Clássicos da ficção científica explicam fascínio humano por Marte


Relação de temor e curiosidade com o planeta vermelho remonta à Antiguidade, mas se acentuou nos últimos dois séculos

Por André Cáceres

O fascínio humano com Marte começou com um erro de tradução: em 1877, o astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli observou uma rede de listras no planeta, que ele chamou de “canali”. Por um mal-entendido linguístico, muitos cientistas pensaram se tratar de canais construídos artificialmente, equívoco que semeou no imaginário terráqueo a noção de que haveria vida inteligente no planeta vermelho. Agora, depois de mais de 20 missões não tripuladas bem-sucedidas a Marte e enquanto a mais nova sonda da Nasa, Perseverance, é enviada para lá, dois livros clássicos lançados recentemente no Brasil ajudam a compreender a evolução da nossa visão sobre Marte: Estrela Vermelha, de Aleksandr Bogdánov (editora Boitempo) e O Tempo em Marte, de Philip K. Dick (editora Aleph).

Matt Damon em cena do filme 'Perdido em Marte' (2015), de Ridley Scott, inspirado no livro de Andy Weir Foto: 20th Century Fox

Inédito em português, Estrela Vermelha (1908) é um dos romances mais interessantes da ficção científica pré-soviética. Não necessariamente uma grande obra em aspectos literários, o livro é quase um folheto de propaganda política, mas com o verniz de deslumbre das aventuras espaciais à moda de Jules Verne e H.G. Wells. Isso faz dele um documento histórico fascinante, uma vez que Bogdánov integrou até 1910 o Partido Operário Social-Democrata ao lado de Lenin, com quem rompeu anos antes da Revolução Russa. Narrado em primeira pessoa como o manuscrito de um militante comunista russo chamado Leonid, o relato consiste em seu encontro com Menny, um marciano que o leva numa viagem a Marte. A estrela vermelha do título é uma civilização utópica, sem uma autoridade central, em que as pessoas trabalham duas horas por dia sem qualquer obrigação e decidem suas profissões dependendo do que a sociedade mais precisa. A maior parte do romance consiste em um longo passeio pelas maravilhas tecnológicas e sociais dos marcianos, em que Leonid – e, por consequência, o leitor – é um mero espectador conduzido por Menny. Essa estrutura narrativa passiva, presente na ficção utópica de Platão a Thomas More, contribui para a sensação de uma obra didática, que pretende oferecer aos proletários um vislumbre do futuro da Rússia.  Embora o subtexto político da obra fosse pouco crível, Bogdánov estava atento às discussões sobre física de sua época. Ele imagina um meio de transporte interplanetário movido a “matéria de tipo negativo” anos antes de Paul Dirac teorizar a antimatéria. Publicado antes da relatividade geral de Einstein, o livro já abordava “uma teoria precisa sobre a matéria e a gravidade” como algo fundamental para a humanidade chegar ao nível científico dos marcianos. Estrela Vermelha antecipou a propulsão por fusão nuclear anos antes de se saber que essa poderia ser uma fonte de energia, previu as consequências danosas de um arsenal atômico, imaginou computadores e refletiu sobre transfusões de sangue. Na vida real, Bogdánov, que era médico, acreditava que o compartilhamento sanguíneo poderia ser a chave para o rejuvenescimento e até para a imortalidade. Pioneiro nas pesquisas dessa área, ele acabou morrendo em 1928 ao receber o sangue de um aluno que sofria de malária e tuberculose. Vale notar que, naquela época, o estereótipo do marciano já estava formatado. É assim que Leonid descreve Menny: “Seus olhos eram monstruosamente enormes, como olhos humanos jamais seriam. Suas pupilas estavam dilatadas mesmo em relação à grandeza antinatural dos próprios olhos, o que lhes conferia uma expressão quase medonha. A parte superior da face e da cabeça era tão larga quanto bastasse para acomodar olhos daquele tamanho; a parte inferior, ao contrário, sem quaisquer vestígios de barba ou bigode, era relativamente pequena”. Essa referência visual surgiu no livro Dois Planetas (1897), de Kurd Lasswitz, o pai da ficção científica alemã, que inspirou Werner von Braun a seguir sua carreira como engenheiro de foguetes (primeiro para Hitler, depois para os EUA) e Jorge Luis Borges (o conto A Biblioteca de Babel é inspirado em uma narrativa de Lasswitz). É evidente que Bogdánov não foi o único autor a impingir temas políticos ao tratar de Marte – essa, na verdade, é a regra, não a exceção. Do outro lado da Cortina de Ferro, A Guerra dos Mundos (1898), do inglês H.G. Wells, que também era socialista e exerceu influência na obra de Bogdánov, descreve os marcianos como invasores bélicos, expansionistas e truculentos, numa clara crítica ao imperialismo britânico.  Isaac Asimov e Ray Bradbury, cujos centenários são comemorados em 2020, também se debruçaram sobre o planeta vermelho. Asimov dedicou o livro de não ficção Marte: Nosso Misterioso Vizinho e a novela O Caminho Marciano ao tema. Já Bradbury escreveu o ciclo de contos As Crônicas Marcianas, em que aborda a ocupação humana do planeta vermelho, enquanto os marcianos nativos veem sua espécie minguar. A obra retrata criticamente o colonialismo e seu impacto sobre as populações indígenas das Américas e discute a questão do pertencimento e de como a humanidade vem destruindo seu hábitat natural, se obrigando a buscar novos lares por meio da expansão espacial.  No conto ...E a Lua Continua Brilhando, um colono humano reconhece que “de algum modo, as montanhas nunca vão parecer adequadas para nós; vamos dar-lhes nomes, mas os nomes antigos estão lá, em algum lugar no tempo, e as montanhas foram moldadas e vistas com esses nomes” e “por mais que nos aproximemos de Marte, nunca o tocaremos. E ficaremos bravos por isso, e o senhor sabe o que vamos fazer? Vamos despedaçá-lo, arrancar sua pele e transformá-lo à nossa imagem e semelhança”. O personagem lamenta: “Os homens da Terra têm talento para acabar com coisas grandes e belas.” Pois é dessa mesma questão do expansionismo irrefreável que Philip K. Dick trata em O Tempo em Marte (1964), que ganha nova tradução no Brasil. No livro, os colonos terráqueos também ameaçam a sobrevivência dos bleeks, um povo tribal que habitava o planeta vermelho originalmente: “As equipes arqueológicas que tinham chegado a Marte no início dos anos 1970 foram rápidas em maquinar as etapas de retirada da antiga civilização que os humanos agora começavam a substituir.” Dick retrata o avanço forçado da civilização por meio de uma disputa por terras entre um líder sindical e um especulador imobiliário, ambos corruptos. Em meio à competição dos capitalistas, o romance brinca com a ideia de passado, presente e futuro na figura de Manfred, um garoto humano nascido em Marte que se torna peça-chave na trama. Autista e mudo, ele percebe o tempo de modo não linear e passa a ser valioso para saber quais os terrenos em que se deve investir.  No entanto, alheio ao mercado imobiliário, o menino vive uma realidade própria, e bem característica da obra de Dick, tão afeita a pensar sobre a natureza visceralmente insólita do espaço-tempo: “Tenho um pouco a impressão de que Manfred faz algo mais do que simplesmente saber o futuro: de alguma maneira, ele controla isso, ele pode fazer as coisas acontecerem da pior maneira possível porque isso lhe parece natural, é assim que ele vê a realidade”, teme um dos personagens. A noção de que Marte seja habitada por criaturinhas verdes pode soar ingênua hoje. No entanto, há menos de 100 anos ela não apenas era cogitada, mas tida como plausível. Em 21 de agosto de 1924, as órbitas de Marte e da Terra registraram uma proximidade maior do que em muitas décadas, e o governo dos EUA chegou a criar o Dia Nacional do Silêncio de Rádio, pedindo aos ouvintes que não usassem seus rádios por cinco minutos a cada hora. Dessa forma, cientistas podiam usar um receptor potente de rádio para tentar captar sinais de vida no planeta vermelho, ideia aventada originalmente por ninguém menos que Nikola Tesla.  Em 1938, uma dramatização de Guerra dos Mundos feita via rádio por Orson Welles provocou pânico, pois milhares de ouvintes acreditaram que de fato havia uma invasão marciana ocorrendo. Não é por acaso que na suíte The Planets, composta pelo músico inglês Gustav Holst entre 1914 e 1916, a música dedicada a Marte é intitulada O Mensageiro da Guerra e influenciou a trilha sonora de John Williams em Star Wars. Esse temor é explicado por Asimov em uma entrevista de 1988, em que ele relaciona a iconografia de invasão marciana, tão difundida no imaginário coletivo, à mitologia (afinal, Marte era o deus da guerra no panteão romano).  Quem chegou mais perto de decifrar o fascínio que o planeta vermelho exerce há tantos anos sobre a humanidade, entretanto, foi o astrônomo e divulgador científico Carl Sagan: “Por que marcianos?”, indaga ele. “Por que tantas especulações ansiosas e fantasias ardentes sobre os marcianos, e não, por exemplo, saturnianos ou plutonianos? Porque Marte, à primeira vista, é muito parecido com a Terra. É o planeta mais próximo cuja superfície podemos ver. Há calotas de gelo polares, nuvens brancas flutuando, tempestades de areia furiosas, características que se alteram sazonalmente em sua superfície vermelha e até um dia de 24 horas. É tentador imaginá-lo como um mundo habitado. Marte tornou-se um tipo de arena mítica sobre a qual projetamos nossas esperanças e receios terrenos.”  É nessa arena que Bogdánov, Philip K. Dick, H.G. Wells, Asimov, Ray Bradbury e tantos outros escritores desfilaram suas questões, sempre falando muito mais dos problemas da Terra do que de fato sobre Marte, esse fascinante espelho rubro.

O fascínio humano com Marte começou com um erro de tradução: em 1877, o astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli observou uma rede de listras no planeta, que ele chamou de “canali”. Por um mal-entendido linguístico, muitos cientistas pensaram se tratar de canais construídos artificialmente, equívoco que semeou no imaginário terráqueo a noção de que haveria vida inteligente no planeta vermelho. Agora, depois de mais de 20 missões não tripuladas bem-sucedidas a Marte e enquanto a mais nova sonda da Nasa, Perseverance, é enviada para lá, dois livros clássicos lançados recentemente no Brasil ajudam a compreender a evolução da nossa visão sobre Marte: Estrela Vermelha, de Aleksandr Bogdánov (editora Boitempo) e O Tempo em Marte, de Philip K. Dick (editora Aleph).

Matt Damon em cena do filme 'Perdido em Marte' (2015), de Ridley Scott, inspirado no livro de Andy Weir Foto: 20th Century Fox

Inédito em português, Estrela Vermelha (1908) é um dos romances mais interessantes da ficção científica pré-soviética. Não necessariamente uma grande obra em aspectos literários, o livro é quase um folheto de propaganda política, mas com o verniz de deslumbre das aventuras espaciais à moda de Jules Verne e H.G. Wells. Isso faz dele um documento histórico fascinante, uma vez que Bogdánov integrou até 1910 o Partido Operário Social-Democrata ao lado de Lenin, com quem rompeu anos antes da Revolução Russa. Narrado em primeira pessoa como o manuscrito de um militante comunista russo chamado Leonid, o relato consiste em seu encontro com Menny, um marciano que o leva numa viagem a Marte. A estrela vermelha do título é uma civilização utópica, sem uma autoridade central, em que as pessoas trabalham duas horas por dia sem qualquer obrigação e decidem suas profissões dependendo do que a sociedade mais precisa. A maior parte do romance consiste em um longo passeio pelas maravilhas tecnológicas e sociais dos marcianos, em que Leonid – e, por consequência, o leitor – é um mero espectador conduzido por Menny. Essa estrutura narrativa passiva, presente na ficção utópica de Platão a Thomas More, contribui para a sensação de uma obra didática, que pretende oferecer aos proletários um vislumbre do futuro da Rússia.  Embora o subtexto político da obra fosse pouco crível, Bogdánov estava atento às discussões sobre física de sua época. Ele imagina um meio de transporte interplanetário movido a “matéria de tipo negativo” anos antes de Paul Dirac teorizar a antimatéria. Publicado antes da relatividade geral de Einstein, o livro já abordava “uma teoria precisa sobre a matéria e a gravidade” como algo fundamental para a humanidade chegar ao nível científico dos marcianos. Estrela Vermelha antecipou a propulsão por fusão nuclear anos antes de se saber que essa poderia ser uma fonte de energia, previu as consequências danosas de um arsenal atômico, imaginou computadores e refletiu sobre transfusões de sangue. Na vida real, Bogdánov, que era médico, acreditava que o compartilhamento sanguíneo poderia ser a chave para o rejuvenescimento e até para a imortalidade. Pioneiro nas pesquisas dessa área, ele acabou morrendo em 1928 ao receber o sangue de um aluno que sofria de malária e tuberculose. Vale notar que, naquela época, o estereótipo do marciano já estava formatado. É assim que Leonid descreve Menny: “Seus olhos eram monstruosamente enormes, como olhos humanos jamais seriam. Suas pupilas estavam dilatadas mesmo em relação à grandeza antinatural dos próprios olhos, o que lhes conferia uma expressão quase medonha. A parte superior da face e da cabeça era tão larga quanto bastasse para acomodar olhos daquele tamanho; a parte inferior, ao contrário, sem quaisquer vestígios de barba ou bigode, era relativamente pequena”. Essa referência visual surgiu no livro Dois Planetas (1897), de Kurd Lasswitz, o pai da ficção científica alemã, que inspirou Werner von Braun a seguir sua carreira como engenheiro de foguetes (primeiro para Hitler, depois para os EUA) e Jorge Luis Borges (o conto A Biblioteca de Babel é inspirado em uma narrativa de Lasswitz). É evidente que Bogdánov não foi o único autor a impingir temas políticos ao tratar de Marte – essa, na verdade, é a regra, não a exceção. Do outro lado da Cortina de Ferro, A Guerra dos Mundos (1898), do inglês H.G. Wells, que também era socialista e exerceu influência na obra de Bogdánov, descreve os marcianos como invasores bélicos, expansionistas e truculentos, numa clara crítica ao imperialismo britânico.  Isaac Asimov e Ray Bradbury, cujos centenários são comemorados em 2020, também se debruçaram sobre o planeta vermelho. Asimov dedicou o livro de não ficção Marte: Nosso Misterioso Vizinho e a novela O Caminho Marciano ao tema. Já Bradbury escreveu o ciclo de contos As Crônicas Marcianas, em que aborda a ocupação humana do planeta vermelho, enquanto os marcianos nativos veem sua espécie minguar. A obra retrata criticamente o colonialismo e seu impacto sobre as populações indígenas das Américas e discute a questão do pertencimento e de como a humanidade vem destruindo seu hábitat natural, se obrigando a buscar novos lares por meio da expansão espacial.  No conto ...E a Lua Continua Brilhando, um colono humano reconhece que “de algum modo, as montanhas nunca vão parecer adequadas para nós; vamos dar-lhes nomes, mas os nomes antigos estão lá, em algum lugar no tempo, e as montanhas foram moldadas e vistas com esses nomes” e “por mais que nos aproximemos de Marte, nunca o tocaremos. E ficaremos bravos por isso, e o senhor sabe o que vamos fazer? Vamos despedaçá-lo, arrancar sua pele e transformá-lo à nossa imagem e semelhança”. O personagem lamenta: “Os homens da Terra têm talento para acabar com coisas grandes e belas.” Pois é dessa mesma questão do expansionismo irrefreável que Philip K. Dick trata em O Tempo em Marte (1964), que ganha nova tradução no Brasil. No livro, os colonos terráqueos também ameaçam a sobrevivência dos bleeks, um povo tribal que habitava o planeta vermelho originalmente: “As equipes arqueológicas que tinham chegado a Marte no início dos anos 1970 foram rápidas em maquinar as etapas de retirada da antiga civilização que os humanos agora começavam a substituir.” Dick retrata o avanço forçado da civilização por meio de uma disputa por terras entre um líder sindical e um especulador imobiliário, ambos corruptos. Em meio à competição dos capitalistas, o romance brinca com a ideia de passado, presente e futuro na figura de Manfred, um garoto humano nascido em Marte que se torna peça-chave na trama. Autista e mudo, ele percebe o tempo de modo não linear e passa a ser valioso para saber quais os terrenos em que se deve investir.  No entanto, alheio ao mercado imobiliário, o menino vive uma realidade própria, e bem característica da obra de Dick, tão afeita a pensar sobre a natureza visceralmente insólita do espaço-tempo: “Tenho um pouco a impressão de que Manfred faz algo mais do que simplesmente saber o futuro: de alguma maneira, ele controla isso, ele pode fazer as coisas acontecerem da pior maneira possível porque isso lhe parece natural, é assim que ele vê a realidade”, teme um dos personagens. A noção de que Marte seja habitada por criaturinhas verdes pode soar ingênua hoje. No entanto, há menos de 100 anos ela não apenas era cogitada, mas tida como plausível. Em 21 de agosto de 1924, as órbitas de Marte e da Terra registraram uma proximidade maior do que em muitas décadas, e o governo dos EUA chegou a criar o Dia Nacional do Silêncio de Rádio, pedindo aos ouvintes que não usassem seus rádios por cinco minutos a cada hora. Dessa forma, cientistas podiam usar um receptor potente de rádio para tentar captar sinais de vida no planeta vermelho, ideia aventada originalmente por ninguém menos que Nikola Tesla.  Em 1938, uma dramatização de Guerra dos Mundos feita via rádio por Orson Welles provocou pânico, pois milhares de ouvintes acreditaram que de fato havia uma invasão marciana ocorrendo. Não é por acaso que na suíte The Planets, composta pelo músico inglês Gustav Holst entre 1914 e 1916, a música dedicada a Marte é intitulada O Mensageiro da Guerra e influenciou a trilha sonora de John Williams em Star Wars. Esse temor é explicado por Asimov em uma entrevista de 1988, em que ele relaciona a iconografia de invasão marciana, tão difundida no imaginário coletivo, à mitologia (afinal, Marte era o deus da guerra no panteão romano).  Quem chegou mais perto de decifrar o fascínio que o planeta vermelho exerce há tantos anos sobre a humanidade, entretanto, foi o astrônomo e divulgador científico Carl Sagan: “Por que marcianos?”, indaga ele. “Por que tantas especulações ansiosas e fantasias ardentes sobre os marcianos, e não, por exemplo, saturnianos ou plutonianos? Porque Marte, à primeira vista, é muito parecido com a Terra. É o planeta mais próximo cuja superfície podemos ver. Há calotas de gelo polares, nuvens brancas flutuando, tempestades de areia furiosas, características que se alteram sazonalmente em sua superfície vermelha e até um dia de 24 horas. É tentador imaginá-lo como um mundo habitado. Marte tornou-se um tipo de arena mítica sobre a qual projetamos nossas esperanças e receios terrenos.”  É nessa arena que Bogdánov, Philip K. Dick, H.G. Wells, Asimov, Ray Bradbury e tantos outros escritores desfilaram suas questões, sempre falando muito mais dos problemas da Terra do que de fato sobre Marte, esse fascinante espelho rubro.

O fascínio humano com Marte começou com um erro de tradução: em 1877, o astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli observou uma rede de listras no planeta, que ele chamou de “canali”. Por um mal-entendido linguístico, muitos cientistas pensaram se tratar de canais construídos artificialmente, equívoco que semeou no imaginário terráqueo a noção de que haveria vida inteligente no planeta vermelho. Agora, depois de mais de 20 missões não tripuladas bem-sucedidas a Marte e enquanto a mais nova sonda da Nasa, Perseverance, é enviada para lá, dois livros clássicos lançados recentemente no Brasil ajudam a compreender a evolução da nossa visão sobre Marte: Estrela Vermelha, de Aleksandr Bogdánov (editora Boitempo) e O Tempo em Marte, de Philip K. Dick (editora Aleph).

Matt Damon em cena do filme 'Perdido em Marte' (2015), de Ridley Scott, inspirado no livro de Andy Weir Foto: 20th Century Fox

Inédito em português, Estrela Vermelha (1908) é um dos romances mais interessantes da ficção científica pré-soviética. Não necessariamente uma grande obra em aspectos literários, o livro é quase um folheto de propaganda política, mas com o verniz de deslumbre das aventuras espaciais à moda de Jules Verne e H.G. Wells. Isso faz dele um documento histórico fascinante, uma vez que Bogdánov integrou até 1910 o Partido Operário Social-Democrata ao lado de Lenin, com quem rompeu anos antes da Revolução Russa. Narrado em primeira pessoa como o manuscrito de um militante comunista russo chamado Leonid, o relato consiste em seu encontro com Menny, um marciano que o leva numa viagem a Marte. A estrela vermelha do título é uma civilização utópica, sem uma autoridade central, em que as pessoas trabalham duas horas por dia sem qualquer obrigação e decidem suas profissões dependendo do que a sociedade mais precisa. A maior parte do romance consiste em um longo passeio pelas maravilhas tecnológicas e sociais dos marcianos, em que Leonid – e, por consequência, o leitor – é um mero espectador conduzido por Menny. Essa estrutura narrativa passiva, presente na ficção utópica de Platão a Thomas More, contribui para a sensação de uma obra didática, que pretende oferecer aos proletários um vislumbre do futuro da Rússia.  Embora o subtexto político da obra fosse pouco crível, Bogdánov estava atento às discussões sobre física de sua época. Ele imagina um meio de transporte interplanetário movido a “matéria de tipo negativo” anos antes de Paul Dirac teorizar a antimatéria. Publicado antes da relatividade geral de Einstein, o livro já abordava “uma teoria precisa sobre a matéria e a gravidade” como algo fundamental para a humanidade chegar ao nível científico dos marcianos. Estrela Vermelha antecipou a propulsão por fusão nuclear anos antes de se saber que essa poderia ser uma fonte de energia, previu as consequências danosas de um arsenal atômico, imaginou computadores e refletiu sobre transfusões de sangue. Na vida real, Bogdánov, que era médico, acreditava que o compartilhamento sanguíneo poderia ser a chave para o rejuvenescimento e até para a imortalidade. Pioneiro nas pesquisas dessa área, ele acabou morrendo em 1928 ao receber o sangue de um aluno que sofria de malária e tuberculose. Vale notar que, naquela época, o estereótipo do marciano já estava formatado. É assim que Leonid descreve Menny: “Seus olhos eram monstruosamente enormes, como olhos humanos jamais seriam. Suas pupilas estavam dilatadas mesmo em relação à grandeza antinatural dos próprios olhos, o que lhes conferia uma expressão quase medonha. A parte superior da face e da cabeça era tão larga quanto bastasse para acomodar olhos daquele tamanho; a parte inferior, ao contrário, sem quaisquer vestígios de barba ou bigode, era relativamente pequena”. Essa referência visual surgiu no livro Dois Planetas (1897), de Kurd Lasswitz, o pai da ficção científica alemã, que inspirou Werner von Braun a seguir sua carreira como engenheiro de foguetes (primeiro para Hitler, depois para os EUA) e Jorge Luis Borges (o conto A Biblioteca de Babel é inspirado em uma narrativa de Lasswitz). É evidente que Bogdánov não foi o único autor a impingir temas políticos ao tratar de Marte – essa, na verdade, é a regra, não a exceção. Do outro lado da Cortina de Ferro, A Guerra dos Mundos (1898), do inglês H.G. Wells, que também era socialista e exerceu influência na obra de Bogdánov, descreve os marcianos como invasores bélicos, expansionistas e truculentos, numa clara crítica ao imperialismo britânico.  Isaac Asimov e Ray Bradbury, cujos centenários são comemorados em 2020, também se debruçaram sobre o planeta vermelho. Asimov dedicou o livro de não ficção Marte: Nosso Misterioso Vizinho e a novela O Caminho Marciano ao tema. Já Bradbury escreveu o ciclo de contos As Crônicas Marcianas, em que aborda a ocupação humana do planeta vermelho, enquanto os marcianos nativos veem sua espécie minguar. A obra retrata criticamente o colonialismo e seu impacto sobre as populações indígenas das Américas e discute a questão do pertencimento e de como a humanidade vem destruindo seu hábitat natural, se obrigando a buscar novos lares por meio da expansão espacial.  No conto ...E a Lua Continua Brilhando, um colono humano reconhece que “de algum modo, as montanhas nunca vão parecer adequadas para nós; vamos dar-lhes nomes, mas os nomes antigos estão lá, em algum lugar no tempo, e as montanhas foram moldadas e vistas com esses nomes” e “por mais que nos aproximemos de Marte, nunca o tocaremos. E ficaremos bravos por isso, e o senhor sabe o que vamos fazer? Vamos despedaçá-lo, arrancar sua pele e transformá-lo à nossa imagem e semelhança”. O personagem lamenta: “Os homens da Terra têm talento para acabar com coisas grandes e belas.” Pois é dessa mesma questão do expansionismo irrefreável que Philip K. Dick trata em O Tempo em Marte (1964), que ganha nova tradução no Brasil. No livro, os colonos terráqueos também ameaçam a sobrevivência dos bleeks, um povo tribal que habitava o planeta vermelho originalmente: “As equipes arqueológicas que tinham chegado a Marte no início dos anos 1970 foram rápidas em maquinar as etapas de retirada da antiga civilização que os humanos agora começavam a substituir.” Dick retrata o avanço forçado da civilização por meio de uma disputa por terras entre um líder sindical e um especulador imobiliário, ambos corruptos. Em meio à competição dos capitalistas, o romance brinca com a ideia de passado, presente e futuro na figura de Manfred, um garoto humano nascido em Marte que se torna peça-chave na trama. Autista e mudo, ele percebe o tempo de modo não linear e passa a ser valioso para saber quais os terrenos em que se deve investir.  No entanto, alheio ao mercado imobiliário, o menino vive uma realidade própria, e bem característica da obra de Dick, tão afeita a pensar sobre a natureza visceralmente insólita do espaço-tempo: “Tenho um pouco a impressão de que Manfred faz algo mais do que simplesmente saber o futuro: de alguma maneira, ele controla isso, ele pode fazer as coisas acontecerem da pior maneira possível porque isso lhe parece natural, é assim que ele vê a realidade”, teme um dos personagens. A noção de que Marte seja habitada por criaturinhas verdes pode soar ingênua hoje. No entanto, há menos de 100 anos ela não apenas era cogitada, mas tida como plausível. Em 21 de agosto de 1924, as órbitas de Marte e da Terra registraram uma proximidade maior do que em muitas décadas, e o governo dos EUA chegou a criar o Dia Nacional do Silêncio de Rádio, pedindo aos ouvintes que não usassem seus rádios por cinco minutos a cada hora. Dessa forma, cientistas podiam usar um receptor potente de rádio para tentar captar sinais de vida no planeta vermelho, ideia aventada originalmente por ninguém menos que Nikola Tesla.  Em 1938, uma dramatização de Guerra dos Mundos feita via rádio por Orson Welles provocou pânico, pois milhares de ouvintes acreditaram que de fato havia uma invasão marciana ocorrendo. Não é por acaso que na suíte The Planets, composta pelo músico inglês Gustav Holst entre 1914 e 1916, a música dedicada a Marte é intitulada O Mensageiro da Guerra e influenciou a trilha sonora de John Williams em Star Wars. Esse temor é explicado por Asimov em uma entrevista de 1988, em que ele relaciona a iconografia de invasão marciana, tão difundida no imaginário coletivo, à mitologia (afinal, Marte era o deus da guerra no panteão romano).  Quem chegou mais perto de decifrar o fascínio que o planeta vermelho exerce há tantos anos sobre a humanidade, entretanto, foi o astrônomo e divulgador científico Carl Sagan: “Por que marcianos?”, indaga ele. “Por que tantas especulações ansiosas e fantasias ardentes sobre os marcianos, e não, por exemplo, saturnianos ou plutonianos? Porque Marte, à primeira vista, é muito parecido com a Terra. É o planeta mais próximo cuja superfície podemos ver. Há calotas de gelo polares, nuvens brancas flutuando, tempestades de areia furiosas, características que se alteram sazonalmente em sua superfície vermelha e até um dia de 24 horas. É tentador imaginá-lo como um mundo habitado. Marte tornou-se um tipo de arena mítica sobre a qual projetamos nossas esperanças e receios terrenos.”  É nessa arena que Bogdánov, Philip K. Dick, H.G. Wells, Asimov, Ray Bradbury e tantos outros escritores desfilaram suas questões, sempre falando muito mais dos problemas da Terra do que de fato sobre Marte, esse fascinante espelho rubro.

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