Clássico do teatro mundial ‘Angels in America’ estreia em SP


Trama é alimentada pelo ódio ao governo Reagan, pela epidemia de aids e pela homofobia; Armazém Companhia de Teatro apresenta a peça no Sesc Vila Mariana

Por Ubiratan Brasil

RIO — Quando estreou na Broadway em 1993, a peça Angels in America causou assombro. Não apenas pela sua longa duração (na íntegra, chega a ter 7 horas, divididas em duas partes), mas principalmente pelo texto épico, alucinante e poético de seu autor, Tony Kushner, que utilizou o terror provocado por um vírus então desconhecido (o HIV) como ponto de partida para tratar de homofobia, raça, religião, espiritualidade, amor e abandono. Escrita nos anos 1980, a peça lançava, por fim, um olhar crítico para o governo conservador e elitista do então presidente Ronald Reagan. “O passar do tempo, porém, não diminuiu a importância da peça”, observa o encenador Paulo de Moraes. “Aquele retrato do final do século 20 revela ainda uma realidade esmagadora diante do colapso em que o mundo se encontra hoje.”

Junto de sua trupe, a Armazém Companhia de Teatro, Moraes assumiu a hercúlea tarefa de montar as duas partes de Angels in America. Assim, a partir do dia 3 de maio, no Sesc Vila Mariana, a peça terá seus dois episódios (O Milênio se Aproxima e Perestroika) um a cada dia – apenas aos sábados será oferecida a maratona completa. Mais que uma proeza, um respeito pela organicidade do texto de Kushner. Imaginativa e erudita, dialética e emocionalmente acessível, a saga continua a ser um fenômeno singular ao narrar simultaneamente a luta de dois casais: de um lado, Joe Pitt (Ricardo Martins), o jovem advogado mórmon que reprime sua homossexualidade e vive um dualismo amoroso com Harper (Lisa Eiras), sua esposa afogada em um eterno estado de delírio; e, de outro, Prior Walter (Jopa Moraes), o gay desnorteado pela deterioração física provocada pelo vírus da aids que o atingiu, e Louis Ironson (Luiz Felipe Leprevost), seu companheiro que, incapaz de lidar com a situação, prefere abraçar a infidelidade. 

Ontem e hoje. Por ter entre seus temas a política anti-imigração, peça do final do século 20 se mantém atual Foto: Mauro Kury
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Entre eles, surgem ainda entrelaçados Roy Cohn (Sergio Machado), poderoso e inescrupuloso advogado republicano; Hannah (Patricia Selonk), mãe de Joe e cuja crença mórmon é abalada ao descobrir a opção sexual do filho e, principalmente, ao conhecer o estado crítico de Prior; e finalmente Belize (Thiago Catarino), enfermeiro gay, que tanto cuida de Prior como do advogado Roy, também vítima da aids, ainda que relute em se aceitar homossexual, mesmo transando com homens.

“Essa peça me acompanha há anos, especialmente por mostrar encontros inesperados, algo que acredito ser muito real”, conta Moraes que, desde 2016, planejava uma montagem nacional completa – é preciso lembrar que, em 1995, Iacov Hillel dirigiu em São Paulo apenas a primeira parte, O Milênio se Aproxima, com Cássio Scapin, João Vitti e Rodrigo Santiago, entre outros. “Mas foi no início de 2018 que realmente começamos a estudar o texto”, continua Moraes, surpreendido pela atualidade da escrita de Kushner. “Além do número de infectados pelo vírus ter aumentado nos últimos anos, a aids, na peça, é utilizada para falar de abandono e melancolia, males que ainda afetam muitas pessoas.”

Assim, ciente da potência dos diálogos do dramaturgo americano, Paulo Moraes evitou o caminho tomado pela montagem da Broadway no ano passado, marcada por uma profusão de cenários e por elenco cinematográfico, como Nathan Lane (fabuloso como Roy Cohn) e Andrew Garfield (exagerado na pele de Prior). A versão brasileira não se preocupa em aproximar o texto da realidade nacional – um recurso fácil e desnecessário. Também foge do realismo ao utilizar um espaço aberto, ocupado apenas por dois enormes bancos. “Sobre esse espaço nu, estará um grande teto branco, uma espécie de asa geométrica, como um anjo pairando sobre a História. Os poucos elementos em cena permitem que os corpos dos atores sejam determinantes para a narrativa e também incentivam a imaginação do público, tornando-o cúmplice e finalizador desse acontecimento estético”, explica o encenador. “Minha ideia é ter um movimento contínuo dos atores, como se uma cena engolisse a outra. Para isso, a trilha sonora seguirá o ritmo de uma bateria, como o pulsar de uma cidade.”

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A figura angelical é determinante na encenação, uma vez que Prior descobre ser o novo profeta que está por vir, papel que só aumenta seu martírio em meio a vômitos e feridas que o apavoram, sinalizando a aproximação da morte. “Todos os personagens, mas principalmente Prior, dão sentido ao mundo enquanto vivem, mostrando como seguir em frente mesmo com tanto sofrimento”, observa Jopa Moraes, sensível como o jovem que, ao se perceber contagiado pelo vírus, enfrenta uma nova e tortuosa rotina.

Na verdade, todos os personagens são infectados por algo que altera sua trajetória. “São pessoas desconectadas de seus corpos e mentes”, acredita Ricardo Martins. “E, por causa disso, eles participam da reinvenção da verdade.” Em especial, o advogado Roy Cohn, um dos mais fascinantes personagens criados pelo teatro moderno – astuto na argumentação, há nele algo de um réptil, é um vilão da cabeça aos pés. Seu discurso sobre a importância dos advogados na organização da América é como um potente e cuidadoso coquetel servido gelado, em que ele fala sobre racismo, aversão a mulheres, vaidade, mesquinhez e (mais desolador) a crueldade emocional. Até em seus momentos finais, Cohn revela-se um monstro totalmente humano, o que o torna mais assustador. “Ele jamais abre mão de suas convicções”, completa Sergio Machado, intérprete do papel – na minissérie produzida pela HBO, Al Pacino conseguiu uma de suas melhores interpretações.

É importante lembrar que realmente existiu um Roy Cohn: foi um advogado que trabalhou ao lado do senador Joseph McCarthy, nos anos 1950, época marcada pela “caça às bruxas”, ou seja, perseguição a supostos comunistas e homossexuais. Ele foi decisivo na condenação de Ethel Rosenberg, acusada de passar, ao lado do marido Julius, informações aos russos sobre a bomba atômica, no fim da Segunda Guerra. Embora sem provas conclusivas em relação a ela, o casal morreu na cadeira elétrica, causando uma comoção nacional. Na peça, Cohn, já agonizante, é assombrado pelo fantasma de Ethel (outro papel assumido por Patricia Selonk). “É um dos fascínios do teatro: promover um ajuste de contas imaginário”, comenta Thiago Catarino, que vive o enfermeiro Belize e constata a morte do advogado. “É também o papel do palco: questionar e apresentar soluções inimagináveis, como a de Prior que, diante de um colegiado de anjos, não só abre mão da missão de ser profeta como propõe que Deus seja processado por causa da sensação de abandono sentida pelo mundo”, completa Jopa.

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ANGELS IN AMERICA

Sesc Vila Mariana. R. Pelotas, 141. Parte 1 – O Milênio se Aproxima: 6ª, 21h e sáb., 18h. Parte 2 – Perestroika: sáb., 21h e dom., 18h. R$ 30 (por parte). Estreia 3/5. Até 2/6

RIO — Quando estreou na Broadway em 1993, a peça Angels in America causou assombro. Não apenas pela sua longa duração (na íntegra, chega a ter 7 horas, divididas em duas partes), mas principalmente pelo texto épico, alucinante e poético de seu autor, Tony Kushner, que utilizou o terror provocado por um vírus então desconhecido (o HIV) como ponto de partida para tratar de homofobia, raça, religião, espiritualidade, amor e abandono. Escrita nos anos 1980, a peça lançava, por fim, um olhar crítico para o governo conservador e elitista do então presidente Ronald Reagan. “O passar do tempo, porém, não diminuiu a importância da peça”, observa o encenador Paulo de Moraes. “Aquele retrato do final do século 20 revela ainda uma realidade esmagadora diante do colapso em que o mundo se encontra hoje.”

Junto de sua trupe, a Armazém Companhia de Teatro, Moraes assumiu a hercúlea tarefa de montar as duas partes de Angels in America. Assim, a partir do dia 3 de maio, no Sesc Vila Mariana, a peça terá seus dois episódios (O Milênio se Aproxima e Perestroika) um a cada dia – apenas aos sábados será oferecida a maratona completa. Mais que uma proeza, um respeito pela organicidade do texto de Kushner. Imaginativa e erudita, dialética e emocionalmente acessível, a saga continua a ser um fenômeno singular ao narrar simultaneamente a luta de dois casais: de um lado, Joe Pitt (Ricardo Martins), o jovem advogado mórmon que reprime sua homossexualidade e vive um dualismo amoroso com Harper (Lisa Eiras), sua esposa afogada em um eterno estado de delírio; e, de outro, Prior Walter (Jopa Moraes), o gay desnorteado pela deterioração física provocada pelo vírus da aids que o atingiu, e Louis Ironson (Luiz Felipe Leprevost), seu companheiro que, incapaz de lidar com a situação, prefere abraçar a infidelidade. 

Ontem e hoje. Por ter entre seus temas a política anti-imigração, peça do final do século 20 se mantém atual Foto: Mauro Kury

Entre eles, surgem ainda entrelaçados Roy Cohn (Sergio Machado), poderoso e inescrupuloso advogado republicano; Hannah (Patricia Selonk), mãe de Joe e cuja crença mórmon é abalada ao descobrir a opção sexual do filho e, principalmente, ao conhecer o estado crítico de Prior; e finalmente Belize (Thiago Catarino), enfermeiro gay, que tanto cuida de Prior como do advogado Roy, também vítima da aids, ainda que relute em se aceitar homossexual, mesmo transando com homens.

“Essa peça me acompanha há anos, especialmente por mostrar encontros inesperados, algo que acredito ser muito real”, conta Moraes que, desde 2016, planejava uma montagem nacional completa – é preciso lembrar que, em 1995, Iacov Hillel dirigiu em São Paulo apenas a primeira parte, O Milênio se Aproxima, com Cássio Scapin, João Vitti e Rodrigo Santiago, entre outros. “Mas foi no início de 2018 que realmente começamos a estudar o texto”, continua Moraes, surpreendido pela atualidade da escrita de Kushner. “Além do número de infectados pelo vírus ter aumentado nos últimos anos, a aids, na peça, é utilizada para falar de abandono e melancolia, males que ainda afetam muitas pessoas.”

Assim, ciente da potência dos diálogos do dramaturgo americano, Paulo Moraes evitou o caminho tomado pela montagem da Broadway no ano passado, marcada por uma profusão de cenários e por elenco cinematográfico, como Nathan Lane (fabuloso como Roy Cohn) e Andrew Garfield (exagerado na pele de Prior). A versão brasileira não se preocupa em aproximar o texto da realidade nacional – um recurso fácil e desnecessário. Também foge do realismo ao utilizar um espaço aberto, ocupado apenas por dois enormes bancos. “Sobre esse espaço nu, estará um grande teto branco, uma espécie de asa geométrica, como um anjo pairando sobre a História. Os poucos elementos em cena permitem que os corpos dos atores sejam determinantes para a narrativa e também incentivam a imaginação do público, tornando-o cúmplice e finalizador desse acontecimento estético”, explica o encenador. “Minha ideia é ter um movimento contínuo dos atores, como se uma cena engolisse a outra. Para isso, a trilha sonora seguirá o ritmo de uma bateria, como o pulsar de uma cidade.”

A figura angelical é determinante na encenação, uma vez que Prior descobre ser o novo profeta que está por vir, papel que só aumenta seu martírio em meio a vômitos e feridas que o apavoram, sinalizando a aproximação da morte. “Todos os personagens, mas principalmente Prior, dão sentido ao mundo enquanto vivem, mostrando como seguir em frente mesmo com tanto sofrimento”, observa Jopa Moraes, sensível como o jovem que, ao se perceber contagiado pelo vírus, enfrenta uma nova e tortuosa rotina.

Na verdade, todos os personagens são infectados por algo que altera sua trajetória. “São pessoas desconectadas de seus corpos e mentes”, acredita Ricardo Martins. “E, por causa disso, eles participam da reinvenção da verdade.” Em especial, o advogado Roy Cohn, um dos mais fascinantes personagens criados pelo teatro moderno – astuto na argumentação, há nele algo de um réptil, é um vilão da cabeça aos pés. Seu discurso sobre a importância dos advogados na organização da América é como um potente e cuidadoso coquetel servido gelado, em que ele fala sobre racismo, aversão a mulheres, vaidade, mesquinhez e (mais desolador) a crueldade emocional. Até em seus momentos finais, Cohn revela-se um monstro totalmente humano, o que o torna mais assustador. “Ele jamais abre mão de suas convicções”, completa Sergio Machado, intérprete do papel – na minissérie produzida pela HBO, Al Pacino conseguiu uma de suas melhores interpretações.

É importante lembrar que realmente existiu um Roy Cohn: foi um advogado que trabalhou ao lado do senador Joseph McCarthy, nos anos 1950, época marcada pela “caça às bruxas”, ou seja, perseguição a supostos comunistas e homossexuais. Ele foi decisivo na condenação de Ethel Rosenberg, acusada de passar, ao lado do marido Julius, informações aos russos sobre a bomba atômica, no fim da Segunda Guerra. Embora sem provas conclusivas em relação a ela, o casal morreu na cadeira elétrica, causando uma comoção nacional. Na peça, Cohn, já agonizante, é assombrado pelo fantasma de Ethel (outro papel assumido por Patricia Selonk). “É um dos fascínios do teatro: promover um ajuste de contas imaginário”, comenta Thiago Catarino, que vive o enfermeiro Belize e constata a morte do advogado. “É também o papel do palco: questionar e apresentar soluções inimagináveis, como a de Prior que, diante de um colegiado de anjos, não só abre mão da missão de ser profeta como propõe que Deus seja processado por causa da sensação de abandono sentida pelo mundo”, completa Jopa.

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Sesc Vila Mariana. R. Pelotas, 141. Parte 1 – O Milênio se Aproxima: 6ª, 21h e sáb., 18h. Parte 2 – Perestroika: sáb., 21h e dom., 18h. R$ 30 (por parte). Estreia 3/5. Até 2/6

RIO — Quando estreou na Broadway em 1993, a peça Angels in America causou assombro. Não apenas pela sua longa duração (na íntegra, chega a ter 7 horas, divididas em duas partes), mas principalmente pelo texto épico, alucinante e poético de seu autor, Tony Kushner, que utilizou o terror provocado por um vírus então desconhecido (o HIV) como ponto de partida para tratar de homofobia, raça, religião, espiritualidade, amor e abandono. Escrita nos anos 1980, a peça lançava, por fim, um olhar crítico para o governo conservador e elitista do então presidente Ronald Reagan. “O passar do tempo, porém, não diminuiu a importância da peça”, observa o encenador Paulo de Moraes. “Aquele retrato do final do século 20 revela ainda uma realidade esmagadora diante do colapso em que o mundo se encontra hoje.”

Junto de sua trupe, a Armazém Companhia de Teatro, Moraes assumiu a hercúlea tarefa de montar as duas partes de Angels in America. Assim, a partir do dia 3 de maio, no Sesc Vila Mariana, a peça terá seus dois episódios (O Milênio se Aproxima e Perestroika) um a cada dia – apenas aos sábados será oferecida a maratona completa. Mais que uma proeza, um respeito pela organicidade do texto de Kushner. Imaginativa e erudita, dialética e emocionalmente acessível, a saga continua a ser um fenômeno singular ao narrar simultaneamente a luta de dois casais: de um lado, Joe Pitt (Ricardo Martins), o jovem advogado mórmon que reprime sua homossexualidade e vive um dualismo amoroso com Harper (Lisa Eiras), sua esposa afogada em um eterno estado de delírio; e, de outro, Prior Walter (Jopa Moraes), o gay desnorteado pela deterioração física provocada pelo vírus da aids que o atingiu, e Louis Ironson (Luiz Felipe Leprevost), seu companheiro que, incapaz de lidar com a situação, prefere abraçar a infidelidade. 

Ontem e hoje. Por ter entre seus temas a política anti-imigração, peça do final do século 20 se mantém atual Foto: Mauro Kury

Entre eles, surgem ainda entrelaçados Roy Cohn (Sergio Machado), poderoso e inescrupuloso advogado republicano; Hannah (Patricia Selonk), mãe de Joe e cuja crença mórmon é abalada ao descobrir a opção sexual do filho e, principalmente, ao conhecer o estado crítico de Prior; e finalmente Belize (Thiago Catarino), enfermeiro gay, que tanto cuida de Prior como do advogado Roy, também vítima da aids, ainda que relute em se aceitar homossexual, mesmo transando com homens.

“Essa peça me acompanha há anos, especialmente por mostrar encontros inesperados, algo que acredito ser muito real”, conta Moraes que, desde 2016, planejava uma montagem nacional completa – é preciso lembrar que, em 1995, Iacov Hillel dirigiu em São Paulo apenas a primeira parte, O Milênio se Aproxima, com Cássio Scapin, João Vitti e Rodrigo Santiago, entre outros. “Mas foi no início de 2018 que realmente começamos a estudar o texto”, continua Moraes, surpreendido pela atualidade da escrita de Kushner. “Além do número de infectados pelo vírus ter aumentado nos últimos anos, a aids, na peça, é utilizada para falar de abandono e melancolia, males que ainda afetam muitas pessoas.”

Assim, ciente da potência dos diálogos do dramaturgo americano, Paulo Moraes evitou o caminho tomado pela montagem da Broadway no ano passado, marcada por uma profusão de cenários e por elenco cinematográfico, como Nathan Lane (fabuloso como Roy Cohn) e Andrew Garfield (exagerado na pele de Prior). A versão brasileira não se preocupa em aproximar o texto da realidade nacional – um recurso fácil e desnecessário. Também foge do realismo ao utilizar um espaço aberto, ocupado apenas por dois enormes bancos. “Sobre esse espaço nu, estará um grande teto branco, uma espécie de asa geométrica, como um anjo pairando sobre a História. Os poucos elementos em cena permitem que os corpos dos atores sejam determinantes para a narrativa e também incentivam a imaginação do público, tornando-o cúmplice e finalizador desse acontecimento estético”, explica o encenador. “Minha ideia é ter um movimento contínuo dos atores, como se uma cena engolisse a outra. Para isso, a trilha sonora seguirá o ritmo de uma bateria, como o pulsar de uma cidade.”

A figura angelical é determinante na encenação, uma vez que Prior descobre ser o novo profeta que está por vir, papel que só aumenta seu martírio em meio a vômitos e feridas que o apavoram, sinalizando a aproximação da morte. “Todos os personagens, mas principalmente Prior, dão sentido ao mundo enquanto vivem, mostrando como seguir em frente mesmo com tanto sofrimento”, observa Jopa Moraes, sensível como o jovem que, ao se perceber contagiado pelo vírus, enfrenta uma nova e tortuosa rotina.

Na verdade, todos os personagens são infectados por algo que altera sua trajetória. “São pessoas desconectadas de seus corpos e mentes”, acredita Ricardo Martins. “E, por causa disso, eles participam da reinvenção da verdade.” Em especial, o advogado Roy Cohn, um dos mais fascinantes personagens criados pelo teatro moderno – astuto na argumentação, há nele algo de um réptil, é um vilão da cabeça aos pés. Seu discurso sobre a importância dos advogados na organização da América é como um potente e cuidadoso coquetel servido gelado, em que ele fala sobre racismo, aversão a mulheres, vaidade, mesquinhez e (mais desolador) a crueldade emocional. Até em seus momentos finais, Cohn revela-se um monstro totalmente humano, o que o torna mais assustador. “Ele jamais abre mão de suas convicções”, completa Sergio Machado, intérprete do papel – na minissérie produzida pela HBO, Al Pacino conseguiu uma de suas melhores interpretações.

É importante lembrar que realmente existiu um Roy Cohn: foi um advogado que trabalhou ao lado do senador Joseph McCarthy, nos anos 1950, época marcada pela “caça às bruxas”, ou seja, perseguição a supostos comunistas e homossexuais. Ele foi decisivo na condenação de Ethel Rosenberg, acusada de passar, ao lado do marido Julius, informações aos russos sobre a bomba atômica, no fim da Segunda Guerra. Embora sem provas conclusivas em relação a ela, o casal morreu na cadeira elétrica, causando uma comoção nacional. Na peça, Cohn, já agonizante, é assombrado pelo fantasma de Ethel (outro papel assumido por Patricia Selonk). “É um dos fascínios do teatro: promover um ajuste de contas imaginário”, comenta Thiago Catarino, que vive o enfermeiro Belize e constata a morte do advogado. “É também o papel do palco: questionar e apresentar soluções inimagináveis, como a de Prior que, diante de um colegiado de anjos, não só abre mão da missão de ser profeta como propõe que Deus seja processado por causa da sensação de abandono sentida pelo mundo”, completa Jopa.

ANGELS IN AMERICA

Sesc Vila Mariana. R. Pelotas, 141. Parte 1 – O Milênio se Aproxima: 6ª, 21h e sáb., 18h. Parte 2 – Perestroika: sáb., 21h e dom., 18h. R$ 30 (por parte). Estreia 3/5. Até 2/6

RIO — Quando estreou na Broadway em 1993, a peça Angels in America causou assombro. Não apenas pela sua longa duração (na íntegra, chega a ter 7 horas, divididas em duas partes), mas principalmente pelo texto épico, alucinante e poético de seu autor, Tony Kushner, que utilizou o terror provocado por um vírus então desconhecido (o HIV) como ponto de partida para tratar de homofobia, raça, religião, espiritualidade, amor e abandono. Escrita nos anos 1980, a peça lançava, por fim, um olhar crítico para o governo conservador e elitista do então presidente Ronald Reagan. “O passar do tempo, porém, não diminuiu a importância da peça”, observa o encenador Paulo de Moraes. “Aquele retrato do final do século 20 revela ainda uma realidade esmagadora diante do colapso em que o mundo se encontra hoje.”

Junto de sua trupe, a Armazém Companhia de Teatro, Moraes assumiu a hercúlea tarefa de montar as duas partes de Angels in America. Assim, a partir do dia 3 de maio, no Sesc Vila Mariana, a peça terá seus dois episódios (O Milênio se Aproxima e Perestroika) um a cada dia – apenas aos sábados será oferecida a maratona completa. Mais que uma proeza, um respeito pela organicidade do texto de Kushner. Imaginativa e erudita, dialética e emocionalmente acessível, a saga continua a ser um fenômeno singular ao narrar simultaneamente a luta de dois casais: de um lado, Joe Pitt (Ricardo Martins), o jovem advogado mórmon que reprime sua homossexualidade e vive um dualismo amoroso com Harper (Lisa Eiras), sua esposa afogada em um eterno estado de delírio; e, de outro, Prior Walter (Jopa Moraes), o gay desnorteado pela deterioração física provocada pelo vírus da aids que o atingiu, e Louis Ironson (Luiz Felipe Leprevost), seu companheiro que, incapaz de lidar com a situação, prefere abraçar a infidelidade. 

Ontem e hoje. Por ter entre seus temas a política anti-imigração, peça do final do século 20 se mantém atual Foto: Mauro Kury

Entre eles, surgem ainda entrelaçados Roy Cohn (Sergio Machado), poderoso e inescrupuloso advogado republicano; Hannah (Patricia Selonk), mãe de Joe e cuja crença mórmon é abalada ao descobrir a opção sexual do filho e, principalmente, ao conhecer o estado crítico de Prior; e finalmente Belize (Thiago Catarino), enfermeiro gay, que tanto cuida de Prior como do advogado Roy, também vítima da aids, ainda que relute em se aceitar homossexual, mesmo transando com homens.

“Essa peça me acompanha há anos, especialmente por mostrar encontros inesperados, algo que acredito ser muito real”, conta Moraes que, desde 2016, planejava uma montagem nacional completa – é preciso lembrar que, em 1995, Iacov Hillel dirigiu em São Paulo apenas a primeira parte, O Milênio se Aproxima, com Cássio Scapin, João Vitti e Rodrigo Santiago, entre outros. “Mas foi no início de 2018 que realmente começamos a estudar o texto”, continua Moraes, surpreendido pela atualidade da escrita de Kushner. “Além do número de infectados pelo vírus ter aumentado nos últimos anos, a aids, na peça, é utilizada para falar de abandono e melancolia, males que ainda afetam muitas pessoas.”

Assim, ciente da potência dos diálogos do dramaturgo americano, Paulo Moraes evitou o caminho tomado pela montagem da Broadway no ano passado, marcada por uma profusão de cenários e por elenco cinematográfico, como Nathan Lane (fabuloso como Roy Cohn) e Andrew Garfield (exagerado na pele de Prior). A versão brasileira não se preocupa em aproximar o texto da realidade nacional – um recurso fácil e desnecessário. Também foge do realismo ao utilizar um espaço aberto, ocupado apenas por dois enormes bancos. “Sobre esse espaço nu, estará um grande teto branco, uma espécie de asa geométrica, como um anjo pairando sobre a História. Os poucos elementos em cena permitem que os corpos dos atores sejam determinantes para a narrativa e também incentivam a imaginação do público, tornando-o cúmplice e finalizador desse acontecimento estético”, explica o encenador. “Minha ideia é ter um movimento contínuo dos atores, como se uma cena engolisse a outra. Para isso, a trilha sonora seguirá o ritmo de uma bateria, como o pulsar de uma cidade.”

A figura angelical é determinante na encenação, uma vez que Prior descobre ser o novo profeta que está por vir, papel que só aumenta seu martírio em meio a vômitos e feridas que o apavoram, sinalizando a aproximação da morte. “Todos os personagens, mas principalmente Prior, dão sentido ao mundo enquanto vivem, mostrando como seguir em frente mesmo com tanto sofrimento”, observa Jopa Moraes, sensível como o jovem que, ao se perceber contagiado pelo vírus, enfrenta uma nova e tortuosa rotina.

Na verdade, todos os personagens são infectados por algo que altera sua trajetória. “São pessoas desconectadas de seus corpos e mentes”, acredita Ricardo Martins. “E, por causa disso, eles participam da reinvenção da verdade.” Em especial, o advogado Roy Cohn, um dos mais fascinantes personagens criados pelo teatro moderno – astuto na argumentação, há nele algo de um réptil, é um vilão da cabeça aos pés. Seu discurso sobre a importância dos advogados na organização da América é como um potente e cuidadoso coquetel servido gelado, em que ele fala sobre racismo, aversão a mulheres, vaidade, mesquinhez e (mais desolador) a crueldade emocional. Até em seus momentos finais, Cohn revela-se um monstro totalmente humano, o que o torna mais assustador. “Ele jamais abre mão de suas convicções”, completa Sergio Machado, intérprete do papel – na minissérie produzida pela HBO, Al Pacino conseguiu uma de suas melhores interpretações.

É importante lembrar que realmente existiu um Roy Cohn: foi um advogado que trabalhou ao lado do senador Joseph McCarthy, nos anos 1950, época marcada pela “caça às bruxas”, ou seja, perseguição a supostos comunistas e homossexuais. Ele foi decisivo na condenação de Ethel Rosenberg, acusada de passar, ao lado do marido Julius, informações aos russos sobre a bomba atômica, no fim da Segunda Guerra. Embora sem provas conclusivas em relação a ela, o casal morreu na cadeira elétrica, causando uma comoção nacional. Na peça, Cohn, já agonizante, é assombrado pelo fantasma de Ethel (outro papel assumido por Patricia Selonk). “É um dos fascínios do teatro: promover um ajuste de contas imaginário”, comenta Thiago Catarino, que vive o enfermeiro Belize e constata a morte do advogado. “É também o papel do palco: questionar e apresentar soluções inimagináveis, como a de Prior que, diante de um colegiado de anjos, não só abre mão da missão de ser profeta como propõe que Deus seja processado por causa da sensação de abandono sentida pelo mundo”, completa Jopa.

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Sesc Vila Mariana. R. Pelotas, 141. Parte 1 – O Milênio se Aproxima: 6ª, 21h e sáb., 18h. Parte 2 – Perestroika: sáb., 21h e dom., 18h. R$ 30 (por parte). Estreia 3/5. Até 2/6

RIO — Quando estreou na Broadway em 1993, a peça Angels in America causou assombro. Não apenas pela sua longa duração (na íntegra, chega a ter 7 horas, divididas em duas partes), mas principalmente pelo texto épico, alucinante e poético de seu autor, Tony Kushner, que utilizou o terror provocado por um vírus então desconhecido (o HIV) como ponto de partida para tratar de homofobia, raça, religião, espiritualidade, amor e abandono. Escrita nos anos 1980, a peça lançava, por fim, um olhar crítico para o governo conservador e elitista do então presidente Ronald Reagan. “O passar do tempo, porém, não diminuiu a importância da peça”, observa o encenador Paulo de Moraes. “Aquele retrato do final do século 20 revela ainda uma realidade esmagadora diante do colapso em que o mundo se encontra hoje.”

Junto de sua trupe, a Armazém Companhia de Teatro, Moraes assumiu a hercúlea tarefa de montar as duas partes de Angels in America. Assim, a partir do dia 3 de maio, no Sesc Vila Mariana, a peça terá seus dois episódios (O Milênio se Aproxima e Perestroika) um a cada dia – apenas aos sábados será oferecida a maratona completa. Mais que uma proeza, um respeito pela organicidade do texto de Kushner. Imaginativa e erudita, dialética e emocionalmente acessível, a saga continua a ser um fenômeno singular ao narrar simultaneamente a luta de dois casais: de um lado, Joe Pitt (Ricardo Martins), o jovem advogado mórmon que reprime sua homossexualidade e vive um dualismo amoroso com Harper (Lisa Eiras), sua esposa afogada em um eterno estado de delírio; e, de outro, Prior Walter (Jopa Moraes), o gay desnorteado pela deterioração física provocada pelo vírus da aids que o atingiu, e Louis Ironson (Luiz Felipe Leprevost), seu companheiro que, incapaz de lidar com a situação, prefere abraçar a infidelidade. 

Ontem e hoje. Por ter entre seus temas a política anti-imigração, peça do final do século 20 se mantém atual Foto: Mauro Kury

Entre eles, surgem ainda entrelaçados Roy Cohn (Sergio Machado), poderoso e inescrupuloso advogado republicano; Hannah (Patricia Selonk), mãe de Joe e cuja crença mórmon é abalada ao descobrir a opção sexual do filho e, principalmente, ao conhecer o estado crítico de Prior; e finalmente Belize (Thiago Catarino), enfermeiro gay, que tanto cuida de Prior como do advogado Roy, também vítima da aids, ainda que relute em se aceitar homossexual, mesmo transando com homens.

“Essa peça me acompanha há anos, especialmente por mostrar encontros inesperados, algo que acredito ser muito real”, conta Moraes que, desde 2016, planejava uma montagem nacional completa – é preciso lembrar que, em 1995, Iacov Hillel dirigiu em São Paulo apenas a primeira parte, O Milênio se Aproxima, com Cássio Scapin, João Vitti e Rodrigo Santiago, entre outros. “Mas foi no início de 2018 que realmente começamos a estudar o texto”, continua Moraes, surpreendido pela atualidade da escrita de Kushner. “Além do número de infectados pelo vírus ter aumentado nos últimos anos, a aids, na peça, é utilizada para falar de abandono e melancolia, males que ainda afetam muitas pessoas.”

Assim, ciente da potência dos diálogos do dramaturgo americano, Paulo Moraes evitou o caminho tomado pela montagem da Broadway no ano passado, marcada por uma profusão de cenários e por elenco cinematográfico, como Nathan Lane (fabuloso como Roy Cohn) e Andrew Garfield (exagerado na pele de Prior). A versão brasileira não se preocupa em aproximar o texto da realidade nacional – um recurso fácil e desnecessário. Também foge do realismo ao utilizar um espaço aberto, ocupado apenas por dois enormes bancos. “Sobre esse espaço nu, estará um grande teto branco, uma espécie de asa geométrica, como um anjo pairando sobre a História. Os poucos elementos em cena permitem que os corpos dos atores sejam determinantes para a narrativa e também incentivam a imaginação do público, tornando-o cúmplice e finalizador desse acontecimento estético”, explica o encenador. “Minha ideia é ter um movimento contínuo dos atores, como se uma cena engolisse a outra. Para isso, a trilha sonora seguirá o ritmo de uma bateria, como o pulsar de uma cidade.”

A figura angelical é determinante na encenação, uma vez que Prior descobre ser o novo profeta que está por vir, papel que só aumenta seu martírio em meio a vômitos e feridas que o apavoram, sinalizando a aproximação da morte. “Todos os personagens, mas principalmente Prior, dão sentido ao mundo enquanto vivem, mostrando como seguir em frente mesmo com tanto sofrimento”, observa Jopa Moraes, sensível como o jovem que, ao se perceber contagiado pelo vírus, enfrenta uma nova e tortuosa rotina.

Na verdade, todos os personagens são infectados por algo que altera sua trajetória. “São pessoas desconectadas de seus corpos e mentes”, acredita Ricardo Martins. “E, por causa disso, eles participam da reinvenção da verdade.” Em especial, o advogado Roy Cohn, um dos mais fascinantes personagens criados pelo teatro moderno – astuto na argumentação, há nele algo de um réptil, é um vilão da cabeça aos pés. Seu discurso sobre a importância dos advogados na organização da América é como um potente e cuidadoso coquetel servido gelado, em que ele fala sobre racismo, aversão a mulheres, vaidade, mesquinhez e (mais desolador) a crueldade emocional. Até em seus momentos finais, Cohn revela-se um monstro totalmente humano, o que o torna mais assustador. “Ele jamais abre mão de suas convicções”, completa Sergio Machado, intérprete do papel – na minissérie produzida pela HBO, Al Pacino conseguiu uma de suas melhores interpretações.

É importante lembrar que realmente existiu um Roy Cohn: foi um advogado que trabalhou ao lado do senador Joseph McCarthy, nos anos 1950, época marcada pela “caça às bruxas”, ou seja, perseguição a supostos comunistas e homossexuais. Ele foi decisivo na condenação de Ethel Rosenberg, acusada de passar, ao lado do marido Julius, informações aos russos sobre a bomba atômica, no fim da Segunda Guerra. Embora sem provas conclusivas em relação a ela, o casal morreu na cadeira elétrica, causando uma comoção nacional. Na peça, Cohn, já agonizante, é assombrado pelo fantasma de Ethel (outro papel assumido por Patricia Selonk). “É um dos fascínios do teatro: promover um ajuste de contas imaginário”, comenta Thiago Catarino, que vive o enfermeiro Belize e constata a morte do advogado. “É também o papel do palco: questionar e apresentar soluções inimagináveis, como a de Prior que, diante de um colegiado de anjos, não só abre mão da missão de ser profeta como propõe que Deus seja processado por causa da sensação de abandono sentida pelo mundo”, completa Jopa.

ANGELS IN AMERICA

Sesc Vila Mariana. R. Pelotas, 141. Parte 1 – O Milênio se Aproxima: 6ª, 21h e sáb., 18h. Parte 2 – Perestroika: sáb., 21h e dom., 18h. R$ 30 (por parte). Estreia 3/5. Até 2/6

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