Woody Allen revela em autobiografia seu talento e se defende de acusações


'Woody Allen – A Autobiografia', que a editora Globo Livros lança no Brasil, correu o risco de não ser publicada nos Estados Unidos

Por Ubiratan Brasil

Era uma das mais aguardadas autobiografias, afinal, Woody Allen firmou-se, desde a década de 1960, como um dos principais diretores e roteiristas do cinema americano, autor de comédias (algumas já clássicas) que traduzem com graça as principais angústias humanas. Mas Woody Allen – A Autobiografia que a Globo Livros lança nesta terça, 10, no Brasil correu o risco de não ser publicada nos Estados Unidos – a editora Hachette já cuidava da obra quando desistiu de lançá-la, depois de um protesto de seus funcionários contra o lançamento. “Dispensaram o livro como se fosse um bloco radioativo de xenônio-135”, conta ele. Por fim, Apropos of Nothing (A propósito do nada, em tradução livre), título original, saiu pela independente Arcade, que o lançou quase na surdina, no final de março.

O motivo não era editorial, pois Allen relembra sua trajetória com a mesma verve cômica que marca seus filmes e livros. Mas sim a acusação feita por Dylan, filha do cineasta com a atriz Mia Farrow, de abuso sexual, crime que teria acontecido em 1992, quando ela tinha 7 anos – uma acusação que reiterou em 2018, mas Allen sempre desmentiu e a denúncia não chegou a ser comprovada pelas investigações feitas sobre o caso.

Cineasta.Foi esportista, mas não gostava de ler Foto: Damon Winter/The New York Times
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Mesmo assim, o estrago estava feito e Allen logo perdeu um contrato estimado em US$ 68 milhões com a Amazon, responsável pela distribuição de seus novos filmes. Um dos mais recentes, por exemplo, Um Dia de Chuva em Nova York (2019), nem chegou a ser lançado nos Estados Unidos, mas estreou nos cinemas brasileiros. E a comédia romântica Rifkin’s Festival, seu último longa até o momento, foi financiada por uma produtora espanhola, a Mediapro, e abriu o Festival de San Sebastián, em setembro.

Se a Europa tornou-se novamente o refúgio cinematográfico para Allen, o furacão iniciado no mercado editorial americano foi suficiente para contaminar o provável sucesso que o livro teria em diversos países, onde a publicação foi protelada ou mesmo cancelada. No Brasil, alguns editores não quiseram participar do leilão pelos direitos autorais, temendo uma negativa reação do público leitor. A definição, aliás, aconteceu depois de um esquema arriscado, com ofertas feitas às escuras, pois os participantes do leilão receberam uma vaga descrição do que seria o livro, sem acesso ao original, nem mesmo a um capítulo.

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Uma das apostas da Globo Livros, que acabou ficando com os direitos no Brasil, é que Allen, na autobiografia, apresentasse um outro ponto de vista. De fato, são várias as surpresas apresentadas na obra, na qual Allen traça um perfil honesto sobre si – mesmo que isso possa ser usado contra ele, como a insensibilidade ao tratar de mulheres. 

De fato, Allen não escapou da condenação moral a que foi submetido especialmente pelos americanos e ocupa uma parte considerável de sua autobiografia para se defender. Um dos principais alvos é a atriz Mia Farrow, com quem teve um filho biológico (Satchel, que agora se identifica como Ronan) e vários outros adotados. São momentos do livro em que a voz descontraída cede espaço para um ajuste de contas, o humor é atropelado pelo desabafo. Allen retrata Mia como uma mulher insensível no trato com os filhos, que eram adotados com a mesma emoção com que se compra um brinquedo novo – e isso ainda lhe trouxe uma bem-vinda reputação de santa.

Allen descreve maus-tratos praticados por Mia em diversos filhos, mas se concentra em Soon-Yi, garota sul-coreana que foi adotada pela atriz quando estava com 7 anos e com quem Allen iniciou um relacionamento amoroso quando ela completou 21. Segundo o cineasta, a menina vivia feliz em um orfanato gerido por freiras quando foi levada pela atriz. “Mia então a tirou desse ambiente com o qual ela havia se habituado e a obrigou a fazer uma turnê por outros orfanatos, onde buscava novos órfãos como alguém que passa pelas gôndolas de promoção numa livraria”, escreve Allen, que passa a enumerar uma série de situações constrangedoras a que Soon-Yi era submetida.

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Allen chega a usar o depoimento de outro filho, Moses, para dizer que sua irmã Tam não morreu de problemas cardíacos aos 21 anos, mas de uma overdose de pílulas ingeridas após uma depressão que marcou grande parte de sua vida.

Mia descobriu que Allen estava se relacionando com Soon-Yi ao encontrar fotos polaroides eróticas da garota no apartamento do cineasta. “É claro que entendo o choque dela, sua consternação, raiva e tudo mais”, observa. “Foi a reação correta.” Depois disso, furiosa, Mia decidiu acusá-lo de ser molestador, o que se agravou quando surgiu a denúncia de Dylan.

Woody Allen, Mia Farrow e os filhos – Dylan no colo da atriz e Soon-Yi à direita. Foto: ANN CLIFFORD/DMI/TIME LIFE PICTURE
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Apesar da turbulenta vida privada, Woody Allen não deixou de fazer filmes, alguns figurando entre os melhores de sua carreira – como Maridos e Esposas (1992). “Quando terminei de escrever (o roteiro), decidi que rodaria predominantemente com a câmera na mão e não obedeceria às regras de filmagem. Eu cortaria quando quisesse, sem me preocupar com gente olhando na direção certa, faria cortes e iria ao oposto do bonito ou bem-feito. Acabou sendo um bom filme, eu acho, e não pego leve com o meu trabalho.”

Allen, aliás, revela uma sinceridade cortante quando se refere a si mesmo. A primeira surpresa surge quando conta que, quando jovem, era popular no colégio e praticante de vários esportes, especialmente o beisebol. É hilariante a forma como descreve a família: o pai era um jogador e praticante de pequenos furtos – foi em uma máquina de escrever surrupiada, aliás, que Allen iniciou sua carreira artística, escrevendo piadas para colunas de jornal e, depois, para comediantes sem talento para a escrita.

Já a mãe impedia que a família fracassasse, impetuosa como o general Patton, trabalhando como caixa de uma floricultura. O jovem Allen, no entanto, ia mal na escola, preferindo se tornar mágico amador e, com habilidade nas cartas, usava o DNA herdado do pai para a desonestidade e embolsava a mesada dos colegas. Por isso, não é de se estranhar quando ele confessa que não gostava de ler – o rádio e os filmes eram mais empolgantes.

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“Eu não era um leitor até quase o fim do ensino médio, quando os meus hormônios de fato começaram a agir e eu notei pela primeira vez aquelas garotas com longos cabelos lisos, que não passavam batom, quase não usavam maquiagem, se vestiam com gola rulê preta e saias com meias-calças escuras e carregavam grandes bolsas de couro com cópias de A Metamorfose, em que anotavam nas margens coisas como: ‘É, fato’ ou ‘Ver Kierkegaard’”, escreve.

Hoje, próximo dos 85 anos (completa em 1.º de dezembro), prefere escrever a filmar. Mudaria algo? “Não teria comprado o fatiador milagroso de vegetais que um cara anunciou na TV.” Algum legado? “Melhor que viver nos corações e nas mentes do público é viver no meu apartamento.”

WOODY ALLEN – A AUTOBIOGRAFIA

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  • Autor: Woody Allen
  • Tradutor: Santiago Nazarian
  • Editora: Globo (328 págs., R$ 49,90)

Era uma das mais aguardadas autobiografias, afinal, Woody Allen firmou-se, desde a década de 1960, como um dos principais diretores e roteiristas do cinema americano, autor de comédias (algumas já clássicas) que traduzem com graça as principais angústias humanas. Mas Woody Allen – A Autobiografia que a Globo Livros lança nesta terça, 10, no Brasil correu o risco de não ser publicada nos Estados Unidos – a editora Hachette já cuidava da obra quando desistiu de lançá-la, depois de um protesto de seus funcionários contra o lançamento. “Dispensaram o livro como se fosse um bloco radioativo de xenônio-135”, conta ele. Por fim, Apropos of Nothing (A propósito do nada, em tradução livre), título original, saiu pela independente Arcade, que o lançou quase na surdina, no final de março.

O motivo não era editorial, pois Allen relembra sua trajetória com a mesma verve cômica que marca seus filmes e livros. Mas sim a acusação feita por Dylan, filha do cineasta com a atriz Mia Farrow, de abuso sexual, crime que teria acontecido em 1992, quando ela tinha 7 anos – uma acusação que reiterou em 2018, mas Allen sempre desmentiu e a denúncia não chegou a ser comprovada pelas investigações feitas sobre o caso.

Cineasta.Foi esportista, mas não gostava de ler Foto: Damon Winter/The New York Times

Mesmo assim, o estrago estava feito e Allen logo perdeu um contrato estimado em US$ 68 milhões com a Amazon, responsável pela distribuição de seus novos filmes. Um dos mais recentes, por exemplo, Um Dia de Chuva em Nova York (2019), nem chegou a ser lançado nos Estados Unidos, mas estreou nos cinemas brasileiros. E a comédia romântica Rifkin’s Festival, seu último longa até o momento, foi financiada por uma produtora espanhola, a Mediapro, e abriu o Festival de San Sebastián, em setembro.

Se a Europa tornou-se novamente o refúgio cinematográfico para Allen, o furacão iniciado no mercado editorial americano foi suficiente para contaminar o provável sucesso que o livro teria em diversos países, onde a publicação foi protelada ou mesmo cancelada. No Brasil, alguns editores não quiseram participar do leilão pelos direitos autorais, temendo uma negativa reação do público leitor. A definição, aliás, aconteceu depois de um esquema arriscado, com ofertas feitas às escuras, pois os participantes do leilão receberam uma vaga descrição do que seria o livro, sem acesso ao original, nem mesmo a um capítulo.

Uma das apostas da Globo Livros, que acabou ficando com os direitos no Brasil, é que Allen, na autobiografia, apresentasse um outro ponto de vista. De fato, são várias as surpresas apresentadas na obra, na qual Allen traça um perfil honesto sobre si – mesmo que isso possa ser usado contra ele, como a insensibilidade ao tratar de mulheres. 

De fato, Allen não escapou da condenação moral a que foi submetido especialmente pelos americanos e ocupa uma parte considerável de sua autobiografia para se defender. Um dos principais alvos é a atriz Mia Farrow, com quem teve um filho biológico (Satchel, que agora se identifica como Ronan) e vários outros adotados. São momentos do livro em que a voz descontraída cede espaço para um ajuste de contas, o humor é atropelado pelo desabafo. Allen retrata Mia como uma mulher insensível no trato com os filhos, que eram adotados com a mesma emoção com que se compra um brinquedo novo – e isso ainda lhe trouxe uma bem-vinda reputação de santa.

Allen descreve maus-tratos praticados por Mia em diversos filhos, mas se concentra em Soon-Yi, garota sul-coreana que foi adotada pela atriz quando estava com 7 anos e com quem Allen iniciou um relacionamento amoroso quando ela completou 21. Segundo o cineasta, a menina vivia feliz em um orfanato gerido por freiras quando foi levada pela atriz. “Mia então a tirou desse ambiente com o qual ela havia se habituado e a obrigou a fazer uma turnê por outros orfanatos, onde buscava novos órfãos como alguém que passa pelas gôndolas de promoção numa livraria”, escreve Allen, que passa a enumerar uma série de situações constrangedoras a que Soon-Yi era submetida.

Allen chega a usar o depoimento de outro filho, Moses, para dizer que sua irmã Tam não morreu de problemas cardíacos aos 21 anos, mas de uma overdose de pílulas ingeridas após uma depressão que marcou grande parte de sua vida.

Mia descobriu que Allen estava se relacionando com Soon-Yi ao encontrar fotos polaroides eróticas da garota no apartamento do cineasta. “É claro que entendo o choque dela, sua consternação, raiva e tudo mais”, observa. “Foi a reação correta.” Depois disso, furiosa, Mia decidiu acusá-lo de ser molestador, o que se agravou quando surgiu a denúncia de Dylan.

Woody Allen, Mia Farrow e os filhos – Dylan no colo da atriz e Soon-Yi à direita. Foto: ANN CLIFFORD/DMI/TIME LIFE PICTURE

Apesar da turbulenta vida privada, Woody Allen não deixou de fazer filmes, alguns figurando entre os melhores de sua carreira – como Maridos e Esposas (1992). “Quando terminei de escrever (o roteiro), decidi que rodaria predominantemente com a câmera na mão e não obedeceria às regras de filmagem. Eu cortaria quando quisesse, sem me preocupar com gente olhando na direção certa, faria cortes e iria ao oposto do bonito ou bem-feito. Acabou sendo um bom filme, eu acho, e não pego leve com o meu trabalho.”

Allen, aliás, revela uma sinceridade cortante quando se refere a si mesmo. A primeira surpresa surge quando conta que, quando jovem, era popular no colégio e praticante de vários esportes, especialmente o beisebol. É hilariante a forma como descreve a família: o pai era um jogador e praticante de pequenos furtos – foi em uma máquina de escrever surrupiada, aliás, que Allen iniciou sua carreira artística, escrevendo piadas para colunas de jornal e, depois, para comediantes sem talento para a escrita.

Já a mãe impedia que a família fracassasse, impetuosa como o general Patton, trabalhando como caixa de uma floricultura. O jovem Allen, no entanto, ia mal na escola, preferindo se tornar mágico amador e, com habilidade nas cartas, usava o DNA herdado do pai para a desonestidade e embolsava a mesada dos colegas. Por isso, não é de se estranhar quando ele confessa que não gostava de ler – o rádio e os filmes eram mais empolgantes.

“Eu não era um leitor até quase o fim do ensino médio, quando os meus hormônios de fato começaram a agir e eu notei pela primeira vez aquelas garotas com longos cabelos lisos, que não passavam batom, quase não usavam maquiagem, se vestiam com gola rulê preta e saias com meias-calças escuras e carregavam grandes bolsas de couro com cópias de A Metamorfose, em que anotavam nas margens coisas como: ‘É, fato’ ou ‘Ver Kierkegaard’”, escreve.

Hoje, próximo dos 85 anos (completa em 1.º de dezembro), prefere escrever a filmar. Mudaria algo? “Não teria comprado o fatiador milagroso de vegetais que um cara anunciou na TV.” Algum legado? “Melhor que viver nos corações e nas mentes do público é viver no meu apartamento.”

WOODY ALLEN – A AUTOBIOGRAFIA

  • Autor: Woody Allen
  • Tradutor: Santiago Nazarian
  • Editora: Globo (328 págs., R$ 49,90)

Era uma das mais aguardadas autobiografias, afinal, Woody Allen firmou-se, desde a década de 1960, como um dos principais diretores e roteiristas do cinema americano, autor de comédias (algumas já clássicas) que traduzem com graça as principais angústias humanas. Mas Woody Allen – A Autobiografia que a Globo Livros lança nesta terça, 10, no Brasil correu o risco de não ser publicada nos Estados Unidos – a editora Hachette já cuidava da obra quando desistiu de lançá-la, depois de um protesto de seus funcionários contra o lançamento. “Dispensaram o livro como se fosse um bloco radioativo de xenônio-135”, conta ele. Por fim, Apropos of Nothing (A propósito do nada, em tradução livre), título original, saiu pela independente Arcade, que o lançou quase na surdina, no final de março.

O motivo não era editorial, pois Allen relembra sua trajetória com a mesma verve cômica que marca seus filmes e livros. Mas sim a acusação feita por Dylan, filha do cineasta com a atriz Mia Farrow, de abuso sexual, crime que teria acontecido em 1992, quando ela tinha 7 anos – uma acusação que reiterou em 2018, mas Allen sempre desmentiu e a denúncia não chegou a ser comprovada pelas investigações feitas sobre o caso.

Cineasta.Foi esportista, mas não gostava de ler Foto: Damon Winter/The New York Times

Mesmo assim, o estrago estava feito e Allen logo perdeu um contrato estimado em US$ 68 milhões com a Amazon, responsável pela distribuição de seus novos filmes. Um dos mais recentes, por exemplo, Um Dia de Chuva em Nova York (2019), nem chegou a ser lançado nos Estados Unidos, mas estreou nos cinemas brasileiros. E a comédia romântica Rifkin’s Festival, seu último longa até o momento, foi financiada por uma produtora espanhola, a Mediapro, e abriu o Festival de San Sebastián, em setembro.

Se a Europa tornou-se novamente o refúgio cinematográfico para Allen, o furacão iniciado no mercado editorial americano foi suficiente para contaminar o provável sucesso que o livro teria em diversos países, onde a publicação foi protelada ou mesmo cancelada. No Brasil, alguns editores não quiseram participar do leilão pelos direitos autorais, temendo uma negativa reação do público leitor. A definição, aliás, aconteceu depois de um esquema arriscado, com ofertas feitas às escuras, pois os participantes do leilão receberam uma vaga descrição do que seria o livro, sem acesso ao original, nem mesmo a um capítulo.

Uma das apostas da Globo Livros, que acabou ficando com os direitos no Brasil, é que Allen, na autobiografia, apresentasse um outro ponto de vista. De fato, são várias as surpresas apresentadas na obra, na qual Allen traça um perfil honesto sobre si – mesmo que isso possa ser usado contra ele, como a insensibilidade ao tratar de mulheres. 

De fato, Allen não escapou da condenação moral a que foi submetido especialmente pelos americanos e ocupa uma parte considerável de sua autobiografia para se defender. Um dos principais alvos é a atriz Mia Farrow, com quem teve um filho biológico (Satchel, que agora se identifica como Ronan) e vários outros adotados. São momentos do livro em que a voz descontraída cede espaço para um ajuste de contas, o humor é atropelado pelo desabafo. Allen retrata Mia como uma mulher insensível no trato com os filhos, que eram adotados com a mesma emoção com que se compra um brinquedo novo – e isso ainda lhe trouxe uma bem-vinda reputação de santa.

Allen descreve maus-tratos praticados por Mia em diversos filhos, mas se concentra em Soon-Yi, garota sul-coreana que foi adotada pela atriz quando estava com 7 anos e com quem Allen iniciou um relacionamento amoroso quando ela completou 21. Segundo o cineasta, a menina vivia feliz em um orfanato gerido por freiras quando foi levada pela atriz. “Mia então a tirou desse ambiente com o qual ela havia se habituado e a obrigou a fazer uma turnê por outros orfanatos, onde buscava novos órfãos como alguém que passa pelas gôndolas de promoção numa livraria”, escreve Allen, que passa a enumerar uma série de situações constrangedoras a que Soon-Yi era submetida.

Allen chega a usar o depoimento de outro filho, Moses, para dizer que sua irmã Tam não morreu de problemas cardíacos aos 21 anos, mas de uma overdose de pílulas ingeridas após uma depressão que marcou grande parte de sua vida.

Mia descobriu que Allen estava se relacionando com Soon-Yi ao encontrar fotos polaroides eróticas da garota no apartamento do cineasta. “É claro que entendo o choque dela, sua consternação, raiva e tudo mais”, observa. “Foi a reação correta.” Depois disso, furiosa, Mia decidiu acusá-lo de ser molestador, o que se agravou quando surgiu a denúncia de Dylan.

Woody Allen, Mia Farrow e os filhos – Dylan no colo da atriz e Soon-Yi à direita. Foto: ANN CLIFFORD/DMI/TIME LIFE PICTURE

Apesar da turbulenta vida privada, Woody Allen não deixou de fazer filmes, alguns figurando entre os melhores de sua carreira – como Maridos e Esposas (1992). “Quando terminei de escrever (o roteiro), decidi que rodaria predominantemente com a câmera na mão e não obedeceria às regras de filmagem. Eu cortaria quando quisesse, sem me preocupar com gente olhando na direção certa, faria cortes e iria ao oposto do bonito ou bem-feito. Acabou sendo um bom filme, eu acho, e não pego leve com o meu trabalho.”

Allen, aliás, revela uma sinceridade cortante quando se refere a si mesmo. A primeira surpresa surge quando conta que, quando jovem, era popular no colégio e praticante de vários esportes, especialmente o beisebol. É hilariante a forma como descreve a família: o pai era um jogador e praticante de pequenos furtos – foi em uma máquina de escrever surrupiada, aliás, que Allen iniciou sua carreira artística, escrevendo piadas para colunas de jornal e, depois, para comediantes sem talento para a escrita.

Já a mãe impedia que a família fracassasse, impetuosa como o general Patton, trabalhando como caixa de uma floricultura. O jovem Allen, no entanto, ia mal na escola, preferindo se tornar mágico amador e, com habilidade nas cartas, usava o DNA herdado do pai para a desonestidade e embolsava a mesada dos colegas. Por isso, não é de se estranhar quando ele confessa que não gostava de ler – o rádio e os filmes eram mais empolgantes.

“Eu não era um leitor até quase o fim do ensino médio, quando os meus hormônios de fato começaram a agir e eu notei pela primeira vez aquelas garotas com longos cabelos lisos, que não passavam batom, quase não usavam maquiagem, se vestiam com gola rulê preta e saias com meias-calças escuras e carregavam grandes bolsas de couro com cópias de A Metamorfose, em que anotavam nas margens coisas como: ‘É, fato’ ou ‘Ver Kierkegaard’”, escreve.

Hoje, próximo dos 85 anos (completa em 1.º de dezembro), prefere escrever a filmar. Mudaria algo? “Não teria comprado o fatiador milagroso de vegetais que um cara anunciou na TV.” Algum legado? “Melhor que viver nos corações e nas mentes do público é viver no meu apartamento.”

WOODY ALLEN – A AUTOBIOGRAFIA

  • Autor: Woody Allen
  • Tradutor: Santiago Nazarian
  • Editora: Globo (328 págs., R$ 49,90)

Era uma das mais aguardadas autobiografias, afinal, Woody Allen firmou-se, desde a década de 1960, como um dos principais diretores e roteiristas do cinema americano, autor de comédias (algumas já clássicas) que traduzem com graça as principais angústias humanas. Mas Woody Allen – A Autobiografia que a Globo Livros lança nesta terça, 10, no Brasil correu o risco de não ser publicada nos Estados Unidos – a editora Hachette já cuidava da obra quando desistiu de lançá-la, depois de um protesto de seus funcionários contra o lançamento. “Dispensaram o livro como se fosse um bloco radioativo de xenônio-135”, conta ele. Por fim, Apropos of Nothing (A propósito do nada, em tradução livre), título original, saiu pela independente Arcade, que o lançou quase na surdina, no final de março.

O motivo não era editorial, pois Allen relembra sua trajetória com a mesma verve cômica que marca seus filmes e livros. Mas sim a acusação feita por Dylan, filha do cineasta com a atriz Mia Farrow, de abuso sexual, crime que teria acontecido em 1992, quando ela tinha 7 anos – uma acusação que reiterou em 2018, mas Allen sempre desmentiu e a denúncia não chegou a ser comprovada pelas investigações feitas sobre o caso.

Cineasta.Foi esportista, mas não gostava de ler Foto: Damon Winter/The New York Times

Mesmo assim, o estrago estava feito e Allen logo perdeu um contrato estimado em US$ 68 milhões com a Amazon, responsável pela distribuição de seus novos filmes. Um dos mais recentes, por exemplo, Um Dia de Chuva em Nova York (2019), nem chegou a ser lançado nos Estados Unidos, mas estreou nos cinemas brasileiros. E a comédia romântica Rifkin’s Festival, seu último longa até o momento, foi financiada por uma produtora espanhola, a Mediapro, e abriu o Festival de San Sebastián, em setembro.

Se a Europa tornou-se novamente o refúgio cinematográfico para Allen, o furacão iniciado no mercado editorial americano foi suficiente para contaminar o provável sucesso que o livro teria em diversos países, onde a publicação foi protelada ou mesmo cancelada. No Brasil, alguns editores não quiseram participar do leilão pelos direitos autorais, temendo uma negativa reação do público leitor. A definição, aliás, aconteceu depois de um esquema arriscado, com ofertas feitas às escuras, pois os participantes do leilão receberam uma vaga descrição do que seria o livro, sem acesso ao original, nem mesmo a um capítulo.

Uma das apostas da Globo Livros, que acabou ficando com os direitos no Brasil, é que Allen, na autobiografia, apresentasse um outro ponto de vista. De fato, são várias as surpresas apresentadas na obra, na qual Allen traça um perfil honesto sobre si – mesmo que isso possa ser usado contra ele, como a insensibilidade ao tratar de mulheres. 

De fato, Allen não escapou da condenação moral a que foi submetido especialmente pelos americanos e ocupa uma parte considerável de sua autobiografia para se defender. Um dos principais alvos é a atriz Mia Farrow, com quem teve um filho biológico (Satchel, que agora se identifica como Ronan) e vários outros adotados. São momentos do livro em que a voz descontraída cede espaço para um ajuste de contas, o humor é atropelado pelo desabafo. Allen retrata Mia como uma mulher insensível no trato com os filhos, que eram adotados com a mesma emoção com que se compra um brinquedo novo – e isso ainda lhe trouxe uma bem-vinda reputação de santa.

Allen descreve maus-tratos praticados por Mia em diversos filhos, mas se concentra em Soon-Yi, garota sul-coreana que foi adotada pela atriz quando estava com 7 anos e com quem Allen iniciou um relacionamento amoroso quando ela completou 21. Segundo o cineasta, a menina vivia feliz em um orfanato gerido por freiras quando foi levada pela atriz. “Mia então a tirou desse ambiente com o qual ela havia se habituado e a obrigou a fazer uma turnê por outros orfanatos, onde buscava novos órfãos como alguém que passa pelas gôndolas de promoção numa livraria”, escreve Allen, que passa a enumerar uma série de situações constrangedoras a que Soon-Yi era submetida.

Allen chega a usar o depoimento de outro filho, Moses, para dizer que sua irmã Tam não morreu de problemas cardíacos aos 21 anos, mas de uma overdose de pílulas ingeridas após uma depressão que marcou grande parte de sua vida.

Mia descobriu que Allen estava se relacionando com Soon-Yi ao encontrar fotos polaroides eróticas da garota no apartamento do cineasta. “É claro que entendo o choque dela, sua consternação, raiva e tudo mais”, observa. “Foi a reação correta.” Depois disso, furiosa, Mia decidiu acusá-lo de ser molestador, o que se agravou quando surgiu a denúncia de Dylan.

Woody Allen, Mia Farrow e os filhos – Dylan no colo da atriz e Soon-Yi à direita. Foto: ANN CLIFFORD/DMI/TIME LIFE PICTURE

Apesar da turbulenta vida privada, Woody Allen não deixou de fazer filmes, alguns figurando entre os melhores de sua carreira – como Maridos e Esposas (1992). “Quando terminei de escrever (o roteiro), decidi que rodaria predominantemente com a câmera na mão e não obedeceria às regras de filmagem. Eu cortaria quando quisesse, sem me preocupar com gente olhando na direção certa, faria cortes e iria ao oposto do bonito ou bem-feito. Acabou sendo um bom filme, eu acho, e não pego leve com o meu trabalho.”

Allen, aliás, revela uma sinceridade cortante quando se refere a si mesmo. A primeira surpresa surge quando conta que, quando jovem, era popular no colégio e praticante de vários esportes, especialmente o beisebol. É hilariante a forma como descreve a família: o pai era um jogador e praticante de pequenos furtos – foi em uma máquina de escrever surrupiada, aliás, que Allen iniciou sua carreira artística, escrevendo piadas para colunas de jornal e, depois, para comediantes sem talento para a escrita.

Já a mãe impedia que a família fracassasse, impetuosa como o general Patton, trabalhando como caixa de uma floricultura. O jovem Allen, no entanto, ia mal na escola, preferindo se tornar mágico amador e, com habilidade nas cartas, usava o DNA herdado do pai para a desonestidade e embolsava a mesada dos colegas. Por isso, não é de se estranhar quando ele confessa que não gostava de ler – o rádio e os filmes eram mais empolgantes.

“Eu não era um leitor até quase o fim do ensino médio, quando os meus hormônios de fato começaram a agir e eu notei pela primeira vez aquelas garotas com longos cabelos lisos, que não passavam batom, quase não usavam maquiagem, se vestiam com gola rulê preta e saias com meias-calças escuras e carregavam grandes bolsas de couro com cópias de A Metamorfose, em que anotavam nas margens coisas como: ‘É, fato’ ou ‘Ver Kierkegaard’”, escreve.

Hoje, próximo dos 85 anos (completa em 1.º de dezembro), prefere escrever a filmar. Mudaria algo? “Não teria comprado o fatiador milagroso de vegetais que um cara anunciou na TV.” Algum legado? “Melhor que viver nos corações e nas mentes do público é viver no meu apartamento.”

WOODY ALLEN – A AUTOBIOGRAFIA

  • Autor: Woody Allen
  • Tradutor: Santiago Nazarian
  • Editora: Globo (328 págs., R$ 49,90)

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