A Poética de Aristóteles define a tragédia como “imitação de uma ação (...) que, por meio da compaixão (eleos) e do temor (phobos), provoca a purificação (katharsis) de tais paixões”. O gatilho catártico da tragédia reside na hamartía, termo cunhado pelo filósofo que designa um erro de discernimento ou uma falha de caráter que leva a personagem, em última instância, à catástrofe. Daí advém a noção de inevitabilidade do destino de Édipo, pela ignorância de seu parentesco; Macbeth, por sua ambição desmedida; ou Ned Stark, por sua honra inabalável. Em Kindred: Laços de Sangue (1979), romance de Octavia E. Butler (1947-2006) que chega ao Brasil pela editora Morro Branco, a protagonista Dana também é acossada por uma tragédia que suscita compaixão e temor, mas que não é catártica, pois não há hamartía. As agruras pelas quais ela passa são originadas por uma característica externa: a cor de sua pele.
Dana, uma escritora negra nos anos 1970, está se mudando para um apartamento novo com seu marido Kevin, branco e também escritor, quando é subitamente tragada para a margem de um rio no sul escravagista dos Estados Unidos em 1812. Sem entender o que houve, avista Rufus, uma criança ruiva, se afogando. Não pensa duas vezes e o resgata. O pai dele, porém, pensando estar diante de uma escrava rebelde, aponta uma espingarda em sua direção e Dana se vê – novamente sem explicação – em seu apartamento com Kevin.
+++ 'Em tempos sombrios, as pessoas olham para escritores', afirma Ursula K. Le Guin
Logo ela compreende que está ligada a Rufus. Sempre que o rapaz se sente em perigo, Dana é transportada para o século 19 a fim de salvá-lo, e só retorna quando a própria vida é ameaçada. O intervalo entre as viagens temporais do ponto de vista dele é de anos; na perspectiva dela, de horas. Para garantir a sobrevivência de sua linhagem, ela precisa salvar repetidas vezes a vida de Rufus, uma criança ingênua em suas primeiras interações, mas que Dana testemunha com impotência se transformar em um dono de escravos cruel e racista.
“Comecei a escrever sobre poder porque é algo que eu tinha muito pouco”, dizia Butler, que aborda as complexas dinâmicas das opressões de raça, gênero e classe social em sobreposição – e com propriedade, uma vez que a autora sofreu na pele toda sorte de preconceito.
+++ 'Diversidade na ficção melhora a ciência', diz escritora transgênero
Nada panfletário, Kindred incentiva a empatia com as provações de Dana independentemente da condição do leitor – garante este escriba homem e branco. A protagonista ocupa uma posição única: alfabetizada e com conhecimento “futurista”, desfruta de vantagens em relação aos outros escravos e, em certa medida, exerce poder até sobre os brancos, mas reconhece ser “uma negra (...) em uma sociedade que via os negros como sub-humanos, uma mulher (...) em uma sociedade que via as mulheres como eternas incapazes.”
Graças ao intervalo de 38 anos entre sua publicação original e a atual edição, Kindred proporciona ao leitor contemporâneo duas curiosas viagens no tempo: uma entre o século 19 e os anos 1970, e outra para 2017, explicitando paralelos, diferenças e, infelizmente, semelhanças assustadoras entre os três períodos.
Impossibilitada de reagir às injustiças, Dana não compreende sua vulnerabilidade e se questiona em vários momentos, exatamente como uma vítima de assédio ou estupro continuamente responsabilizada pela sociedade ao redor – o que hoje ainda é a regra. “Por que eu continuava a ser escrava de um homem que retribuía por eu ter salvado sua vida quase me matando?”
Os açoites, é claro, só aconteciam porque Dana sempre salvava Rufus quando em apuros, todavia ela não tinha escolha, afinal a morte dele significaria também a sua. “Eu estava começando a me sentir uma traidora (...) por salvá-lo (...) Parece que eu sempre o perdoo pelo que ele faz comigo. Não consigo detestá-lo como deveria.” A arapuca moral de Dana se assemelha à de uma mulher atual que, dependente financeira e emocionalmente de um homem, permanece em um relacionamento abusivo. “Estranhamente, pareciam gostar dele, desdenhá-lo e temê-lo, tudo ao mesmo tempo. Isso me confundia, porque eu também sentia a mesma mistura de sentimentos por ele.”
Em dado momento, Dana pede que Rufus não a chame de “preta”, pois considera pejorativo: “Procure me chamar de negra ou morena, até de cor.” A tradutora Carolina Caires Coelho explica sua decisão por manter palavras que hoje não são aceitáveis em prol da fidelidade ao texto original: “Neste caso específico, pensei em termos que 'suavizassem' o modo de falar de Rufus e de sua família, o objetivo da protagonista. Apesar de saber que 'morena', por exemplo, não é um termo que uma mulher negra aceitaria atualmente, por existir agora uma conscientização e um debate muito mais amplos, procurei levar em consideração, o tempo todo, a realidade dos personagens na década de 1970 (época em que Dana vivia) e dos Estados Unidos do século 19 (época de Rufus)."
O editor Victor Gomes ressalta que “algumas expressões hoje em desuso como ‘de cor’, ou ‘colored’ no original, eram aceitáveis quando o livro foi publicado”. Esses termos foram respeitados pela tradutora, que também simulou o sotaque sulista dos EUA com uma linguagem caipira brasileira.
Em 1993, Butler publicou Parable of the Sower (Parábola do Semeador), ainda inédito no Brasil: em 2024, num país em franca decadência, o fanático religioso texano Andrew Steele Jarret é eleito presidente para… “Tornar a América grande novamente”. Soa familiar? Ela não só sabia resgatar feridas de um passado distante, mas tinha uma sensibilidade preditiva impressionante, o que só poderia vir de alguém que compreendia as relações de poder. Assim como Dana, Butler levou uma vida cheia de obstáculos – e não por uma hamartía. Filha de um engraxate e de uma empregada doméstica, a primeira autora de ficção científica premiada com a MacArthur Fellowship, além de mulher e negra, era disléxica.
Kindred: Laços de Sangue Autora: Octavia E. ButlerTradução: Carolina Caires CoelhoEditora: Morro Branco 448 páginas; R$ 59,90 (capa dura) 432 páginas; R$ 29,90 (brochura)