‘Cizânias’, de Clara Schulmann, fala da repressão ao discurso feminino


Escritora analisa como ressoa a voz das mulheres nas artes e na sociedade

Por Dirce Waltrick do Amarante

A escritora norte-americana Gertrude Stein escreveu em 1916 uma peça intitulada Vozes de Mulheres, que inicia com a seguinte afirmação: “Vozes de mulheres dão prazer”. Essa segurança inicial vai dando, porém, lugar à incerteza, afinal, “O que são vozes de mulheres”? O fato é que, na peça, essas falas vêm à tona e criam uma verdadeira confusão.

A escritora americana, nessa peça, parece resumir a discussão desenvolvida pela crítica de arte e escritora francesa Clara Schulmann no recém-publicado Cizânias: Vozes de Mulheres, em tradução de Lúcia Monteiro. Vozes de Mulheres é, aliás, citada por Schulmann, pois nela se encontra “o interesse de Stein pela spoken word – é inicialmente ao ouvir discussões reais que ela elabora sua peça – e pela arte de conversar no vazio”.

Pablo Picasso pintou Gertrude Stein  Foto: Metropolitan Museum of Art
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Schulmann parte da ideia dessa conversa no vazio (que não é ouvida) e cria uma algaravia ao mesclar experiências pessoais com vozes de outras mulheres que dão embasamento ao livro. Suas referências são teóricas, literárias e artísticas, principalmente vindas do cinema, quando enfatiza a Hollywood dos anos 1940. Assim, a autora demonstra o quão difícil é conter as vozes de mulheres, mesmo que tenham ficado e ainda fiquem em muitas ocasiões restritas aos espaços domésticos.

Virginia Woolf, mencionada pela escritora francesa, acreditava que sempre houve uma produção contínua de escrita feita por mulheres, mas ela estava “fechada em velhos diários, afundada em velhas gavetas, meio apagada na memória dos antigos. É para ser encontrada nas vidas obscuras – nesses corredores quase sem luz da história onde figuras de gerações de mulheres são tão indistintas, tão instavelmente percebidas. Porque sobre as mulheres muito pouco se sabe”.

Um século depois, ainda se percorrem “corredores sem luz” e se abrem “as velhas gavetas, os diários”, pois, lembra Schulmann, “a voz das mulheres se faz ouvir nos subterrâneos das vias oficiais, mais retilíneas. Daí sua intermitência, sua rítmica peculiar que a faz acender-se e apagar-se, escapar às linhas contínuas”.

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A tela "Dans la Serre', de Édouard Manet, de 1879  Foto: Alte Nationalgalerie de Berlim

As vozes colocadas no papel são importantes, mas o que ganha destaque nesse livro é a “a maneira como pensamos em voz alta”, ou conversamos. Afirma Schulmann que as vozes das mulheres, por muito tempo, eram emitidas com dificuldade. A autora se vale de um quadro de Édouard Manet, Dans la Serre, de 1879, para defender a sua tese. Nesse quadro, um homem conversa de pé com uma mulher sentada em um banco. A mulher usa “espartilho, cinto, pulseira e luva” e o homem parece falar com ela enquanto a companheira olha para o vazio. Schulmann compara a mulher à vegetação ao redor: as mulheres e as plantas não têm voz, e completa: “Usamos a palavra ‘muda’ para nos referirmos a umas e outras”. De fato, “como mulheres que usavam espartilho faziam para respirar”, com o diafragma comprimido e pouco ar? Como podiam falar?

A velocidade da voz feminina também é importante. Natalia Ginzburg, com quem Schulmann dialoga, conta que falava e escrevia “muito rápido porque tinha irmãos mais velhos que, quando ela era pequena, mandavam sempre que ela se calasse quando falava à mesa”. Portanto, ela se acostumou a dizer tudo “bem depressa, usando o mínimo de palavras, com medo de que os outros voltassem a falar entre si e deixassem de escutá-la”.

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Quanto ao tom de voz, diz a autora que, em 1944, quando as mulheres conquistaram o direito ao voto na França, suas vozes tornaram-se mais graves. No mundo profissional, segundo a autora, “confia-se mais em uma voz grave, deixa-se seduzir mais por uma voz grave e, de uns cinquenta anos para cá, as vozes agudas, até então consideradas especificamente femininas, desaparecem progressivamente”.

No cinema de meados do século passado, por exemplo, as divas e não divas eram silenciosas ou se expressavam cantando

Cizânia discute ainda “os silêncios ou as hesitações” da voz, que a escrita tende a apagar. As mulheres, por exemplo, podiam permanecer completamente silenciosas desde que esse silêncio viesse acompanhado de “uma beleza física de tirar o fôlego” e “uma dose de glamour”, como diz a escritora e cineasta Chris Kraus, em uma entrevista reproduzida por Schulmann. Kraus prossegue: “Não dava para ser uma garota cheia de espinhas ou um pouco angulosa e permanecer em silêncio. (Risos)”.

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O silêncio feminino foi explorado por muito tempo como uma característica positiva, algo sedutor e misterioso. No cinema de meados do século passado, por exemplo, as divas e não divas eram silenciosas ou se expressavam cantando (sereias sedutoras). Quando falavam, criavam problemas: “I’m trouble”: vem daí o título do livro de Schulmann, que traduziu trouble, do inglês, por zizanie, em francês. Na tradução em português, se tornou “cizânia”. Na nossa língua, muitas palavras traduzem trouble: problema, confusão, cizânia. O fato é que as mulheres, quando abrem a boca e expõem seu interior através da voz, provocam confusão e causam problemas, pois rompem estereótipos culturais que ainda hoje as sufocam como espartilhos.

CIZÂNIAS

CLARA SCHULMANN

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AYINÉ

200 PÁGINAS

R$ 69,90

A escritora norte-americana Gertrude Stein escreveu em 1916 uma peça intitulada Vozes de Mulheres, que inicia com a seguinte afirmação: “Vozes de mulheres dão prazer”. Essa segurança inicial vai dando, porém, lugar à incerteza, afinal, “O que são vozes de mulheres”? O fato é que, na peça, essas falas vêm à tona e criam uma verdadeira confusão.

A escritora americana, nessa peça, parece resumir a discussão desenvolvida pela crítica de arte e escritora francesa Clara Schulmann no recém-publicado Cizânias: Vozes de Mulheres, em tradução de Lúcia Monteiro. Vozes de Mulheres é, aliás, citada por Schulmann, pois nela se encontra “o interesse de Stein pela spoken word – é inicialmente ao ouvir discussões reais que ela elabora sua peça – e pela arte de conversar no vazio”.

Pablo Picasso pintou Gertrude Stein  Foto: Metropolitan Museum of Art

Schulmann parte da ideia dessa conversa no vazio (que não é ouvida) e cria uma algaravia ao mesclar experiências pessoais com vozes de outras mulheres que dão embasamento ao livro. Suas referências são teóricas, literárias e artísticas, principalmente vindas do cinema, quando enfatiza a Hollywood dos anos 1940. Assim, a autora demonstra o quão difícil é conter as vozes de mulheres, mesmo que tenham ficado e ainda fiquem em muitas ocasiões restritas aos espaços domésticos.

Virginia Woolf, mencionada pela escritora francesa, acreditava que sempre houve uma produção contínua de escrita feita por mulheres, mas ela estava “fechada em velhos diários, afundada em velhas gavetas, meio apagada na memória dos antigos. É para ser encontrada nas vidas obscuras – nesses corredores quase sem luz da história onde figuras de gerações de mulheres são tão indistintas, tão instavelmente percebidas. Porque sobre as mulheres muito pouco se sabe”.

Um século depois, ainda se percorrem “corredores sem luz” e se abrem “as velhas gavetas, os diários”, pois, lembra Schulmann, “a voz das mulheres se faz ouvir nos subterrâneos das vias oficiais, mais retilíneas. Daí sua intermitência, sua rítmica peculiar que a faz acender-se e apagar-se, escapar às linhas contínuas”.

A tela "Dans la Serre', de Édouard Manet, de 1879  Foto: Alte Nationalgalerie de Berlim

As vozes colocadas no papel são importantes, mas o que ganha destaque nesse livro é a “a maneira como pensamos em voz alta”, ou conversamos. Afirma Schulmann que as vozes das mulheres, por muito tempo, eram emitidas com dificuldade. A autora se vale de um quadro de Édouard Manet, Dans la Serre, de 1879, para defender a sua tese. Nesse quadro, um homem conversa de pé com uma mulher sentada em um banco. A mulher usa “espartilho, cinto, pulseira e luva” e o homem parece falar com ela enquanto a companheira olha para o vazio. Schulmann compara a mulher à vegetação ao redor: as mulheres e as plantas não têm voz, e completa: “Usamos a palavra ‘muda’ para nos referirmos a umas e outras”. De fato, “como mulheres que usavam espartilho faziam para respirar”, com o diafragma comprimido e pouco ar? Como podiam falar?

A velocidade da voz feminina também é importante. Natalia Ginzburg, com quem Schulmann dialoga, conta que falava e escrevia “muito rápido porque tinha irmãos mais velhos que, quando ela era pequena, mandavam sempre que ela se calasse quando falava à mesa”. Portanto, ela se acostumou a dizer tudo “bem depressa, usando o mínimo de palavras, com medo de que os outros voltassem a falar entre si e deixassem de escutá-la”.

Quanto ao tom de voz, diz a autora que, em 1944, quando as mulheres conquistaram o direito ao voto na França, suas vozes tornaram-se mais graves. No mundo profissional, segundo a autora, “confia-se mais em uma voz grave, deixa-se seduzir mais por uma voz grave e, de uns cinquenta anos para cá, as vozes agudas, até então consideradas especificamente femininas, desaparecem progressivamente”.

No cinema de meados do século passado, por exemplo, as divas e não divas eram silenciosas ou se expressavam cantando

Cizânia discute ainda “os silêncios ou as hesitações” da voz, que a escrita tende a apagar. As mulheres, por exemplo, podiam permanecer completamente silenciosas desde que esse silêncio viesse acompanhado de “uma beleza física de tirar o fôlego” e “uma dose de glamour”, como diz a escritora e cineasta Chris Kraus, em uma entrevista reproduzida por Schulmann. Kraus prossegue: “Não dava para ser uma garota cheia de espinhas ou um pouco angulosa e permanecer em silêncio. (Risos)”.

O silêncio feminino foi explorado por muito tempo como uma característica positiva, algo sedutor e misterioso. No cinema de meados do século passado, por exemplo, as divas e não divas eram silenciosas ou se expressavam cantando (sereias sedutoras). Quando falavam, criavam problemas: “I’m trouble”: vem daí o título do livro de Schulmann, que traduziu trouble, do inglês, por zizanie, em francês. Na tradução em português, se tornou “cizânia”. Na nossa língua, muitas palavras traduzem trouble: problema, confusão, cizânia. O fato é que as mulheres, quando abrem a boca e expõem seu interior através da voz, provocam confusão e causam problemas, pois rompem estereótipos culturais que ainda hoje as sufocam como espartilhos.

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A escritora americana, nessa peça, parece resumir a discussão desenvolvida pela crítica de arte e escritora francesa Clara Schulmann no recém-publicado Cizânias: Vozes de Mulheres, em tradução de Lúcia Monteiro. Vozes de Mulheres é, aliás, citada por Schulmann, pois nela se encontra “o interesse de Stein pela spoken word – é inicialmente ao ouvir discussões reais que ela elabora sua peça – e pela arte de conversar no vazio”.

Pablo Picasso pintou Gertrude Stein  Foto: Metropolitan Museum of Art

Schulmann parte da ideia dessa conversa no vazio (que não é ouvida) e cria uma algaravia ao mesclar experiências pessoais com vozes de outras mulheres que dão embasamento ao livro. Suas referências são teóricas, literárias e artísticas, principalmente vindas do cinema, quando enfatiza a Hollywood dos anos 1940. Assim, a autora demonstra o quão difícil é conter as vozes de mulheres, mesmo que tenham ficado e ainda fiquem em muitas ocasiões restritas aos espaços domésticos.

Virginia Woolf, mencionada pela escritora francesa, acreditava que sempre houve uma produção contínua de escrita feita por mulheres, mas ela estava “fechada em velhos diários, afundada em velhas gavetas, meio apagada na memória dos antigos. É para ser encontrada nas vidas obscuras – nesses corredores quase sem luz da história onde figuras de gerações de mulheres são tão indistintas, tão instavelmente percebidas. Porque sobre as mulheres muito pouco se sabe”.

Um século depois, ainda se percorrem “corredores sem luz” e se abrem “as velhas gavetas, os diários”, pois, lembra Schulmann, “a voz das mulheres se faz ouvir nos subterrâneos das vias oficiais, mais retilíneas. Daí sua intermitência, sua rítmica peculiar que a faz acender-se e apagar-se, escapar às linhas contínuas”.

A tela "Dans la Serre', de Édouard Manet, de 1879  Foto: Alte Nationalgalerie de Berlim

As vozes colocadas no papel são importantes, mas o que ganha destaque nesse livro é a “a maneira como pensamos em voz alta”, ou conversamos. Afirma Schulmann que as vozes das mulheres, por muito tempo, eram emitidas com dificuldade. A autora se vale de um quadro de Édouard Manet, Dans la Serre, de 1879, para defender a sua tese. Nesse quadro, um homem conversa de pé com uma mulher sentada em um banco. A mulher usa “espartilho, cinto, pulseira e luva” e o homem parece falar com ela enquanto a companheira olha para o vazio. Schulmann compara a mulher à vegetação ao redor: as mulheres e as plantas não têm voz, e completa: “Usamos a palavra ‘muda’ para nos referirmos a umas e outras”. De fato, “como mulheres que usavam espartilho faziam para respirar”, com o diafragma comprimido e pouco ar? Como podiam falar?

A velocidade da voz feminina também é importante. Natalia Ginzburg, com quem Schulmann dialoga, conta que falava e escrevia “muito rápido porque tinha irmãos mais velhos que, quando ela era pequena, mandavam sempre que ela se calasse quando falava à mesa”. Portanto, ela se acostumou a dizer tudo “bem depressa, usando o mínimo de palavras, com medo de que os outros voltassem a falar entre si e deixassem de escutá-la”.

Quanto ao tom de voz, diz a autora que, em 1944, quando as mulheres conquistaram o direito ao voto na França, suas vozes tornaram-se mais graves. No mundo profissional, segundo a autora, “confia-se mais em uma voz grave, deixa-se seduzir mais por uma voz grave e, de uns cinquenta anos para cá, as vozes agudas, até então consideradas especificamente femininas, desaparecem progressivamente”.

No cinema de meados do século passado, por exemplo, as divas e não divas eram silenciosas ou se expressavam cantando

Cizânia discute ainda “os silêncios ou as hesitações” da voz, que a escrita tende a apagar. As mulheres, por exemplo, podiam permanecer completamente silenciosas desde que esse silêncio viesse acompanhado de “uma beleza física de tirar o fôlego” e “uma dose de glamour”, como diz a escritora e cineasta Chris Kraus, em uma entrevista reproduzida por Schulmann. Kraus prossegue: “Não dava para ser uma garota cheia de espinhas ou um pouco angulosa e permanecer em silêncio. (Risos)”.

O silêncio feminino foi explorado por muito tempo como uma característica positiva, algo sedutor e misterioso. No cinema de meados do século passado, por exemplo, as divas e não divas eram silenciosas ou se expressavam cantando (sereias sedutoras). Quando falavam, criavam problemas: “I’m trouble”: vem daí o título do livro de Schulmann, que traduziu trouble, do inglês, por zizanie, em francês. Na tradução em português, se tornou “cizânia”. Na nossa língua, muitas palavras traduzem trouble: problema, confusão, cizânia. O fato é que as mulheres, quando abrem a boca e expõem seu interior através da voz, provocam confusão e causam problemas, pois rompem estereótipos culturais que ainda hoje as sufocam como espartilhos.

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A escritora americana, nessa peça, parece resumir a discussão desenvolvida pela crítica de arte e escritora francesa Clara Schulmann no recém-publicado Cizânias: Vozes de Mulheres, em tradução de Lúcia Monteiro. Vozes de Mulheres é, aliás, citada por Schulmann, pois nela se encontra “o interesse de Stein pela spoken word – é inicialmente ao ouvir discussões reais que ela elabora sua peça – e pela arte de conversar no vazio”.

Pablo Picasso pintou Gertrude Stein  Foto: Metropolitan Museum of Art

Schulmann parte da ideia dessa conversa no vazio (que não é ouvida) e cria uma algaravia ao mesclar experiências pessoais com vozes de outras mulheres que dão embasamento ao livro. Suas referências são teóricas, literárias e artísticas, principalmente vindas do cinema, quando enfatiza a Hollywood dos anos 1940. Assim, a autora demonstra o quão difícil é conter as vozes de mulheres, mesmo que tenham ficado e ainda fiquem em muitas ocasiões restritas aos espaços domésticos.

Virginia Woolf, mencionada pela escritora francesa, acreditava que sempre houve uma produção contínua de escrita feita por mulheres, mas ela estava “fechada em velhos diários, afundada em velhas gavetas, meio apagada na memória dos antigos. É para ser encontrada nas vidas obscuras – nesses corredores quase sem luz da história onde figuras de gerações de mulheres são tão indistintas, tão instavelmente percebidas. Porque sobre as mulheres muito pouco se sabe”.

Um século depois, ainda se percorrem “corredores sem luz” e se abrem “as velhas gavetas, os diários”, pois, lembra Schulmann, “a voz das mulheres se faz ouvir nos subterrâneos das vias oficiais, mais retilíneas. Daí sua intermitência, sua rítmica peculiar que a faz acender-se e apagar-se, escapar às linhas contínuas”.

A tela "Dans la Serre', de Édouard Manet, de 1879  Foto: Alte Nationalgalerie de Berlim

As vozes colocadas no papel são importantes, mas o que ganha destaque nesse livro é a “a maneira como pensamos em voz alta”, ou conversamos. Afirma Schulmann que as vozes das mulheres, por muito tempo, eram emitidas com dificuldade. A autora se vale de um quadro de Édouard Manet, Dans la Serre, de 1879, para defender a sua tese. Nesse quadro, um homem conversa de pé com uma mulher sentada em um banco. A mulher usa “espartilho, cinto, pulseira e luva” e o homem parece falar com ela enquanto a companheira olha para o vazio. Schulmann compara a mulher à vegetação ao redor: as mulheres e as plantas não têm voz, e completa: “Usamos a palavra ‘muda’ para nos referirmos a umas e outras”. De fato, “como mulheres que usavam espartilho faziam para respirar”, com o diafragma comprimido e pouco ar? Como podiam falar?

A velocidade da voz feminina também é importante. Natalia Ginzburg, com quem Schulmann dialoga, conta que falava e escrevia “muito rápido porque tinha irmãos mais velhos que, quando ela era pequena, mandavam sempre que ela se calasse quando falava à mesa”. Portanto, ela se acostumou a dizer tudo “bem depressa, usando o mínimo de palavras, com medo de que os outros voltassem a falar entre si e deixassem de escutá-la”.

Quanto ao tom de voz, diz a autora que, em 1944, quando as mulheres conquistaram o direito ao voto na França, suas vozes tornaram-se mais graves. No mundo profissional, segundo a autora, “confia-se mais em uma voz grave, deixa-se seduzir mais por uma voz grave e, de uns cinquenta anos para cá, as vozes agudas, até então consideradas especificamente femininas, desaparecem progressivamente”.

No cinema de meados do século passado, por exemplo, as divas e não divas eram silenciosas ou se expressavam cantando

Cizânia discute ainda “os silêncios ou as hesitações” da voz, que a escrita tende a apagar. As mulheres, por exemplo, podiam permanecer completamente silenciosas desde que esse silêncio viesse acompanhado de “uma beleza física de tirar o fôlego” e “uma dose de glamour”, como diz a escritora e cineasta Chris Kraus, em uma entrevista reproduzida por Schulmann. Kraus prossegue: “Não dava para ser uma garota cheia de espinhas ou um pouco angulosa e permanecer em silêncio. (Risos)”.

O silêncio feminino foi explorado por muito tempo como uma característica positiva, algo sedutor e misterioso. No cinema de meados do século passado, por exemplo, as divas e não divas eram silenciosas ou se expressavam cantando (sereias sedutoras). Quando falavam, criavam problemas: “I’m trouble”: vem daí o título do livro de Schulmann, que traduziu trouble, do inglês, por zizanie, em francês. Na tradução em português, se tornou “cizânia”. Na nossa língua, muitas palavras traduzem trouble: problema, confusão, cizânia. O fato é que as mulheres, quando abrem a boca e expõem seu interior através da voz, provocam confusão e causam problemas, pois rompem estereótipos culturais que ainda hoje as sufocam como espartilhos.

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