Coletânea de textos oferece panorama da obra de Octavia Butler


'Filhos de Sangue e Outros Contos' mostra que, embora tenha sido pioneira do afrofuturismo, a autora não se restringiu à temática racial, produzindo uma obra ampla e multifacetada

Por André Cáceres

Octavia E. Butler tinha dez anos quando entrou numa livraria pela primeira vez. Ela havia conseguido juntar cinco dólares para comprar um livro e perguntou à atendente se crianças podiam entrar. Em sua pergunta, havia outra questão implícita: “Crianças negras podem entrar?” A jovem Octavia já era frequentadora assídua da Biblioteca Pública de Pasadena, mas nunca havia comprado um livro novo e sabia muito bem que, nos Estados Unidos da segregação racial, não era bem-vinda em todos os estabelecimentos. A maior escritora negra da ficção científica narra essa memória em um ensaio que integra a coletânea de textos Filhos de Sangue e Outros Contos, inédita no Brasil e publicada pela editora Morro Branco.

A escritoraOctavia Butler, autora de 'Filhos de Sangue e Outros Contos' Foto: Editora Morro Branco

Apesar do reconhecimento da crítica — Butler venceu o Hugo e o Nebula, os dois maiores prêmios da literatura especulativa —, seus livros só alcançaram um público mais amplo depois de sua morte precoce em 2006, aos 58 anos. Talvez por ser uma das precursoras do movimento afrofuturista e por conta de sua vivência como mulher negra, ela acabou rotulada somente como uma autora que trata de gênero e raça na ficção científica. No entanto, embora essas questões atravessem alguns de seus escritos, Butler tem uma obra ampla, que abrange esses temas, mas não se restringe a eles. 

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Publicado originalmente em 1995 e expandido em 2005, o livro Filhos de Sangue e Outros Contos reúne sete narrativas breves e dois ensaios escritos entre 1979 e 2003, sendo assim um excelente exemplo da versatilidade temática de Butler. Nenhum dos contos aborda diretamente a questão racial e dois deles não têm nem mesmo elementos fantásticos, demonstrando como a autora ia do realismo cru à mais imaginativa ficção científica sem qualquer amarra. Ao final de cada texto há um comentário da autora sobre a recepção da crítica àquela obra, alguma curiosidade ou a inspiração por trás do conto.

É por meio de uma dessas notas que Butler desmonta a interpretação que a crítica especializada criou para um de seus textos mais importantes. O conto que dá nome à coletânea trata da relação simbiótica entre uma família humana e um alienígena da espécie Tlic em um planeta distante da Terra. Os Tlics corriam risco de extinção por não encontrar hospedeiros adequados para suas crias, e os humanos, colonos que fugiam do próprio passado, precisavam de proteção e subsistência. 

“Na época em que os Tlics não nos viam como algo além de animais grandes, úteis e de sangue quente, eles nos encurralavam juntos, machos e fêmeas, e nos alimentavam apenas com ovos. Assim podiam ter certeza de obter outra geração de nossa espécie por mais que tentássemos resistir. Tivemos sorte por eles não continuarem com isso por muito tempo. Em algumas gerações, seríamos pouco mais que animais grandes e úteis”, narra o protagonista Gan, um jovem rapaz escolhido para ser o portador das larvas que dariam origem a filhotes do alienígena T’Gatoi. 

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A relação entre Gan e T’Gatoi é ambígua, codependente, alternando entre o carinho e o abuso. É difícil não pensar em relacionamentos abusivos contemporâneos ou mesmo nas descrições que Gilberto Freyre faz do ambiente doméstico entre senhores e escravos no Brasil do século 19. No entanto, Butler escreve: “Fico surpresa que algumas pessoas tenham interpretado Filhos de Sangue como uma história de escravidão. Não é. Mas é uma série de outras coisas. Em um primeiro plano, é uma história de amor entre dois seres muito diferentes, Em outro, é uma história de entrada na vida adulta em que um menino precisa assimilar informações perturbadoras e usá-las para tomar uma decisão que irá afetar o resto de sua vida. Em um terceiro plano, Filhos de Sangue é minha história sobre um homem grávido.”

Além de dar voz à autora por meio dessas notas, a coletânea mostra como Butler se ocupou de retratar o afeto em todas as suas formas e nuances. Parentes Próximos, por exemplo, retrata em registro realista uma filha renegada pelos pais revirando os objetos e memórias da mãe que acaba de morrer e descobrindo ser, na verdade, fruto de um incesto. Butler aponta a Bíblia como uma de suas principais inspirações para tratar de relações afetivas complexas: “Histórias de conflito, traição, tortura, assassinato, exília e incesto. Eu as lia com avidez. Isso, óbvio, não era bem o que minha mãe imaginou quando me encorajou a ler a Bíblia. Mesmo assim, eu achava essas coisas fascinantes e, quando comecei a escrever, explorei esses temas em minhas próprias histórias.”

Já em Atalho ela faz seu conto mais autobiográfico, protagonizado por uma trabalhadora braçal que lida com o assédio dos homens na rua, o bullying das colegas de fábrica e com o retorno do ex-namorado recém-libertado da prisão. Butler passou a maior parte de sua juventude presa a subempregos torturantes para pagar as contas e Atalho foi seu primeiro conto vendido, embora ela ainda tenha levado cinco anos para vender outra história e ainda mais tempo para viver de escrita. “Achava que aqueles empregos maçantes, opressivos, eram capazes de levar qualquer um à loucura. Imagino que a maioria das pessoas que trabalhavam comigo me achava bem esquisita. Eu passava meus intervalos escrevendo, ou estava cansada e irritada por acordar muito cedo para escrever em casa”, lembra a autora.

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Uma de suas últimas histórias, O Livro de Martha, mostra uma escritora que é abordada por ninguém menos que Deus. A divindade, que aparece para ela primeiro como um homem branco, depois como um negro e, por fim, como uma mulher negra, concede-lhe seus poderes para que ela mude apenas uma coisa no mundo e tente melhorá-lo. O conto em si é praticamente uma sessão de brainstorming entre Martha e Deus, mas revela algumas das mais íntimas angústias de Butler a respeito da humanidade.

É curioso que esse livro seja publicado no Brasil justamente em meio à maior pandemia dos últimos 100 anos, já que dois dos contos mais interessantes reunidos tratam justamente de doenças. Em O Entardecer, a Manhã e a Noite, Lynn e Alan são um casal de estudantes portadores da Doença de Duryea-Gode (DDG), uma condição crônica e incurável que pode levar décadas paramanifestar seus sintomas mais perigosos, quando o paciente “desvaira” e causa dano a si e a terceiros, levando potencialmente ao homicídio e ao suicídio. 

O conto explora a discriminação que os pacientes com a DDG sofrem, mesmo quando as pessoas não têm a intenção de ofendê-los: “Pessoas saudáveis dizem que ninguém consegue se concentrar como um DDG. Pessoas saudáveis têm todo o tempo do mundo para generalizações estúpidas e atenção de curta duração”. A narrativa tem um tom que alterna entre o fatalismo e a esperança, a descrição dos retiros para tratamento em que os pacientes são mantidos “sob controle” poderiam fazer parte de algum livro de relatos clínicos do dr. Oliver Sacks. 

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Em uma nota, Butler explica que os sintomas foram criados com base em distúrbios reais e esse conto nasceu de seu interesse pela questão do determinismo genético. O quanto do que somos e fazemos é estimulado por nosso genes? Ela admite que é uma questão perigosa e que, com frequência, é usada de maneira irresponsável na ficção para defender um ponto de vista eugenista. “A genética é um jogo de tabuleiro, ou pior, uma desculpa para o darwinismo social cuja popularidade oscila de tempos em tempos.”

Em vários de seus escritos, Butler demonstrou um caráter antecipatório. Em seu romance A Parábola dos Talentos (1998), por exemplo, ela escreveu sobre a eleição de um presidente ultraconservador sob o mote “Make America Great Again”. No conto Sons da Fala, essa característica se revela novamente ao retratar um futuro em que o diálogo fracassou por completo — as pessoas perdem as capacidades comunicativas de fala, compreensão, leitura e escrita graças a uma epidemia misteriosa, mas a metáfora para uma sociedade fraturada é clara.

Butler também anteviu como a politização de uma emergência sanitária pode levar ao fracasso em combatê-la e até mesmo em compreendê-la: “A doença, se é que era uma doença, tinha arrancado os vivos uns dos outros. Enquanto varria o país, as pessoas mal tiveram tempo de pôr a culpa nos soviéticos (embora eles estivessem silenciando junto ao resto do mundo), em um novo vírus, um novo poluente, radiação, justiça divina… A doença foi certeira no modo como derrubou as pessoas”, relembra a protagonista Rye. 

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Ex-professora, Rye se vê amargamente destituída de suas capacidades cognitivas em uma narrativa que investiga o peso da comunicação para manter o frágil laço que nos conecta enquanto humanidade. Basta que o diálogo seja impossibilitado para que, de uma hora para a outra, o tecido social se esgarce. O cenário pós-apocalíptico marcado pela violência é apenas uma hipérbole das tendências que Butler já enxergava nos Estados Unidos desde a década de 1970 e que se tornam cada vez mais claras à medida que os muros ideológicos separam as pessoas.

Filhos de Sangue e Outros Contos é um voo rasante pelo conjunto da obra de Octavia Butler, fundamental para a redescoberta das variadas facetas da autora. Os textos ali reunidos reafirmam o vigor de sua escrita e desconstroem rótulos associados a sua figura ao longo dos anos, restituindo-lhe a condição de escritora versátil cujas histórias são ainda mais valiosas hoje do que quando foram concebidas.

Octavia E. Butler tinha dez anos quando entrou numa livraria pela primeira vez. Ela havia conseguido juntar cinco dólares para comprar um livro e perguntou à atendente se crianças podiam entrar. Em sua pergunta, havia outra questão implícita: “Crianças negras podem entrar?” A jovem Octavia já era frequentadora assídua da Biblioteca Pública de Pasadena, mas nunca havia comprado um livro novo e sabia muito bem que, nos Estados Unidos da segregação racial, não era bem-vinda em todos os estabelecimentos. A maior escritora negra da ficção científica narra essa memória em um ensaio que integra a coletânea de textos Filhos de Sangue e Outros Contos, inédita no Brasil e publicada pela editora Morro Branco.

A escritoraOctavia Butler, autora de 'Filhos de Sangue e Outros Contos' Foto: Editora Morro Branco

Apesar do reconhecimento da crítica — Butler venceu o Hugo e o Nebula, os dois maiores prêmios da literatura especulativa —, seus livros só alcançaram um público mais amplo depois de sua morte precoce em 2006, aos 58 anos. Talvez por ser uma das precursoras do movimento afrofuturista e por conta de sua vivência como mulher negra, ela acabou rotulada somente como uma autora que trata de gênero e raça na ficção científica. No entanto, embora essas questões atravessem alguns de seus escritos, Butler tem uma obra ampla, que abrange esses temas, mas não se restringe a eles. 

Publicado originalmente em 1995 e expandido em 2005, o livro Filhos de Sangue e Outros Contos reúne sete narrativas breves e dois ensaios escritos entre 1979 e 2003, sendo assim um excelente exemplo da versatilidade temática de Butler. Nenhum dos contos aborda diretamente a questão racial e dois deles não têm nem mesmo elementos fantásticos, demonstrando como a autora ia do realismo cru à mais imaginativa ficção científica sem qualquer amarra. Ao final de cada texto há um comentário da autora sobre a recepção da crítica àquela obra, alguma curiosidade ou a inspiração por trás do conto.

É por meio de uma dessas notas que Butler desmonta a interpretação que a crítica especializada criou para um de seus textos mais importantes. O conto que dá nome à coletânea trata da relação simbiótica entre uma família humana e um alienígena da espécie Tlic em um planeta distante da Terra. Os Tlics corriam risco de extinção por não encontrar hospedeiros adequados para suas crias, e os humanos, colonos que fugiam do próprio passado, precisavam de proteção e subsistência. 

“Na época em que os Tlics não nos viam como algo além de animais grandes, úteis e de sangue quente, eles nos encurralavam juntos, machos e fêmeas, e nos alimentavam apenas com ovos. Assim podiam ter certeza de obter outra geração de nossa espécie por mais que tentássemos resistir. Tivemos sorte por eles não continuarem com isso por muito tempo. Em algumas gerações, seríamos pouco mais que animais grandes e úteis”, narra o protagonista Gan, um jovem rapaz escolhido para ser o portador das larvas que dariam origem a filhotes do alienígena T’Gatoi. 

A relação entre Gan e T’Gatoi é ambígua, codependente, alternando entre o carinho e o abuso. É difícil não pensar em relacionamentos abusivos contemporâneos ou mesmo nas descrições que Gilberto Freyre faz do ambiente doméstico entre senhores e escravos no Brasil do século 19. No entanto, Butler escreve: “Fico surpresa que algumas pessoas tenham interpretado Filhos de Sangue como uma história de escravidão. Não é. Mas é uma série de outras coisas. Em um primeiro plano, é uma história de amor entre dois seres muito diferentes, Em outro, é uma história de entrada na vida adulta em que um menino precisa assimilar informações perturbadoras e usá-las para tomar uma decisão que irá afetar o resto de sua vida. Em um terceiro plano, Filhos de Sangue é minha história sobre um homem grávido.”

Além de dar voz à autora por meio dessas notas, a coletânea mostra como Butler se ocupou de retratar o afeto em todas as suas formas e nuances. Parentes Próximos, por exemplo, retrata em registro realista uma filha renegada pelos pais revirando os objetos e memórias da mãe que acaba de morrer e descobrindo ser, na verdade, fruto de um incesto. Butler aponta a Bíblia como uma de suas principais inspirações para tratar de relações afetivas complexas: “Histórias de conflito, traição, tortura, assassinato, exília e incesto. Eu as lia com avidez. Isso, óbvio, não era bem o que minha mãe imaginou quando me encorajou a ler a Bíblia. Mesmo assim, eu achava essas coisas fascinantes e, quando comecei a escrever, explorei esses temas em minhas próprias histórias.”

Já em Atalho ela faz seu conto mais autobiográfico, protagonizado por uma trabalhadora braçal que lida com o assédio dos homens na rua, o bullying das colegas de fábrica e com o retorno do ex-namorado recém-libertado da prisão. Butler passou a maior parte de sua juventude presa a subempregos torturantes para pagar as contas e Atalho foi seu primeiro conto vendido, embora ela ainda tenha levado cinco anos para vender outra história e ainda mais tempo para viver de escrita. “Achava que aqueles empregos maçantes, opressivos, eram capazes de levar qualquer um à loucura. Imagino que a maioria das pessoas que trabalhavam comigo me achava bem esquisita. Eu passava meus intervalos escrevendo, ou estava cansada e irritada por acordar muito cedo para escrever em casa”, lembra a autora.

Uma de suas últimas histórias, O Livro de Martha, mostra uma escritora que é abordada por ninguém menos que Deus. A divindade, que aparece para ela primeiro como um homem branco, depois como um negro e, por fim, como uma mulher negra, concede-lhe seus poderes para que ela mude apenas uma coisa no mundo e tente melhorá-lo. O conto em si é praticamente uma sessão de brainstorming entre Martha e Deus, mas revela algumas das mais íntimas angústias de Butler a respeito da humanidade.

É curioso que esse livro seja publicado no Brasil justamente em meio à maior pandemia dos últimos 100 anos, já que dois dos contos mais interessantes reunidos tratam justamente de doenças. Em O Entardecer, a Manhã e a Noite, Lynn e Alan são um casal de estudantes portadores da Doença de Duryea-Gode (DDG), uma condição crônica e incurável que pode levar décadas paramanifestar seus sintomas mais perigosos, quando o paciente “desvaira” e causa dano a si e a terceiros, levando potencialmente ao homicídio e ao suicídio. 

O conto explora a discriminação que os pacientes com a DDG sofrem, mesmo quando as pessoas não têm a intenção de ofendê-los: “Pessoas saudáveis dizem que ninguém consegue se concentrar como um DDG. Pessoas saudáveis têm todo o tempo do mundo para generalizações estúpidas e atenção de curta duração”. A narrativa tem um tom que alterna entre o fatalismo e a esperança, a descrição dos retiros para tratamento em que os pacientes são mantidos “sob controle” poderiam fazer parte de algum livro de relatos clínicos do dr. Oliver Sacks. 

Em uma nota, Butler explica que os sintomas foram criados com base em distúrbios reais e esse conto nasceu de seu interesse pela questão do determinismo genético. O quanto do que somos e fazemos é estimulado por nosso genes? Ela admite que é uma questão perigosa e que, com frequência, é usada de maneira irresponsável na ficção para defender um ponto de vista eugenista. “A genética é um jogo de tabuleiro, ou pior, uma desculpa para o darwinismo social cuja popularidade oscila de tempos em tempos.”

Em vários de seus escritos, Butler demonstrou um caráter antecipatório. Em seu romance A Parábola dos Talentos (1998), por exemplo, ela escreveu sobre a eleição de um presidente ultraconservador sob o mote “Make America Great Again”. No conto Sons da Fala, essa característica se revela novamente ao retratar um futuro em que o diálogo fracassou por completo — as pessoas perdem as capacidades comunicativas de fala, compreensão, leitura e escrita graças a uma epidemia misteriosa, mas a metáfora para uma sociedade fraturada é clara.

Butler também anteviu como a politização de uma emergência sanitária pode levar ao fracasso em combatê-la e até mesmo em compreendê-la: “A doença, se é que era uma doença, tinha arrancado os vivos uns dos outros. Enquanto varria o país, as pessoas mal tiveram tempo de pôr a culpa nos soviéticos (embora eles estivessem silenciando junto ao resto do mundo), em um novo vírus, um novo poluente, radiação, justiça divina… A doença foi certeira no modo como derrubou as pessoas”, relembra a protagonista Rye. 

Ex-professora, Rye se vê amargamente destituída de suas capacidades cognitivas em uma narrativa que investiga o peso da comunicação para manter o frágil laço que nos conecta enquanto humanidade. Basta que o diálogo seja impossibilitado para que, de uma hora para a outra, o tecido social se esgarce. O cenário pós-apocalíptico marcado pela violência é apenas uma hipérbole das tendências que Butler já enxergava nos Estados Unidos desde a década de 1970 e que se tornam cada vez mais claras à medida que os muros ideológicos separam as pessoas.

Filhos de Sangue e Outros Contos é um voo rasante pelo conjunto da obra de Octavia Butler, fundamental para a redescoberta das variadas facetas da autora. Os textos ali reunidos reafirmam o vigor de sua escrita e desconstroem rótulos associados a sua figura ao longo dos anos, restituindo-lhe a condição de escritora versátil cujas histórias são ainda mais valiosas hoje do que quando foram concebidas.

Octavia E. Butler tinha dez anos quando entrou numa livraria pela primeira vez. Ela havia conseguido juntar cinco dólares para comprar um livro e perguntou à atendente se crianças podiam entrar. Em sua pergunta, havia outra questão implícita: “Crianças negras podem entrar?” A jovem Octavia já era frequentadora assídua da Biblioteca Pública de Pasadena, mas nunca havia comprado um livro novo e sabia muito bem que, nos Estados Unidos da segregação racial, não era bem-vinda em todos os estabelecimentos. A maior escritora negra da ficção científica narra essa memória em um ensaio que integra a coletânea de textos Filhos de Sangue e Outros Contos, inédita no Brasil e publicada pela editora Morro Branco.

A escritoraOctavia Butler, autora de 'Filhos de Sangue e Outros Contos' Foto: Editora Morro Branco

Apesar do reconhecimento da crítica — Butler venceu o Hugo e o Nebula, os dois maiores prêmios da literatura especulativa —, seus livros só alcançaram um público mais amplo depois de sua morte precoce em 2006, aos 58 anos. Talvez por ser uma das precursoras do movimento afrofuturista e por conta de sua vivência como mulher negra, ela acabou rotulada somente como uma autora que trata de gênero e raça na ficção científica. No entanto, embora essas questões atravessem alguns de seus escritos, Butler tem uma obra ampla, que abrange esses temas, mas não se restringe a eles. 

Publicado originalmente em 1995 e expandido em 2005, o livro Filhos de Sangue e Outros Contos reúne sete narrativas breves e dois ensaios escritos entre 1979 e 2003, sendo assim um excelente exemplo da versatilidade temática de Butler. Nenhum dos contos aborda diretamente a questão racial e dois deles não têm nem mesmo elementos fantásticos, demonstrando como a autora ia do realismo cru à mais imaginativa ficção científica sem qualquer amarra. Ao final de cada texto há um comentário da autora sobre a recepção da crítica àquela obra, alguma curiosidade ou a inspiração por trás do conto.

É por meio de uma dessas notas que Butler desmonta a interpretação que a crítica especializada criou para um de seus textos mais importantes. O conto que dá nome à coletânea trata da relação simbiótica entre uma família humana e um alienígena da espécie Tlic em um planeta distante da Terra. Os Tlics corriam risco de extinção por não encontrar hospedeiros adequados para suas crias, e os humanos, colonos que fugiam do próprio passado, precisavam de proteção e subsistência. 

“Na época em que os Tlics não nos viam como algo além de animais grandes, úteis e de sangue quente, eles nos encurralavam juntos, machos e fêmeas, e nos alimentavam apenas com ovos. Assim podiam ter certeza de obter outra geração de nossa espécie por mais que tentássemos resistir. Tivemos sorte por eles não continuarem com isso por muito tempo. Em algumas gerações, seríamos pouco mais que animais grandes e úteis”, narra o protagonista Gan, um jovem rapaz escolhido para ser o portador das larvas que dariam origem a filhotes do alienígena T’Gatoi. 

A relação entre Gan e T’Gatoi é ambígua, codependente, alternando entre o carinho e o abuso. É difícil não pensar em relacionamentos abusivos contemporâneos ou mesmo nas descrições que Gilberto Freyre faz do ambiente doméstico entre senhores e escravos no Brasil do século 19. No entanto, Butler escreve: “Fico surpresa que algumas pessoas tenham interpretado Filhos de Sangue como uma história de escravidão. Não é. Mas é uma série de outras coisas. Em um primeiro plano, é uma história de amor entre dois seres muito diferentes, Em outro, é uma história de entrada na vida adulta em que um menino precisa assimilar informações perturbadoras e usá-las para tomar uma decisão que irá afetar o resto de sua vida. Em um terceiro plano, Filhos de Sangue é minha história sobre um homem grávido.”

Além de dar voz à autora por meio dessas notas, a coletânea mostra como Butler se ocupou de retratar o afeto em todas as suas formas e nuances. Parentes Próximos, por exemplo, retrata em registro realista uma filha renegada pelos pais revirando os objetos e memórias da mãe que acaba de morrer e descobrindo ser, na verdade, fruto de um incesto. Butler aponta a Bíblia como uma de suas principais inspirações para tratar de relações afetivas complexas: “Histórias de conflito, traição, tortura, assassinato, exília e incesto. Eu as lia com avidez. Isso, óbvio, não era bem o que minha mãe imaginou quando me encorajou a ler a Bíblia. Mesmo assim, eu achava essas coisas fascinantes e, quando comecei a escrever, explorei esses temas em minhas próprias histórias.”

Já em Atalho ela faz seu conto mais autobiográfico, protagonizado por uma trabalhadora braçal que lida com o assédio dos homens na rua, o bullying das colegas de fábrica e com o retorno do ex-namorado recém-libertado da prisão. Butler passou a maior parte de sua juventude presa a subempregos torturantes para pagar as contas e Atalho foi seu primeiro conto vendido, embora ela ainda tenha levado cinco anos para vender outra história e ainda mais tempo para viver de escrita. “Achava que aqueles empregos maçantes, opressivos, eram capazes de levar qualquer um à loucura. Imagino que a maioria das pessoas que trabalhavam comigo me achava bem esquisita. Eu passava meus intervalos escrevendo, ou estava cansada e irritada por acordar muito cedo para escrever em casa”, lembra a autora.

Uma de suas últimas histórias, O Livro de Martha, mostra uma escritora que é abordada por ninguém menos que Deus. A divindade, que aparece para ela primeiro como um homem branco, depois como um negro e, por fim, como uma mulher negra, concede-lhe seus poderes para que ela mude apenas uma coisa no mundo e tente melhorá-lo. O conto em si é praticamente uma sessão de brainstorming entre Martha e Deus, mas revela algumas das mais íntimas angústias de Butler a respeito da humanidade.

É curioso que esse livro seja publicado no Brasil justamente em meio à maior pandemia dos últimos 100 anos, já que dois dos contos mais interessantes reunidos tratam justamente de doenças. Em O Entardecer, a Manhã e a Noite, Lynn e Alan são um casal de estudantes portadores da Doença de Duryea-Gode (DDG), uma condição crônica e incurável que pode levar décadas paramanifestar seus sintomas mais perigosos, quando o paciente “desvaira” e causa dano a si e a terceiros, levando potencialmente ao homicídio e ao suicídio. 

O conto explora a discriminação que os pacientes com a DDG sofrem, mesmo quando as pessoas não têm a intenção de ofendê-los: “Pessoas saudáveis dizem que ninguém consegue se concentrar como um DDG. Pessoas saudáveis têm todo o tempo do mundo para generalizações estúpidas e atenção de curta duração”. A narrativa tem um tom que alterna entre o fatalismo e a esperança, a descrição dos retiros para tratamento em que os pacientes são mantidos “sob controle” poderiam fazer parte de algum livro de relatos clínicos do dr. Oliver Sacks. 

Em uma nota, Butler explica que os sintomas foram criados com base em distúrbios reais e esse conto nasceu de seu interesse pela questão do determinismo genético. O quanto do que somos e fazemos é estimulado por nosso genes? Ela admite que é uma questão perigosa e que, com frequência, é usada de maneira irresponsável na ficção para defender um ponto de vista eugenista. “A genética é um jogo de tabuleiro, ou pior, uma desculpa para o darwinismo social cuja popularidade oscila de tempos em tempos.”

Em vários de seus escritos, Butler demonstrou um caráter antecipatório. Em seu romance A Parábola dos Talentos (1998), por exemplo, ela escreveu sobre a eleição de um presidente ultraconservador sob o mote “Make America Great Again”. No conto Sons da Fala, essa característica se revela novamente ao retratar um futuro em que o diálogo fracassou por completo — as pessoas perdem as capacidades comunicativas de fala, compreensão, leitura e escrita graças a uma epidemia misteriosa, mas a metáfora para uma sociedade fraturada é clara.

Butler também anteviu como a politização de uma emergência sanitária pode levar ao fracasso em combatê-la e até mesmo em compreendê-la: “A doença, se é que era uma doença, tinha arrancado os vivos uns dos outros. Enquanto varria o país, as pessoas mal tiveram tempo de pôr a culpa nos soviéticos (embora eles estivessem silenciando junto ao resto do mundo), em um novo vírus, um novo poluente, radiação, justiça divina… A doença foi certeira no modo como derrubou as pessoas”, relembra a protagonista Rye. 

Ex-professora, Rye se vê amargamente destituída de suas capacidades cognitivas em uma narrativa que investiga o peso da comunicação para manter o frágil laço que nos conecta enquanto humanidade. Basta que o diálogo seja impossibilitado para que, de uma hora para a outra, o tecido social se esgarce. O cenário pós-apocalíptico marcado pela violência é apenas uma hipérbole das tendências que Butler já enxergava nos Estados Unidos desde a década de 1970 e que se tornam cada vez mais claras à medida que os muros ideológicos separam as pessoas.

Filhos de Sangue e Outros Contos é um voo rasante pelo conjunto da obra de Octavia Butler, fundamental para a redescoberta das variadas facetas da autora. Os textos ali reunidos reafirmam o vigor de sua escrita e desconstroem rótulos associados a sua figura ao longo dos anos, restituindo-lhe a condição de escritora versátil cujas histórias são ainda mais valiosas hoje do que quando foram concebidas.

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