Para a assinalar o meio século de Matadouro 5, a Intrínseca lança uma edição comemorativa em capa dura e tradução novinha em folha. Como Kurt Vonnegut morreu há dez anos, estamos com a faca e o queijo na mão para aferir a classe deste clássico contemporâneo, e o pedigree do autor no cânone americano.
Li o romance quando era moleque, e esta é uma obra que, em parte, se impregnou desta conotação. Como sapecou Hanif Kureishi: “A coisa mais cruel que se pode fazer com Jack Kerouac é relê-lo aos 38 anos.” Para William Deresiewicz, da The Nation, o jovem americano típico lê (ou lia) “a revista Mad aos 13, Vonnegut aos 15, Salinger aos 17, Hunter Thompson aos 18 e Kerouac aos 20”. Encetei a releitura com a impressão prévia: Matadouro 5 é um clássico inclassificável – um romance histórico, mas também um panfleto pacifista e uma comédia de costumes. Um Big Mac recheado de Os Nus e os Mortos (Norman Mailer), Ardil 22 (Joseph Heller), Murphy (Beckett) e Star Maker (Olaf Stapleton). Mas, hoje em dia, estaria com essa bola toda?
É o sexto romance do autor, e sua magnum opus. Vonnegut rumina seu testemunho do bombardeamento de Dresden pelos Aliados, em 13 de fevereiro de 1945: “Eu detestaria revelar quanto este livrinho safado me custou em dinheiro, em ansiedade, em tempo. Vinte e três anos atrás, quando voltei para casa depois da 2.ª Guerra Mundial, achei que seria fácil, porque eu só precisaria relatar o que tinha visto. Achei também que seria uma obra-prima ou pelo menos me renderia uma boa grana.” E rendeu. Numa entrevista à Paris Review, Vonnegut comentou: “Só um ser humano se beneficiou com o massacre de Dresden – não dois, nem cinco, nem dez. Só um: eu. Ganhei três dólares por cada pessoa morta.”
É a saga de Billy Pilgrim ("Pilgrim" em inglês é peregrino), um cara desconectado da cronologia retilínea e irreversível – tudo se passa como se o tempo fosse uma espécie de porta giratória que ele não cessa de transpor. Num caleidoscópio narrativo, visitamos o casamento, o nascimento, a atividade profissional e o escambau do protagonista. Incluindo aquela vez em que ele foi raptado por um disco voador, levado para o planeta Tralfamadore e exposto nu em um zoológico, para acasalar com uma ex-atriz pornô, Montana.
O texto é constelado por um bordão recorrente: “É assim mesmo” (So it goes, no original), que lembra o “sim” joyceano no monólogo de Molly Bloom, mas que aqui corresponde a um réquiem sumário, depois de cada morte. E não só humanas, mas desde piolhos, bactérias e pulgas até o cosmos: “Um piloto de testes tralfamadoriano aperta um botão de ignição, e o universo inteiro desaparece. É assim mesmo.”
E tem a questão da ficção cientifica, gênero no qual Vonnegut é parcialmente catalogado, e que tantos bocós esnobam como um nicho plebeu. Rindo de si mesmo mas sobretudo daqueles obtusos, Vonnegut criou a figuraça de Kilgore Trout, “o melhor – e o pior – escritor de FC de todos os tempos”. Trout povoa seis romances de Vonnegut. Em Matadouro 5, Billy devora as obras dele e se torna seu amigo. Picaretas que só, essas obras são uma das fontes para a viagem na maionese de Pilgrim. Segundo Vonnegut “comunicou” anos mais tarde, Trout se suicidou em 2004, ao ser informado por um médium de que George W. Bush seria reeleito presidente dos EUA. Eis o epitáfio em sua lápide: “A vida não é maneira de se tratar um animal.”
Para alguns, Trout seria inspirado em Ron Hubbard, autor de ficção científica que fundou a Cientologia, aquele culto estrambólico que cativou panacas hollywoodianos, como Tom Cruise. Outra lenda urbana reza que Hubbard criou a Cientologia numa aposta com Vonnegut, sobre quem conseguia engendrar a religião mais lelé. Vonnegut imaginou o Bokonismo (no romance Cama de Gato, lançado em 2017 pela Aleph) e Hubbard saiu-se com esta: “Farei o mesmo que Freud – inventarei uma religião e ganharei dinheiro com isso.” Porém, Trout é baseado em outro autor FC, Theodore Sturgeon.
Um dos aspectos admiráveis de Matadouro 5 é a voz narrativa, de uma dicção singela, quase infantil, e um léxico cuidadosamente simples, gerando – dada a descrição de fatos excruciantes – um efeito de nonsense, com um humor agridoce, elegíaco. Esse timbre ecoa o subtítulo: A Cruzada das Crianças. E também a altura em que o livro foi escrito, a contracultura que rejeita a “autoridade adulta” (a página de rosto termina com a saudação do flower power: “Paz”). Mas também é mais radical: uma confissão da impossibilidade de se escrever um romance realista sobre o horror inominável que infligimos uns aos outros – nós, que nunca crescemos nem domamos a besta que nos habita. Por isso, Vonnegut combina a autoficção (quando o autor fala de si próprio) e a metaficção (quando ele derruba a quarta parede e expõe a engrenagem ficcional): “Não há nada inteligente a dizer sobre uma chacina.”
O gatilho é o bombardeamento de Dresden, do qual um grupo de prisioneiros americanos sobreviveu milagrosamente, numa câmara frigorífica subterrânea, o Schlachthof-fünf, ou Matadouro 5. Entre eles, Vonnegut: “Foi a morte mais rápida de um grande número de pessoas – 130 mil em questão de horas.” Hoje, os números e premissas nos quais se apoiou são contestados. Já neste século, a Câmara Municipal de Dresden financiou uma pesquisa sobre o episódio. A conclusão foi que o bombardeio se vinculava ao teatro de guerra na Frente Oriental – a menos de 190 quilômetros, os russos avançavam para Berlim, e o objetivo era evitar o deslocamento de tropas alemãs. Depois de três anos de investigação, a Comissão Histórica de Dresden concluiu que morreram “até 25 mil pessoas” no ataque – o que continua a ser uma atrocidade obscena.
Mas Dresden era também um dos núcleos do partido Nacional-Socialista: lá, já em 1933 os nazistas queimavam livros e sinagogas. Ainda hoje rola uma batalha de propaganda um tanto infame sobre o bombardeio. Todos os anos, no dia 13 de fevereiro, neonazistas locais desfilam com cartazes que carpem o “município mártir”. Recentemente, Dresden se tornou a sede alemã do Pegida, uma organização de extrema-direita que luta contra “a islamização do Ocidente”.
Outra nexo histórico de Matadouro 5 (conectada com a mocidade dos soldados) também não é bem assim. A Cruzada das Crianças é a designação de uma miscelânea de fatos que teriam ocorrido no ano de 1212, quando um rapaz supostamente guiou milhares de crianças e menores de idade ao sul da Itália, para de lá rumarem à Terra Santa e libertarem Jerusalém dos mouros. Tal marcha teria terminado com a morte ou a venda como escravos dos cruzados mirins. Investigações modernas apontam que esta lenda misturou fatos diferentes, e que os participantes da demanda não eram crianças, mas camponeses, mendigos e doentes – párias da miséria medieval, enfim. O que não impediu que o Papa Inocêncio III vibrasse com o disparate: “Essas crianças estão acordadas, e nós estamos dormindo!”
E daí? Daí, nada. Um dos méritos de Matadouro 5 é a ambiguidade alucinatória do seu relato, que assume os limites da linguagem e abandona a quimera de uma reconstituição linear e fiel. Assim como os tralfamadorianos (que veem não em três dimensões, mas em quatro, incluindo o tempo), o leitor – ao serpentear pelas páginas em busca de ordem e significado – acaba percebendo que cada circunstância espacial contém o todo, e para sempre. Como a esfera de Pascal, cujo centro está em toda a parte, e a circunferência em parte alguma.
Só a literatura opera essa proeza. Não lemos um romance em busca de informações objetivas, empíricas, técnicas ou conceituais – para tanto, lemos não-ficção (tratados, manuais, ensaios). Mas isso não significa que a literatura não nos ensine nada: com a melhor dela, aprendemos algo sobre a condição humana e sobre nós mesmos, o universal e o singular. A voz de Matadouro 5 é um típico narrador inconfiável: vira e mexe, seus relatos estrambólicos são desarmados mais adiante por explicações prosaicas. Acontece que a literatura lida menos com o “kronos” (o tempo sequencial e cronológico) do que com aquilo que os gregos antigos chamavam de “kairós” (o momento especial, em que algo ontologicamente decisivo acontece).
A viagem no tempo de Billy Pilgrim começa com ele perdido e só na floresta e na neve, malvestido, mal treinado, mal equipado, um joguete de forças para além da sua compreensão. Onde é que já vimos alguém assim? Provavelmente, no espelho - somos todos peregrinos, sozinhos e desamparados no início e no fim da nossa jornada, em que há cataclismos mas também ocasionais esplendores.
Perto do desfecho, isto: “Naquela noite, Billy participou de um programa de entrevistas no rádio, com outras pessoas que esperavam para entrar. Eram críticos literários, e acharam que Billy era um deles. Debateriam se o romance estava morto ou não. É assim mesmo.” Bem, este cinquentão Matadouro 5 demonstra que, se o romance morreu, então viva o romance e todas as suas incessantes reencarnações. É assim mesmo.
*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE 'O AMOR É UM LUGAR COMUM' (INTERMEIOS)