Cinthia Marcelle presta tributo à vanguarda do século 20 no Masp


Artista assina uma obra que remete ao suprematismo russo na exposição ‘Por Via das Dúvidas’

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

É possível afirmar que a instalação Da Parte pelo Todo, que ocupa uma grande área na exposição de Cinthia Marcelle no segundo subsolo do Masp, marca um ponto de virada na carreira da artista mineira em sua primeira panorâmica num museu, Por Via das Dúvidas. Com 49 trabalhos selecionados pela jovem curadora Isabella Rjeille, a instalação Da Parte pelo Todo é uma das dez obras concebidas especialmente para a mostra. É lícito imaginar que ela terá para a arte brasileira importância equivalente ao advento do relevo espacial (1959) para Hélio Oiticica ou, para retroceder ainda mais no tempo, ao marco zero do construtivismo russo por Tatlin, em 1913/14.

Tatlin, como se sabe, usou cantos de paredes para “construir” sua primeira obra construtivista. Tempos depois, o também russo Naum Gabo trocou o termo construtivista por “construtivo”. Veio Malevitch e foi além dos dois, ao criar o suprematismo – segundo o próprio, uma tentativa desesperada de “liberar a arte do mundo representacional”. Uma composição com um quadrado preto sobre uma tela branca, seguida pelas imagens geométricas de quadrados brancos sobre branco deram início à revolução de Malevitch, que desembocou na abstração, no modernismo da Bauhaus e, finalmente, no acromatismo do argentino Tomasello (1915-2014) nos anos 1960.

Vista da instalação 'Da Parte pelo Todo', de Cinthia Marcelle (2014-22), refereência ao suprematismo de Malevitch com objetos da construção civil Foto: Julia Maurano/Masp
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A cor, carregada de toda essa história social, é usada com muita parcimônia pela artista mineira, especialmente na instalação Da Parte pelo Todo, e na série de fotografias Capa Morada (2003), feita em parceria com o artista sul-africano Jean Meera, durante sua residência artística na Cidade do Cabo, África do Sul. Nessa série, Marcelle cobre seu corpo com tecidos cujas cores se misturam com a arquitetura local numa simbiose suprematista que ratifica a demonstração do pintor e teórico alemão Josef Albers, de que nunca vemos, de fato, o que uma cor, real e fisicamente, é.

A cor, no caso dessa série, é apenas um pretexto para discutir complexas questões culturais como a do apartheid, que marcou a África do Sul. “Não se trata apenas de política, mas de uma questão formal, e concordo com essa leitura que liga obras como Capa Morada ou Da Parte pelo Todo à herança do construtivismo russo e do suprematismo de Malevitch”, diz a curadora Isabella Rjeille.

Isabela Rjeille e Cinthia Marcelle na exposição "Por via das dúvidas" Fotos Denise Andrade/ESTADAO Foto: DENISE ANDRADE /Estadao
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Cinthia Marcelle reitera suas palavras e acrescenta: “Fiz um pouco o dever de casa, ao ler sobre importantes movimentos históricos como o concreto e, claro, sobre os anteriores, sendo, como sou, de uma geração pré-internet”.

A artista nasceu em 1974, três anos antes de um grande amigo seu, também mineiro, Pedro Moraleida (1977-1999), de quem organizou e catalogou o acervo e promoveu a primeira mostra do pintor. Figurativa, sua pintura é marcada pelas ideias de Deleuze e a defesa de uma sexualidade livre. É difícil ver conexões entre sua obra e a da amiga, mas Marcelle garante que Moraleida foi uma influência tão forte como a descoberta da obra de Cildo Meirelles – mais perceptível também pelas questões políticas presentes nos vídeos, performances e instalações da artista mineira.

A obra "Do Vermnelho para o Vermelho', outra referência suprematista na exposição 'Por via das Dúvidas' Foto: Daniel Cabrel /Masp
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Numa performance (Na Batalha de Maria, de 2003), registrada em fotos (na mostra), ela ocupa o lugar bíblico de Maria Madalena, a primeira a testemunhar a Ressurreição de Cristo, que ia ser apedrejada como adúltera e foi salva por Jesus. Numa obra que usa maletas para transporte de instrumentos cortantes, ela presta tributo ao poeta João Cabral de Melo Neto fazendo referência ao Auto do Frade (1984), escrito no fim da ditadura militar, que trata da execução do revolucionário Frei Caneca em Recife, em 1825.

As obras de Cinthia Marcelle, enfim, tentam recontar a história (do Brasil e do mundo) sob a perspectiva dos humilhados pelo poder. Em vídeos como Comunidade, da série Divina Violência, feita em colaboração com o artista Tiago Mata Machado, ela denuncia a fragilidade de nossa democracia e o impossível diálogo interclassista no Pais. Em suas trouxas, ela faz referência aos sacos de aniagem ensanguentados de Arthur Barrio espalhados pelo Rio durante a ditadura militar.

Mas o ápice dessas considerações políticas é a grande instalação pós-suprematista Da Parte pelo Todo – um ambiente em preto e branco, em que as ferramentas de uma construção são pintadas nessas cores e se confundem com o branco do piso. É como se ela transformasse o espaço tridimensional numa tela bidimensional. Marcelle faz a grande síntese ambicionada pelos neoconcretos. Um marco em sua carreira e na arte contemporânea brasileira

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SERVIÇO

CINTHIA MARCELLE: POR VIA DAS DÚVIDAS

MASP. Avenida Paulista, 1578, tel. 3149-5959. 3ª.s, grátis, 10h/20h (entrada até as 19h); 4ª/dom., 10h/18h (entrada até as 17h); fechado às segundas. Agendamento on-line obrigatório pelo link masp.org.br/ingressos. Ingressos: R$ 50 e R$ 25 (meia-entrada). Até 26/3/23

É possível afirmar que a instalação Da Parte pelo Todo, que ocupa uma grande área na exposição de Cinthia Marcelle no segundo subsolo do Masp, marca um ponto de virada na carreira da artista mineira em sua primeira panorâmica num museu, Por Via das Dúvidas. Com 49 trabalhos selecionados pela jovem curadora Isabella Rjeille, a instalação Da Parte pelo Todo é uma das dez obras concebidas especialmente para a mostra. É lícito imaginar que ela terá para a arte brasileira importância equivalente ao advento do relevo espacial (1959) para Hélio Oiticica ou, para retroceder ainda mais no tempo, ao marco zero do construtivismo russo por Tatlin, em 1913/14.

Tatlin, como se sabe, usou cantos de paredes para “construir” sua primeira obra construtivista. Tempos depois, o também russo Naum Gabo trocou o termo construtivista por “construtivo”. Veio Malevitch e foi além dos dois, ao criar o suprematismo – segundo o próprio, uma tentativa desesperada de “liberar a arte do mundo representacional”. Uma composição com um quadrado preto sobre uma tela branca, seguida pelas imagens geométricas de quadrados brancos sobre branco deram início à revolução de Malevitch, que desembocou na abstração, no modernismo da Bauhaus e, finalmente, no acromatismo do argentino Tomasello (1915-2014) nos anos 1960.

Vista da instalação 'Da Parte pelo Todo', de Cinthia Marcelle (2014-22), refereência ao suprematismo de Malevitch com objetos da construção civil Foto: Julia Maurano/Masp

A cor, carregada de toda essa história social, é usada com muita parcimônia pela artista mineira, especialmente na instalação Da Parte pelo Todo, e na série de fotografias Capa Morada (2003), feita em parceria com o artista sul-africano Jean Meera, durante sua residência artística na Cidade do Cabo, África do Sul. Nessa série, Marcelle cobre seu corpo com tecidos cujas cores se misturam com a arquitetura local numa simbiose suprematista que ratifica a demonstração do pintor e teórico alemão Josef Albers, de que nunca vemos, de fato, o que uma cor, real e fisicamente, é.

A cor, no caso dessa série, é apenas um pretexto para discutir complexas questões culturais como a do apartheid, que marcou a África do Sul. “Não se trata apenas de política, mas de uma questão formal, e concordo com essa leitura que liga obras como Capa Morada ou Da Parte pelo Todo à herança do construtivismo russo e do suprematismo de Malevitch”, diz a curadora Isabella Rjeille.

Isabela Rjeille e Cinthia Marcelle na exposição "Por via das dúvidas" Fotos Denise Andrade/ESTADAO Foto: DENISE ANDRADE /Estadao

Cinthia Marcelle reitera suas palavras e acrescenta: “Fiz um pouco o dever de casa, ao ler sobre importantes movimentos históricos como o concreto e, claro, sobre os anteriores, sendo, como sou, de uma geração pré-internet”.

A artista nasceu em 1974, três anos antes de um grande amigo seu, também mineiro, Pedro Moraleida (1977-1999), de quem organizou e catalogou o acervo e promoveu a primeira mostra do pintor. Figurativa, sua pintura é marcada pelas ideias de Deleuze e a defesa de uma sexualidade livre. É difícil ver conexões entre sua obra e a da amiga, mas Marcelle garante que Moraleida foi uma influência tão forte como a descoberta da obra de Cildo Meirelles – mais perceptível também pelas questões políticas presentes nos vídeos, performances e instalações da artista mineira.

A obra "Do Vermnelho para o Vermelho', outra referência suprematista na exposição 'Por via das Dúvidas' Foto: Daniel Cabrel /Masp

Numa performance (Na Batalha de Maria, de 2003), registrada em fotos (na mostra), ela ocupa o lugar bíblico de Maria Madalena, a primeira a testemunhar a Ressurreição de Cristo, que ia ser apedrejada como adúltera e foi salva por Jesus. Numa obra que usa maletas para transporte de instrumentos cortantes, ela presta tributo ao poeta João Cabral de Melo Neto fazendo referência ao Auto do Frade (1984), escrito no fim da ditadura militar, que trata da execução do revolucionário Frei Caneca em Recife, em 1825.

As obras de Cinthia Marcelle, enfim, tentam recontar a história (do Brasil e do mundo) sob a perspectiva dos humilhados pelo poder. Em vídeos como Comunidade, da série Divina Violência, feita em colaboração com o artista Tiago Mata Machado, ela denuncia a fragilidade de nossa democracia e o impossível diálogo interclassista no Pais. Em suas trouxas, ela faz referência aos sacos de aniagem ensanguentados de Arthur Barrio espalhados pelo Rio durante a ditadura militar.

Mas o ápice dessas considerações políticas é a grande instalação pós-suprematista Da Parte pelo Todo – um ambiente em preto e branco, em que as ferramentas de uma construção são pintadas nessas cores e se confundem com o branco do piso. É como se ela transformasse o espaço tridimensional numa tela bidimensional. Marcelle faz a grande síntese ambicionada pelos neoconcretos. Um marco em sua carreira e na arte contemporânea brasileira

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MASP. Avenida Paulista, 1578, tel. 3149-5959. 3ª.s, grátis, 10h/20h (entrada até as 19h); 4ª/dom., 10h/18h (entrada até as 17h); fechado às segundas. Agendamento on-line obrigatório pelo link masp.org.br/ingressos. Ingressos: R$ 50 e R$ 25 (meia-entrada). Até 26/3/23

É possível afirmar que a instalação Da Parte pelo Todo, que ocupa uma grande área na exposição de Cinthia Marcelle no segundo subsolo do Masp, marca um ponto de virada na carreira da artista mineira em sua primeira panorâmica num museu, Por Via das Dúvidas. Com 49 trabalhos selecionados pela jovem curadora Isabella Rjeille, a instalação Da Parte pelo Todo é uma das dez obras concebidas especialmente para a mostra. É lícito imaginar que ela terá para a arte brasileira importância equivalente ao advento do relevo espacial (1959) para Hélio Oiticica ou, para retroceder ainda mais no tempo, ao marco zero do construtivismo russo por Tatlin, em 1913/14.

Tatlin, como se sabe, usou cantos de paredes para “construir” sua primeira obra construtivista. Tempos depois, o também russo Naum Gabo trocou o termo construtivista por “construtivo”. Veio Malevitch e foi além dos dois, ao criar o suprematismo – segundo o próprio, uma tentativa desesperada de “liberar a arte do mundo representacional”. Uma composição com um quadrado preto sobre uma tela branca, seguida pelas imagens geométricas de quadrados brancos sobre branco deram início à revolução de Malevitch, que desembocou na abstração, no modernismo da Bauhaus e, finalmente, no acromatismo do argentino Tomasello (1915-2014) nos anos 1960.

Vista da instalação 'Da Parte pelo Todo', de Cinthia Marcelle (2014-22), refereência ao suprematismo de Malevitch com objetos da construção civil Foto: Julia Maurano/Masp

A cor, carregada de toda essa história social, é usada com muita parcimônia pela artista mineira, especialmente na instalação Da Parte pelo Todo, e na série de fotografias Capa Morada (2003), feita em parceria com o artista sul-africano Jean Meera, durante sua residência artística na Cidade do Cabo, África do Sul. Nessa série, Marcelle cobre seu corpo com tecidos cujas cores se misturam com a arquitetura local numa simbiose suprematista que ratifica a demonstração do pintor e teórico alemão Josef Albers, de que nunca vemos, de fato, o que uma cor, real e fisicamente, é.

A cor, no caso dessa série, é apenas um pretexto para discutir complexas questões culturais como a do apartheid, que marcou a África do Sul. “Não se trata apenas de política, mas de uma questão formal, e concordo com essa leitura que liga obras como Capa Morada ou Da Parte pelo Todo à herança do construtivismo russo e do suprematismo de Malevitch”, diz a curadora Isabella Rjeille.

Isabela Rjeille e Cinthia Marcelle na exposição "Por via das dúvidas" Fotos Denise Andrade/ESTADAO Foto: DENISE ANDRADE /Estadao

Cinthia Marcelle reitera suas palavras e acrescenta: “Fiz um pouco o dever de casa, ao ler sobre importantes movimentos históricos como o concreto e, claro, sobre os anteriores, sendo, como sou, de uma geração pré-internet”.

A artista nasceu em 1974, três anos antes de um grande amigo seu, também mineiro, Pedro Moraleida (1977-1999), de quem organizou e catalogou o acervo e promoveu a primeira mostra do pintor. Figurativa, sua pintura é marcada pelas ideias de Deleuze e a defesa de uma sexualidade livre. É difícil ver conexões entre sua obra e a da amiga, mas Marcelle garante que Moraleida foi uma influência tão forte como a descoberta da obra de Cildo Meirelles – mais perceptível também pelas questões políticas presentes nos vídeos, performances e instalações da artista mineira.

A obra "Do Vermnelho para o Vermelho', outra referência suprematista na exposição 'Por via das Dúvidas' Foto: Daniel Cabrel /Masp

Numa performance (Na Batalha de Maria, de 2003), registrada em fotos (na mostra), ela ocupa o lugar bíblico de Maria Madalena, a primeira a testemunhar a Ressurreição de Cristo, que ia ser apedrejada como adúltera e foi salva por Jesus. Numa obra que usa maletas para transporte de instrumentos cortantes, ela presta tributo ao poeta João Cabral de Melo Neto fazendo referência ao Auto do Frade (1984), escrito no fim da ditadura militar, que trata da execução do revolucionário Frei Caneca em Recife, em 1825.

As obras de Cinthia Marcelle, enfim, tentam recontar a história (do Brasil e do mundo) sob a perspectiva dos humilhados pelo poder. Em vídeos como Comunidade, da série Divina Violência, feita em colaboração com o artista Tiago Mata Machado, ela denuncia a fragilidade de nossa democracia e o impossível diálogo interclassista no Pais. Em suas trouxas, ela faz referência aos sacos de aniagem ensanguentados de Arthur Barrio espalhados pelo Rio durante a ditadura militar.

Mas o ápice dessas considerações políticas é a grande instalação pós-suprematista Da Parte pelo Todo – um ambiente em preto e branco, em que as ferramentas de uma construção são pintadas nessas cores e se confundem com o branco do piso. É como se ela transformasse o espaço tridimensional numa tela bidimensional. Marcelle faz a grande síntese ambicionada pelos neoconcretos. Um marco em sua carreira e na arte contemporânea brasileira

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MASP. Avenida Paulista, 1578, tel. 3149-5959. 3ª.s, grátis, 10h/20h (entrada até as 19h); 4ª/dom., 10h/18h (entrada até as 17h); fechado às segundas. Agendamento on-line obrigatório pelo link masp.org.br/ingressos. Ingressos: R$ 50 e R$ 25 (meia-entrada). Até 26/3/23

É possível afirmar que a instalação Da Parte pelo Todo, que ocupa uma grande área na exposição de Cinthia Marcelle no segundo subsolo do Masp, marca um ponto de virada na carreira da artista mineira em sua primeira panorâmica num museu, Por Via das Dúvidas. Com 49 trabalhos selecionados pela jovem curadora Isabella Rjeille, a instalação Da Parte pelo Todo é uma das dez obras concebidas especialmente para a mostra. É lícito imaginar que ela terá para a arte brasileira importância equivalente ao advento do relevo espacial (1959) para Hélio Oiticica ou, para retroceder ainda mais no tempo, ao marco zero do construtivismo russo por Tatlin, em 1913/14.

Tatlin, como se sabe, usou cantos de paredes para “construir” sua primeira obra construtivista. Tempos depois, o também russo Naum Gabo trocou o termo construtivista por “construtivo”. Veio Malevitch e foi além dos dois, ao criar o suprematismo – segundo o próprio, uma tentativa desesperada de “liberar a arte do mundo representacional”. Uma composição com um quadrado preto sobre uma tela branca, seguida pelas imagens geométricas de quadrados brancos sobre branco deram início à revolução de Malevitch, que desembocou na abstração, no modernismo da Bauhaus e, finalmente, no acromatismo do argentino Tomasello (1915-2014) nos anos 1960.

Vista da instalação 'Da Parte pelo Todo', de Cinthia Marcelle (2014-22), refereência ao suprematismo de Malevitch com objetos da construção civil Foto: Julia Maurano/Masp

A cor, carregada de toda essa história social, é usada com muita parcimônia pela artista mineira, especialmente na instalação Da Parte pelo Todo, e na série de fotografias Capa Morada (2003), feita em parceria com o artista sul-africano Jean Meera, durante sua residência artística na Cidade do Cabo, África do Sul. Nessa série, Marcelle cobre seu corpo com tecidos cujas cores se misturam com a arquitetura local numa simbiose suprematista que ratifica a demonstração do pintor e teórico alemão Josef Albers, de que nunca vemos, de fato, o que uma cor, real e fisicamente, é.

A cor, no caso dessa série, é apenas um pretexto para discutir complexas questões culturais como a do apartheid, que marcou a África do Sul. “Não se trata apenas de política, mas de uma questão formal, e concordo com essa leitura que liga obras como Capa Morada ou Da Parte pelo Todo à herança do construtivismo russo e do suprematismo de Malevitch”, diz a curadora Isabella Rjeille.

Isabela Rjeille e Cinthia Marcelle na exposição "Por via das dúvidas" Fotos Denise Andrade/ESTADAO Foto: DENISE ANDRADE /Estadao

Cinthia Marcelle reitera suas palavras e acrescenta: “Fiz um pouco o dever de casa, ao ler sobre importantes movimentos históricos como o concreto e, claro, sobre os anteriores, sendo, como sou, de uma geração pré-internet”.

A artista nasceu em 1974, três anos antes de um grande amigo seu, também mineiro, Pedro Moraleida (1977-1999), de quem organizou e catalogou o acervo e promoveu a primeira mostra do pintor. Figurativa, sua pintura é marcada pelas ideias de Deleuze e a defesa de uma sexualidade livre. É difícil ver conexões entre sua obra e a da amiga, mas Marcelle garante que Moraleida foi uma influência tão forte como a descoberta da obra de Cildo Meirelles – mais perceptível também pelas questões políticas presentes nos vídeos, performances e instalações da artista mineira.

A obra "Do Vermnelho para o Vermelho', outra referência suprematista na exposição 'Por via das Dúvidas' Foto: Daniel Cabrel /Masp

Numa performance (Na Batalha de Maria, de 2003), registrada em fotos (na mostra), ela ocupa o lugar bíblico de Maria Madalena, a primeira a testemunhar a Ressurreição de Cristo, que ia ser apedrejada como adúltera e foi salva por Jesus. Numa obra que usa maletas para transporte de instrumentos cortantes, ela presta tributo ao poeta João Cabral de Melo Neto fazendo referência ao Auto do Frade (1984), escrito no fim da ditadura militar, que trata da execução do revolucionário Frei Caneca em Recife, em 1825.

As obras de Cinthia Marcelle, enfim, tentam recontar a história (do Brasil e do mundo) sob a perspectiva dos humilhados pelo poder. Em vídeos como Comunidade, da série Divina Violência, feita em colaboração com o artista Tiago Mata Machado, ela denuncia a fragilidade de nossa democracia e o impossível diálogo interclassista no Pais. Em suas trouxas, ela faz referência aos sacos de aniagem ensanguentados de Arthur Barrio espalhados pelo Rio durante a ditadura militar.

Mas o ápice dessas considerações políticas é a grande instalação pós-suprematista Da Parte pelo Todo – um ambiente em preto e branco, em que as ferramentas de uma construção são pintadas nessas cores e se confundem com o branco do piso. É como se ela transformasse o espaço tridimensional numa tela bidimensional. Marcelle faz a grande síntese ambicionada pelos neoconcretos. Um marco em sua carreira e na arte contemporânea brasileira

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CINTHIA MARCELLE: POR VIA DAS DÚVIDAS

MASP. Avenida Paulista, 1578, tel. 3149-5959. 3ª.s, grátis, 10h/20h (entrada até as 19h); 4ª/dom., 10h/18h (entrada até as 17h); fechado às segundas. Agendamento on-line obrigatório pelo link masp.org.br/ingressos. Ingressos: R$ 50 e R$ 25 (meia-entrada). Até 26/3/23

É possível afirmar que a instalação Da Parte pelo Todo, que ocupa uma grande área na exposição de Cinthia Marcelle no segundo subsolo do Masp, marca um ponto de virada na carreira da artista mineira em sua primeira panorâmica num museu, Por Via das Dúvidas. Com 49 trabalhos selecionados pela jovem curadora Isabella Rjeille, a instalação Da Parte pelo Todo é uma das dez obras concebidas especialmente para a mostra. É lícito imaginar que ela terá para a arte brasileira importância equivalente ao advento do relevo espacial (1959) para Hélio Oiticica ou, para retroceder ainda mais no tempo, ao marco zero do construtivismo russo por Tatlin, em 1913/14.

Tatlin, como se sabe, usou cantos de paredes para “construir” sua primeira obra construtivista. Tempos depois, o também russo Naum Gabo trocou o termo construtivista por “construtivo”. Veio Malevitch e foi além dos dois, ao criar o suprematismo – segundo o próprio, uma tentativa desesperada de “liberar a arte do mundo representacional”. Uma composição com um quadrado preto sobre uma tela branca, seguida pelas imagens geométricas de quadrados brancos sobre branco deram início à revolução de Malevitch, que desembocou na abstração, no modernismo da Bauhaus e, finalmente, no acromatismo do argentino Tomasello (1915-2014) nos anos 1960.

Vista da instalação 'Da Parte pelo Todo', de Cinthia Marcelle (2014-22), refereência ao suprematismo de Malevitch com objetos da construção civil Foto: Julia Maurano/Masp

A cor, carregada de toda essa história social, é usada com muita parcimônia pela artista mineira, especialmente na instalação Da Parte pelo Todo, e na série de fotografias Capa Morada (2003), feita em parceria com o artista sul-africano Jean Meera, durante sua residência artística na Cidade do Cabo, África do Sul. Nessa série, Marcelle cobre seu corpo com tecidos cujas cores se misturam com a arquitetura local numa simbiose suprematista que ratifica a demonstração do pintor e teórico alemão Josef Albers, de que nunca vemos, de fato, o que uma cor, real e fisicamente, é.

A cor, no caso dessa série, é apenas um pretexto para discutir complexas questões culturais como a do apartheid, que marcou a África do Sul. “Não se trata apenas de política, mas de uma questão formal, e concordo com essa leitura que liga obras como Capa Morada ou Da Parte pelo Todo à herança do construtivismo russo e do suprematismo de Malevitch”, diz a curadora Isabella Rjeille.

Isabela Rjeille e Cinthia Marcelle na exposição "Por via das dúvidas" Fotos Denise Andrade/ESTADAO Foto: DENISE ANDRADE /Estadao

Cinthia Marcelle reitera suas palavras e acrescenta: “Fiz um pouco o dever de casa, ao ler sobre importantes movimentos históricos como o concreto e, claro, sobre os anteriores, sendo, como sou, de uma geração pré-internet”.

A artista nasceu em 1974, três anos antes de um grande amigo seu, também mineiro, Pedro Moraleida (1977-1999), de quem organizou e catalogou o acervo e promoveu a primeira mostra do pintor. Figurativa, sua pintura é marcada pelas ideias de Deleuze e a defesa de uma sexualidade livre. É difícil ver conexões entre sua obra e a da amiga, mas Marcelle garante que Moraleida foi uma influência tão forte como a descoberta da obra de Cildo Meirelles – mais perceptível também pelas questões políticas presentes nos vídeos, performances e instalações da artista mineira.

A obra "Do Vermnelho para o Vermelho', outra referência suprematista na exposição 'Por via das Dúvidas' Foto: Daniel Cabrel /Masp

Numa performance (Na Batalha de Maria, de 2003), registrada em fotos (na mostra), ela ocupa o lugar bíblico de Maria Madalena, a primeira a testemunhar a Ressurreição de Cristo, que ia ser apedrejada como adúltera e foi salva por Jesus. Numa obra que usa maletas para transporte de instrumentos cortantes, ela presta tributo ao poeta João Cabral de Melo Neto fazendo referência ao Auto do Frade (1984), escrito no fim da ditadura militar, que trata da execução do revolucionário Frei Caneca em Recife, em 1825.

As obras de Cinthia Marcelle, enfim, tentam recontar a história (do Brasil e do mundo) sob a perspectiva dos humilhados pelo poder. Em vídeos como Comunidade, da série Divina Violência, feita em colaboração com o artista Tiago Mata Machado, ela denuncia a fragilidade de nossa democracia e o impossível diálogo interclassista no Pais. Em suas trouxas, ela faz referência aos sacos de aniagem ensanguentados de Arthur Barrio espalhados pelo Rio durante a ditadura militar.

Mas o ápice dessas considerações políticas é a grande instalação pós-suprematista Da Parte pelo Todo – um ambiente em preto e branco, em que as ferramentas de uma construção são pintadas nessas cores e se confundem com o branco do piso. É como se ela transformasse o espaço tridimensional numa tela bidimensional. Marcelle faz a grande síntese ambicionada pelos neoconcretos. Um marco em sua carreira e na arte contemporânea brasileira

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