falar com eles na minha língua nativa, e então eles atuavam em francês. Mas quando você vê pessoas atuando em outro idioma, é muito fácil notar, como tenho certeza que você fez em muitos filmes que são em idiomas estrangeiros para você, você pode dizer quem são os bons atores, quem são os grandes atores e quais não são tão fortes. E então era muito fácil. Eu os assistia, eles faziam, e eu podia dizer o que eles estavam dizendo, pois escrevi a coisa, e eles fizeram bem. E se eu precisava que eles estivessem um pouco mais bravos ou um pouco mais doces ou o que fosse, eu diria a eles em inglês. Eles entendiam e faziam.

O senhor é o maior contador de histórias de Nova York, mas também explorou cidades europeias como Roma, Londres e Paris. O que a Europa oferece que a América carece?

Bem, apenas a mudança de atmosfera e o fato de que o cinema europeu foi uma grande influência na minha geração de cineastas. Quando comecei, todos os grandes filmes que vimos em Nova York eram feitos por italianos, franceses, suecos, eram todos filmes europeus. E então fazer filmes na Europa era uma grande honra para nós. E é por isso que meu 50º filme eu fiz em francês, porque o cinema francês foi tão influente para nós, e também o cinema italiano e o cinema sueco. Buñuel ou Fellini, são deuses do cinema. Além disso, cada país na Europa tem uma sensação única. Se você faz um filme em Paris, você faz um filme muito diferente do que faria em Barcelona, que é bastante diferente de fazer um em Manhattan. Fiz tantos filmes em Nova York que [gravar na Europa] me deu algumas atmosferas diferentes.

Seu novo filme é uma ode ao acaso e o senhor mencionou em sua autobiografia que resumiria sua vida como ‘sorte’. Por quê? Não se vê como um cineasta talentoso?

Eu me vejo minha vida inteira como sendo sortudo. Eu vim de uma família agradável. Eu tive sucesso no meu trabalho. Eu tive sorte de ter um talento que as pessoas reconheceram e gostaram. Eu tenho sido saudável na minha vida até agora. Eu tenho uma família agradável. Sabe, eu fui muito, muito sortudo. Eu não tive azar terrível, espero que não me alcance. E como cineasta acho que fui bom. Quero dizer, não na classe de Kurosawa, mas ‘OK’. Sou bom o suficiente para entreter as pessoas. Você pode ir a um dos meus filmes e, se eu fiz um bom filme, você não terá perdido seu tempo. Valerá a pena. Isso não é para dizer que todos os meus filmes são bons. Alguns são bons, alguns não são. Mas se você conseguir pegar um bom, pode ser divertido para você.

Você pode ir a um dos meus filmes e, se eu fiz um bom filme, você não terá perdido seu tempo. Valerá a pena. Isso não é para dizer que todos os meus filmes são bons. Alguns são bons, alguns não são.

Woody Allen

Talvez não exista outro cineasta que saiba abordar a complexidade das relações amorosas como o senhor. Por que os homens não gostam de discutir a relação com as mulheres?

Bem, provavelmente, quanto menos se fala, melhor. Quero dizer, porque relacionamentos são emocionais e falar é cerebral. Você está falando do intelecto, na verdade. Você está tentando fazer sentido das coisas e articulá-las de maneira coerente. E você está falando sobre coisas que são baseadas em sentimentos em você que são conflitantes, intensos, contraditórios e assustadores. Então, é um assunto muito difícil de se falar. Se isso leva a conversas sobre sexo, aí você realmente está em apuros porque quanto menos se fala sobre isso, melhor. Não é um bom assunto para se falar. Então, quanto menos falar sobre o relacionamento, você simplesmente o aproveita mais. E se não aproveita, corrija ou passe para outro. Mas falar sobre isso o tempo todo é muito difícil de colocar em termos intelectuais lógicos e coerentes aquilo que é baseado em sentimentos emocionais e selvagens.

O cineasta Woody Allen venceu 4 Oscars Foto: Reprodução/Woody Allen via Facebook

O casamento é um tema presente neste filme, bem como em toda a sua obra. O senhor acredita que o casamento se tornou uma instituição fracassada e cínica?

Não, não. Eu acho que o casamento é bom, mas dependendo de cada circunstância é muito diferente. Eu acho que o problema era anos atrás, quando havia um estigma se você não se casasse. E isso era um estigma ridículo. Muitas mulheres não queriam se casar. Muitos homens não queriam se casar. E não deveria haver nada do que se envergonhar sobre isso. Mas cada situação é diferente. Uma pessoa vive sua vida sem nunca se casar, ou completamente solteira ou morando junto com alguém e outra pessoa quer se casar e desfrutar dos laços legais do casamento. Mas não há uma generalização. É diferente em cada caso de cada pessoa.

Woody Allen e Diane Keaton no clássico 'Manhattan' Foto: Reprodução/Woody Allen via Facebook

E o personagem de Jean no filme também é muito ciumento. Acha que o ciúme é natural e faz parte dos relacionamentos?

Eu acho que o ciúme é algo que as pessoas muitas vezes têm que lidar. Algumas são mais propensas a se tornarem ciumentas e outras pessoas são menos propensas. Mas certamente é um fator na vida de muitas pessoas que, se a ocasião surgir, elas têm que lidar com isso, viver com isso e se acomodar da melhor maneira possível.

Uma de suas frases mais famosas vem de ‘Noites Eróticas de uma Noite de Verão’ (1983): ‘A diferença entre sexo e amor é que o sexo alivia a tensão e o amor é a causa’ – um complementa o outro, certo?

Eu sempre sinto que há dois tipos de sexo. Há o sexo quando você está solteiro, onde não está relacionado ao amor. Está relacionado apenas à intimidade entre as pessoas por prazer e não tem um significado mais profundo para qualquer uma das partes. E então há o tipo de sexo que de alguma forma reafirma ou intensifica seu sentimento pela pessoa que você ama. E toda vez que você faz sexo com essa pessoa, intensifica esse sentimento que você tem por ela. Mas todo mundo tem seus próprios sentimentos. Eles chegam às próprias conclusões sobre sexo. E difere, sabe, para todo mundo em toda cultura.

O senhor atuou em muitos de seus filmes. Acha que o público e alguns críticos podem ter confundido as ideias de Woody Allen com as ideias dos personagens de Woody Allen?

Sim, esse é um problema comum que os atores têm. Sabe, um ator como John Wayne, as pessoas achavam que era um grande herói másculo na vida real. Acho que Marlon Brando disse muitas vezes que as pessoas o confundiam com os personagens que ele interpretava nos filmes. E em um nível menor, isso aconteceu comigo. As pessoas pensam que o personagem que eu interpreto nos filmes reflete quem eu sou na vida real. E, sabe, há algumas semelhanças. Mas no cinema, o personagem que eu interpreto é tão grandemente exagerado que, se eu fizesse isso na vida real, eu não aguentaria. Eu não poderia fazer nada. Então, não sou o personagem que você vê nos filmes. Eu me visto como esse personagem, e soo como ele. Mas eu sou bastante diferente na minha vida séria.

Em um dos seus melhores filmes, ‘Memórias’ (1980), o senhor explorou o relacionamento de amor e ódio do público com celebridades, o que me leva a uma pergunta sobre a cultura do cancelamento. Alec Baldwin, Kevin Spacey e você enfrentaram a cultura do cancelamento. Como o senhor mantém sua mente saudável lidando com esse tipo de perseguição?

Bem, não posso falar por eles porque eles estavam enfrentando situações diferentes. E ambos se saíram muito bem quando foram a tribunal, de forma vitoriosa. Eu não tive um problema tão grande, pois nunca tive que ir ao tribunal. E então eu nunca realmente levei a sério. Apenas continuei trabalhando e não pensei sobre isso e fiz meus filmes. E, sabe, na prática, nunca me afetou de forma alguma. Quero dizer, as pessoas que gostavam dos filmes vieram ver os filmes. As pessoas que não gostavam dos filmes ficaram longe. Não foi diferente do que 20 anos atrás, 50 anos atrás. Então, para mim, não foi um problema. Eu simplesmente nunca pensei nisso e funcionou. E sempre pude trabalhar. E ainda posso trabalhar, se eu escolher.

Woody Allen (ao centro) dirige cena de 'Golpe de Sorte em Paris' Foto: Thierry Valetoux/Divulgação: O2 Play

O senhor já revelou que gosta de Machado de Assis. O que mais te atraiu nele? Leu outros livros brasileiros?

Alguém uma vez me enviou seu livro [Memórias Póstumas de Brás Cubas] e disse que achava que eu gostaria. E eu li e gostei. Achei ele muito espirituoso. Eu acho, como Susan Sontag apontou na introdução a uma das coletâneas de seus livros, ou daquele livro, que ele era surpreendentemente moderno. Fiquei surpreso com alguém escrevendo nos anos em que ele escreveu soar tão moderno. Fiquei muito, muito impressionado. E então li outras histórias dele. Ele era muito espirituoso, divertido, cínico e não sentimental. Era tudo o que você gostaria em um escritor cômico.

‘Golpe de Sorte em Paris’ foi realmente seu último filme ou o senhor vai fazer pelo menos mais um?

Por anos, eu sempre tive dificuldade em levantar dinheiro para filmes. E não gosto de, sabe, fazer ligações, ir almoçar ou jantar, tentar um pouco aqui e levantar algum dinheiro lá. Estou cansado disso. Cinquenta filmes são suficientes. Agora, se alguém aparecer e disser: ‘nós amamos seus filmes, pagaremos por outro filme para você fazer’, e eu não tenha que ter um milhão de conversas, então eu provavelmente faria porque tenho algumas boas ideias para filmes. Mas sou preguiçoso. Eu não quero trabalhar novamente em solicitar financiamento. Então se alguém sair do nada e disser que vai financiar meu filme, ótimo. Mas caso contrário, eu ficaria feliz em apenas escrever para o teatro.

Pôster nacional de 'Golpe de Sorte em Paris' Foto: Divulgação/O2 Play

Golpe de Sorte em Paris

  • Direção e roteiro: Woody Allen
  • Elenco: Lou de Laage, Niels Schneider, Anna Laik, Melvil Poupaud
  • Lançamento: 19 de setembro (O2 Filmes)

Woody Allen acredita que teve “muita sorte” em sua vida e que foi um cineasta apenas “bom o suficiente para entreter as pessoas”. Modéstia condizente ao mestre do humor autodepreciativo, pessimista e neurótico. Para muitos, porém, Allen foi bem mais do que isso. Ao longo de mais de cinco décadas, o diretor abordou com rara destreza e honestidade a complexidade dos relacionamentos amorosos e definiu um estilo próprio na história da sétima arte.

Cronista das trivialidades, ele começou na comédia stand-up, nos anos 1950, depois escreveu para programas televisivos de humor e então seguiu carreira monumental no cinema, tendo vencido 4 Oscars e acumulado outras 20 indicações. Realizador de clássicos como Annie Hall (1977), Manhattan (1979) e Hannah e Suas Irmãs (1986), ele extraiu de Nova York, sua terra natal, histórias deliciosas que se tornaram universais.

Ao contrário da maioria dos colegas americanos de sua geração, Allen trouxe para as telonas profundas reflexões filosóficas acerca do comportamento humano. Seus filmes serviram quase como uma espécie de terapia para expor sentimentos reprimidos na sociedade, sempre com leveza e sarcasmo. O diretor nunca negou ter bebido da fonte de caras como Ingmar Bergman ou Federico Fellini, influências latentes em sua filmografia.

Por causa dessa obsessão pelo cinema europeu, Woody também expandiu os horizontes e gravou em algumas cidades do Velho Continente: Londres em Match Point (2005), Scoop (2006) e O Sonho de Cassandra (2007); Barcelona em Vicky Cristina Barcelona (2008); San Sebastián em O Festival do Amor (2020); Roma em Para Roma com Amor (2012); e Paris em Meia-Noite em Paris (2011) e Golpe de Sorte em Paris – 50º filme de sua carreira, que chega aos cinemas brasileiros em 19 de setembro. A comédia foi rodada integralmente em francês, algo inédito para Allen.

Em entrevista de 15 minutos por videoconferência ao Estadão, direto de sua casa na Big Apple, o diretor de 88 anos falou sobre a nova produção, além de temas recorrentes de sua vasta obra, como sexo, amor, casamento e ciúmes. O roteirista ainda comentou sua admiração por Machado de Assis, a possibilidade de aposentadoria e disse que não ‘levou a sério’ a tentativa de ‘cancelamento’ em torno de seu nome após as polêmicas recentes envolvendo sua ex-mulher, a atriz Mia Farrow.

'Golpe de Sorte em Paris', novo filme de Woody Allen, estreia no Brasil no dia 19 de setembro Foto: Thierry Valletoux/Divulgação

Tudo começou quando Allen se apaixonou pela jovem Soon-Yi Previn, com quem ele é casado há mais de 20 anos. Soon-Yi é filha adotiva de Farrow e, após a história vir à tona, a estrela de A Rosa Púrpura do Cairo (1985) tentou provar na Justiça que o cineasta teria molestado Dylan, outra filha do casal. Duas investigações independentes, porém, concluíram que não houve abuso e o caso nunca foi ao tribunal.

Desde então, o artista foi perseguido pela mídia e por parte da opinião pública, além de ter perdido oportunidades de trabalho em Hollywood. Autor de primeira categoria, ele escreveu extensamente sobre o assunto em sua Autobiografia (2020, Globo Livros) e, por esta razão, o tema não foi tratado diretamente nesta entrevista.

Como foi transportar seu humor para a língua francesa?

Foi muito fácil, realmente, porque todos os atores falavam inglês. Então eu podia falar com eles na minha língua nativa, e então eles atuavam em francês. Mas quando você vê pessoas atuando em outro idioma, é muito fácil notar, como tenho certeza que você fez em muitos filmes que são em idiomas estrangeiros para você, você pode dizer quem são os bons atores, quem são os grandes atores e quais não são tão fortes. E então era muito fácil. Eu os assistia, eles faziam, e eu podia dizer o que eles estavam dizendo, pois escrevi a coisa, e eles fizeram bem. E se eu precisava que eles estivessem um pouco mais bravos ou um pouco mais doces ou o que fosse, eu diria a eles em inglês. Eles entendiam e faziam.

O senhor é o maior contador de histórias de Nova York, mas também explorou cidades europeias como Roma, Londres e Paris. O que a Europa oferece que a América carece?

Bem, apenas a mudança de atmosfera e o fato de que o cinema europeu foi uma grande influência na minha geração de cineastas. Quando comecei, todos os grandes filmes que vimos em Nova York eram feitos por italianos, franceses, suecos, eram todos filmes europeus. E então fazer filmes na Europa era uma grande honra para nós. E é por isso que meu 50º filme eu fiz em francês, porque o cinema francês foi tão influente para nós, e também o cinema italiano e o cinema sueco. Buñuel ou Fellini, são deuses do cinema. Além disso, cada país na Europa tem uma sensação única. Se você faz um filme em Paris, você faz um filme muito diferente do que faria em Barcelona, que é bastante diferente de fazer um em Manhattan. Fiz tantos filmes em Nova York que [gravar na Europa] me deu algumas atmosferas diferentes.

Seu novo filme é uma ode ao acaso e o senhor mencionou em sua autobiografia que resumiria sua vida como ‘sorte’. Por quê? Não se vê como um cineasta talentoso?

Eu me vejo minha vida inteira como sendo sortudo. Eu vim de uma família agradável. Eu tive sucesso no meu trabalho. Eu tive sorte de ter um talento que as pessoas reconheceram e gostaram. Eu tenho sido saudável na minha vida até agora. Eu tenho uma família agradável. Sabe, eu fui muito, muito sortudo. Eu não tive azar terrível, espero que não me alcance. E como cineasta acho que fui bom. Quero dizer, não na classe de Kurosawa, mas ‘OK’. Sou bom o suficiente para entreter as pessoas. Você pode ir a um dos meus filmes e, se eu fiz um bom filme, você não terá perdido seu tempo. Valerá a pena. Isso não é para dizer que todos os meus filmes são bons. Alguns são bons, alguns não são. Mas se você conseguir pegar um bom, pode ser divertido para você.

Você pode ir a um dos meus filmes e, se eu fiz um bom filme, você não terá perdido seu tempo. Valerá a pena. Isso não é para dizer que todos os meus filmes são bons. Alguns são bons, alguns não são.

Woody Allen

Talvez não exista outro cineasta que saiba abordar a complexidade das relações amorosas como o senhor. Por que os homens não gostam de discutir a relação com as mulheres?

Bem, provavelmente, quanto menos se fala, melhor. Quero dizer, porque relacionamentos são emocionais e falar é cerebral. Você está falando do intelecto, na verdade. Você está tentando fazer sentido das coisas e articulá-las de maneira coerente. E você está falando sobre coisas que são baseadas em sentimentos em você que são conflitantes, intensos, contraditórios e assustadores. Então, é um assunto muito difícil de se falar. Se isso leva a conversas sobre sexo, aí você realmente está em apuros porque quanto menos se fala sobre isso, melhor. Não é um bom assunto para se falar. Então, quanto menos falar sobre o relacionamento, você simplesmente o aproveita mais. E se não aproveita, corrija ou passe para outro. Mas falar sobre isso o tempo todo é muito difícil de colocar em termos intelectuais lógicos e coerentes aquilo que é baseado em sentimentos emocionais e selvagens.

O cineasta Woody Allen venceu 4 Oscars Foto: Reprodução/Woody Allen via Facebook

O casamento é um tema presente neste filme, bem como em toda a sua obra. O senhor acredita que o casamento se tornou uma instituição fracassada e cínica?

Não, não. Eu acho que o casamento é bom, mas dependendo de cada circunstância é muito diferente. Eu acho que o problema era anos atrás, quando havia um estigma se você não se casasse. E isso era um estigma ridículo. Muitas mulheres não queriam se casar. Muitos homens não queriam se casar. E não deveria haver nada do que se envergonhar sobre isso. Mas cada situação é diferente. Uma pessoa vive sua vida sem nunca se casar, ou completamente solteira ou morando junto com alguém e outra pessoa quer se casar e desfrutar dos laços legais do casamento. Mas não há uma generalização. É diferente em cada caso de cada pessoa.

Woody Allen e Diane Keaton no clássico 'Manhattan' Foto: Reprodução/Woody Allen via Facebook

E o personagem de Jean no filme também é muito ciumento. Acha que o ciúme é natural e faz parte dos relacionamentos?

Eu acho que o ciúme é algo que as pessoas muitas vezes têm que lidar. Algumas são mais propensas a se tornarem ciumentas e outras pessoas são menos propensas. Mas certamente é um fator na vida de muitas pessoas que, se a ocasião surgir, elas têm que lidar com isso, viver com isso e se acomodar da melhor maneira possível.

Uma de suas frases mais famosas vem de ‘Noites Eróticas de uma Noite de Verão’ (1983): ‘A diferença entre sexo e amor é que o sexo alivia a tensão e o amor é a causa’ – um complementa o outro, certo?

Eu sempre sinto que há dois tipos de sexo. Há o sexo quando você está solteiro, onde não está relacionado ao amor. Está relacionado apenas à intimidade entre as pessoas por prazer e não tem um significado mais profundo para qualquer uma das partes. E então há o tipo de sexo que de alguma forma reafirma ou intensifica seu sentimento pela pessoa que você ama. E toda vez que você faz sexo com essa pessoa, intensifica esse sentimento que você tem por ela. Mas todo mundo tem seus próprios sentimentos. Eles chegam às próprias conclusões sobre sexo. E difere, sabe, para todo mundo em toda cultura.

O senhor atuou em muitos de seus filmes. Acha que o público e alguns críticos podem ter confundido as ideias de Woody Allen com as ideias dos personagens de Woody Allen?

Sim, esse é um problema comum que os atores têm. Sabe, um ator como John Wayne, as pessoas achavam que era um grande herói másculo na vida real. Acho que Marlon Brando disse muitas vezes que as pessoas o confundiam com os personagens que ele interpretava nos filmes. E em um nível menor, isso aconteceu comigo. As pessoas pensam que o personagem que eu interpreto nos filmes reflete quem eu sou na vida real. E, sabe, há algumas semelhanças. Mas no cinema, o personagem que eu interpreto é tão grandemente exagerado que, se eu fizesse isso na vida real, eu não aguentaria. Eu não poderia fazer nada. Então, não sou o personagem que você vê nos filmes. Eu me visto como esse personagem, e soo como ele. Mas eu sou bastante diferente na minha vida séria.

Em um dos seus melhores filmes, ‘Memórias’ (1980), o senhor explorou o relacionamento de amor e ódio do público com celebridades, o que me leva a uma pergunta sobre a cultura do cancelamento. Alec Baldwin, Kevin Spacey e você enfrentaram a cultura do cancelamento. Como o senhor mantém sua mente saudável lidando com esse tipo de perseguição?

Bem, não posso falar por eles porque eles estavam enfrentando situações diferentes. E ambos se saíram muito bem quando foram a tribunal, de forma vitoriosa. Eu não tive um problema tão grande, pois nunca tive que ir ao tribunal. E então eu nunca realmente levei a sério. Apenas continuei trabalhando e não pensei sobre isso e fiz meus filmes. E, sabe, na prática, nunca me afetou de forma alguma. Quero dizer, as pessoas que gostavam dos filmes vieram ver os filmes. As pessoas que não gostavam dos filmes ficaram longe. Não foi diferente do que 20 anos atrás, 50 anos atrás. Então, para mim, não foi um problema. Eu simplesmente nunca pensei nisso e funcionou. E sempre pude trabalhar. E ainda posso trabalhar, se eu escolher.

Woody Allen (ao centro) dirige cena de 'Golpe de Sorte em Paris' Foto: Thierry Valetoux/Divulgação: O2 Play

O senhor já revelou que gosta de Machado de Assis. O que mais te atraiu nele? Leu outros livros brasileiros?

Alguém uma vez me enviou seu livro [Memórias Póstumas de Brás Cubas] e disse que achava que eu gostaria. E eu li e gostei. Achei ele muito espirituoso. Eu acho, como Susan Sontag apontou na introdução a uma das coletâneas de seus livros, ou daquele livro, que ele era surpreendentemente moderno. Fiquei surpreso com alguém escrevendo nos anos em que ele escreveu soar tão moderno. Fiquei muito, muito impressionado. E então li outras histórias dele. Ele era muito espirituoso, divertido, cínico e não sentimental. Era tudo o que você gostaria em um escritor cômico.

‘Golpe de Sorte em Paris’ foi realmente seu último filme ou o senhor vai fazer pelo menos mais um?

Por anos, eu sempre tive dificuldade em levantar dinheiro para filmes. E não gosto de, sabe, fazer ligações, ir almoçar ou jantar, tentar um pouco aqui e levantar algum dinheiro lá. Estou cansado disso. Cinquenta filmes são suficientes. Agora, se alguém aparecer e disser: ‘nós amamos seus filmes, pagaremos por outro filme para você fazer’, e eu não tenha que ter um milhão de conversas, então eu provavelmente faria porque tenho algumas boas ideias para filmes. Mas sou preguiçoso. Eu não quero trabalhar novamente em solicitar financiamento. Então se alguém sair do nada e disser que vai financiar meu filme, ótimo. Mas caso contrário, eu ficaria feliz em apenas escrever para o teatro.

Pôster nacional de 'Golpe de Sorte em Paris' Foto: Divulgação/O2 Play

Golpe de Sorte em Paris

  • Direção e roteiro: Woody Allen
  • Elenco: Lou de Laage, Niels Schneider, Anna Laik, Melvil Poupaud
  • Lançamento: 19 de setembro (O2 Filmes)
Entrevista por Gabriel Zorzetto

Repórter de Cultura do Estadão

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