Coletânea reúne contos escritos por Graciliano Ramos na prisão


'Insônia' será debatido na Livraria da Vila no dia 16 de abril

Por Ieda Lebensztayn

“Que desgraça estará sucedendo? Deixo cair os braços, os uivos lastimosos da criança recomeçam, as minhas dores crescem, dão-me a certeza de que os médicos atormentam um pequenino infeliz. Penso nos vagabundos miúdos que circulam nas ruas, pedindo e furtando, sujos, esfrangalhados, os ossos furando a pele, meio comidos pela verminose.”A angústia aflige quem sabe que há uma desgraça em curso. Não bastasse estar num leito de hospital, ecoam uivos de um pequeno enfermo a evocar as dores de todas as crianças abandonadas na rua. A capacidade de mergulhar na própria dor, de encontrar a do outro, de enxergar a de muitos semelhantes, impossibilitados de expressão, e de criar uma forma para transmiti-las resulta em insônia e em arte. Insônia é o título do volume de contos publicado pela José Olympio no qual Graciliano Ramos nos oferece O Relógio do Hospital, fonte do excerto que abre este ensaio. 

+++A influência da primeira leitura da infância de Graciliano Ramos

Uma das ultimas fotos de Graciliano Ramos Foto: Editora José Olympio
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+++Peça mescla contos homônimos de Machado de Assis e Guimarães Rosa

O conto traz dias de tormento como os vividos pelo autor em 1932, quando passou por uma operação de psoíte, depois de haver escrito, febril, o essencial capítulo 19 de S. Bernardo. E interessa saber que a sensação de nevoeiro existencial e social do conto, feita de agonia e consciência, entre delírio e agudez, se impôs e tomou forma literária na Sala da Capela da Casa de Correção em julho de 1936, conforme Graciliano conta em Memórias do Cárcere. Na prisão, reviveu o desespero do hospital, em que à dor física da ferida se somavam as preocupações com o pagamento da cirurgia e do tratamento, com o desemprego, com os filhos a sustentar. Se o cárcere o mortifica com o sentimento de inação e impotência, repõe-lhe impressões do hospital, como a do relógio sufocante e a do corpo dividido, com uma parte boa, a ser salva, e a outra a ser arrancada, rumo ao necrotério. Dessas recordações, que já haviam marcado o delírio final de Angústia (publicado 1936, com Graciliano preso), nasceram O Relógio do Hospital e Paulo.

Mas quem diria que o convalescente daquela cirurgia seria nomeado, em janeiro de 1933, diretor da Instrução Pública de Alagoas e conseguiria colocar na escola, ao lado de 200 alunos de famílias mais arranjadas, 600 crianças pobres, além de vesti-las e calçá-las? E que tal atitude e outras semelhantes o levariam à prisão do Estado Novo, num tempo de insônia no qual recordaria os uivos das crianças abandonadas e lhes daria voz? 

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Graças ao tradutor argentino Benjamin de Garay, O Relógio do Hospital foi publicado inicialmente em La Prensa, de Buenos Aires, em outubro de 1937, com ilustração de Miguel Petrone. Representando o rosto de um homem, os olhos fechados e entrevado em meio a um lençol branco e ao mecanismo circular de um relógio, a ilustração agradou a Graciliano. No conto, a subjetividade do narrador, presa à dimensão insone do tempo, pulsante de dor no hospital, funde, na imagem do mecanismo velho e emperrado do relógio, o “maquinismo arruinado” de seu corpo e do mundo doente. 

Recurso criativo de Insônia, sobressai a representação de momentos cruciais do presente os quais levam o narrador a evocar cenas da infância marcadas por um impasse entre insuficiência e brecha de lirismo. Numa associação insólita, as “pancadas fanhosas” do relógio lembram as broncas “encatarroadas” recebidas do avô nas aulas de cartilha: “Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz autoritária e nasal, costumada a arengar aos pretos da fazenda, em ordens ásperas que um pigarro interrompia.” Eis que novamente aqui a arte de Graciliano configura, na mesma imagem do relógio do hospital, uma dimensão subjetiva e uma social: o tempo arrastado do doente, o do menino estigmatizado e o dos explorados, os descendentes de escravos. O atraso ou a paralisia do relógio falam da história de violência do país de origem escravocrata e da trajetória pessoal de opressão do menino, sufocado pelo medo. Ao mesmo tempo, o leitor do Aliás, recordando-se do capítulo Os Astrônomos, de Infância, conhece o potencial libertador da aprendizagem da leitura.

Coletânea anterior, Dois Dedos reuniu em 1945, com ilustrações de Axl de Leskoschek: O Relógio do Hospital, Paulo, A Prisão de J. Carmo Gomes, Silveira Pereira, Um Pobre-diabo, Ciúmes, Minsk, Insônia, Um Ladrão. Com o acréscimo de Luciana, A Testemunha e Uma Visita, Insônia pede leitura. 

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CLUBE DO LIVRO VELHO GRAÇA DEBATE ‘INSÔNIA’ Livraria da Vila. R. Fradique Coutinho, 915. 2ª feira, 16/4, 19h. Grátis. Com Ricardo Ramos Filho. *Ieda Lebensztayn é crítica literária, com pós-doutorado na USP. Autora de 'Graciliano Ramos e a Novidade: O Astrônomo do Inferno e os Meninos Impossíveis' 

“Que desgraça estará sucedendo? Deixo cair os braços, os uivos lastimosos da criança recomeçam, as minhas dores crescem, dão-me a certeza de que os médicos atormentam um pequenino infeliz. Penso nos vagabundos miúdos que circulam nas ruas, pedindo e furtando, sujos, esfrangalhados, os ossos furando a pele, meio comidos pela verminose.”A angústia aflige quem sabe que há uma desgraça em curso. Não bastasse estar num leito de hospital, ecoam uivos de um pequeno enfermo a evocar as dores de todas as crianças abandonadas na rua. A capacidade de mergulhar na própria dor, de encontrar a do outro, de enxergar a de muitos semelhantes, impossibilitados de expressão, e de criar uma forma para transmiti-las resulta em insônia e em arte. Insônia é o título do volume de contos publicado pela José Olympio no qual Graciliano Ramos nos oferece O Relógio do Hospital, fonte do excerto que abre este ensaio. 

+++A influência da primeira leitura da infância de Graciliano Ramos

Uma das ultimas fotos de Graciliano Ramos Foto: Editora José Olympio

+++Peça mescla contos homônimos de Machado de Assis e Guimarães Rosa

O conto traz dias de tormento como os vividos pelo autor em 1932, quando passou por uma operação de psoíte, depois de haver escrito, febril, o essencial capítulo 19 de S. Bernardo. E interessa saber que a sensação de nevoeiro existencial e social do conto, feita de agonia e consciência, entre delírio e agudez, se impôs e tomou forma literária na Sala da Capela da Casa de Correção em julho de 1936, conforme Graciliano conta em Memórias do Cárcere. Na prisão, reviveu o desespero do hospital, em que à dor física da ferida se somavam as preocupações com o pagamento da cirurgia e do tratamento, com o desemprego, com os filhos a sustentar. Se o cárcere o mortifica com o sentimento de inação e impotência, repõe-lhe impressões do hospital, como a do relógio sufocante e a do corpo dividido, com uma parte boa, a ser salva, e a outra a ser arrancada, rumo ao necrotério. Dessas recordações, que já haviam marcado o delírio final de Angústia (publicado 1936, com Graciliano preso), nasceram O Relógio do Hospital e Paulo.

Mas quem diria que o convalescente daquela cirurgia seria nomeado, em janeiro de 1933, diretor da Instrução Pública de Alagoas e conseguiria colocar na escola, ao lado de 200 alunos de famílias mais arranjadas, 600 crianças pobres, além de vesti-las e calçá-las? E que tal atitude e outras semelhantes o levariam à prisão do Estado Novo, num tempo de insônia no qual recordaria os uivos das crianças abandonadas e lhes daria voz? 

Graças ao tradutor argentino Benjamin de Garay, O Relógio do Hospital foi publicado inicialmente em La Prensa, de Buenos Aires, em outubro de 1937, com ilustração de Miguel Petrone. Representando o rosto de um homem, os olhos fechados e entrevado em meio a um lençol branco e ao mecanismo circular de um relógio, a ilustração agradou a Graciliano. No conto, a subjetividade do narrador, presa à dimensão insone do tempo, pulsante de dor no hospital, funde, na imagem do mecanismo velho e emperrado do relógio, o “maquinismo arruinado” de seu corpo e do mundo doente. 

Recurso criativo de Insônia, sobressai a representação de momentos cruciais do presente os quais levam o narrador a evocar cenas da infância marcadas por um impasse entre insuficiência e brecha de lirismo. Numa associação insólita, as “pancadas fanhosas” do relógio lembram as broncas “encatarroadas” recebidas do avô nas aulas de cartilha: “Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz autoritária e nasal, costumada a arengar aos pretos da fazenda, em ordens ásperas que um pigarro interrompia.” Eis que novamente aqui a arte de Graciliano configura, na mesma imagem do relógio do hospital, uma dimensão subjetiva e uma social: o tempo arrastado do doente, o do menino estigmatizado e o dos explorados, os descendentes de escravos. O atraso ou a paralisia do relógio falam da história de violência do país de origem escravocrata e da trajetória pessoal de opressão do menino, sufocado pelo medo. Ao mesmo tempo, o leitor do Aliás, recordando-se do capítulo Os Astrônomos, de Infância, conhece o potencial libertador da aprendizagem da leitura.

Coletânea anterior, Dois Dedos reuniu em 1945, com ilustrações de Axl de Leskoschek: O Relógio do Hospital, Paulo, A Prisão de J. Carmo Gomes, Silveira Pereira, Um Pobre-diabo, Ciúmes, Minsk, Insônia, Um Ladrão. Com o acréscimo de Luciana, A Testemunha e Uma Visita, Insônia pede leitura. 

CLUBE DO LIVRO VELHO GRAÇA DEBATE ‘INSÔNIA’ Livraria da Vila. R. Fradique Coutinho, 915. 2ª feira, 16/4, 19h. Grátis. Com Ricardo Ramos Filho. *Ieda Lebensztayn é crítica literária, com pós-doutorado na USP. Autora de 'Graciliano Ramos e a Novidade: O Astrônomo do Inferno e os Meninos Impossíveis' 

“Que desgraça estará sucedendo? Deixo cair os braços, os uivos lastimosos da criança recomeçam, as minhas dores crescem, dão-me a certeza de que os médicos atormentam um pequenino infeliz. Penso nos vagabundos miúdos que circulam nas ruas, pedindo e furtando, sujos, esfrangalhados, os ossos furando a pele, meio comidos pela verminose.”A angústia aflige quem sabe que há uma desgraça em curso. Não bastasse estar num leito de hospital, ecoam uivos de um pequeno enfermo a evocar as dores de todas as crianças abandonadas na rua. A capacidade de mergulhar na própria dor, de encontrar a do outro, de enxergar a de muitos semelhantes, impossibilitados de expressão, e de criar uma forma para transmiti-las resulta em insônia e em arte. Insônia é o título do volume de contos publicado pela José Olympio no qual Graciliano Ramos nos oferece O Relógio do Hospital, fonte do excerto que abre este ensaio. 

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Uma das ultimas fotos de Graciliano Ramos Foto: Editora José Olympio

+++Peça mescla contos homônimos de Machado de Assis e Guimarães Rosa

O conto traz dias de tormento como os vividos pelo autor em 1932, quando passou por uma operação de psoíte, depois de haver escrito, febril, o essencial capítulo 19 de S. Bernardo. E interessa saber que a sensação de nevoeiro existencial e social do conto, feita de agonia e consciência, entre delírio e agudez, se impôs e tomou forma literária na Sala da Capela da Casa de Correção em julho de 1936, conforme Graciliano conta em Memórias do Cárcere. Na prisão, reviveu o desespero do hospital, em que à dor física da ferida se somavam as preocupações com o pagamento da cirurgia e do tratamento, com o desemprego, com os filhos a sustentar. Se o cárcere o mortifica com o sentimento de inação e impotência, repõe-lhe impressões do hospital, como a do relógio sufocante e a do corpo dividido, com uma parte boa, a ser salva, e a outra a ser arrancada, rumo ao necrotério. Dessas recordações, que já haviam marcado o delírio final de Angústia (publicado 1936, com Graciliano preso), nasceram O Relógio do Hospital e Paulo.

Mas quem diria que o convalescente daquela cirurgia seria nomeado, em janeiro de 1933, diretor da Instrução Pública de Alagoas e conseguiria colocar na escola, ao lado de 200 alunos de famílias mais arranjadas, 600 crianças pobres, além de vesti-las e calçá-las? E que tal atitude e outras semelhantes o levariam à prisão do Estado Novo, num tempo de insônia no qual recordaria os uivos das crianças abandonadas e lhes daria voz? 

Graças ao tradutor argentino Benjamin de Garay, O Relógio do Hospital foi publicado inicialmente em La Prensa, de Buenos Aires, em outubro de 1937, com ilustração de Miguel Petrone. Representando o rosto de um homem, os olhos fechados e entrevado em meio a um lençol branco e ao mecanismo circular de um relógio, a ilustração agradou a Graciliano. No conto, a subjetividade do narrador, presa à dimensão insone do tempo, pulsante de dor no hospital, funde, na imagem do mecanismo velho e emperrado do relógio, o “maquinismo arruinado” de seu corpo e do mundo doente. 

Recurso criativo de Insônia, sobressai a representação de momentos cruciais do presente os quais levam o narrador a evocar cenas da infância marcadas por um impasse entre insuficiência e brecha de lirismo. Numa associação insólita, as “pancadas fanhosas” do relógio lembram as broncas “encatarroadas” recebidas do avô nas aulas de cartilha: “Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz autoritária e nasal, costumada a arengar aos pretos da fazenda, em ordens ásperas que um pigarro interrompia.” Eis que novamente aqui a arte de Graciliano configura, na mesma imagem do relógio do hospital, uma dimensão subjetiva e uma social: o tempo arrastado do doente, o do menino estigmatizado e o dos explorados, os descendentes de escravos. O atraso ou a paralisia do relógio falam da história de violência do país de origem escravocrata e da trajetória pessoal de opressão do menino, sufocado pelo medo. Ao mesmo tempo, o leitor do Aliás, recordando-se do capítulo Os Astrônomos, de Infância, conhece o potencial libertador da aprendizagem da leitura.

Coletânea anterior, Dois Dedos reuniu em 1945, com ilustrações de Axl de Leskoschek: O Relógio do Hospital, Paulo, A Prisão de J. Carmo Gomes, Silveira Pereira, Um Pobre-diabo, Ciúmes, Minsk, Insônia, Um Ladrão. Com o acréscimo de Luciana, A Testemunha e Uma Visita, Insônia pede leitura. 

CLUBE DO LIVRO VELHO GRAÇA DEBATE ‘INSÔNIA’ Livraria da Vila. R. Fradique Coutinho, 915. 2ª feira, 16/4, 19h. Grátis. Com Ricardo Ramos Filho. *Ieda Lebensztayn é crítica literária, com pós-doutorado na USP. Autora de 'Graciliano Ramos e a Novidade: O Astrônomo do Inferno e os Meninos Impossíveis' 

“Que desgraça estará sucedendo? Deixo cair os braços, os uivos lastimosos da criança recomeçam, as minhas dores crescem, dão-me a certeza de que os médicos atormentam um pequenino infeliz. Penso nos vagabundos miúdos que circulam nas ruas, pedindo e furtando, sujos, esfrangalhados, os ossos furando a pele, meio comidos pela verminose.”A angústia aflige quem sabe que há uma desgraça em curso. Não bastasse estar num leito de hospital, ecoam uivos de um pequeno enfermo a evocar as dores de todas as crianças abandonadas na rua. A capacidade de mergulhar na própria dor, de encontrar a do outro, de enxergar a de muitos semelhantes, impossibilitados de expressão, e de criar uma forma para transmiti-las resulta em insônia e em arte. Insônia é o título do volume de contos publicado pela José Olympio no qual Graciliano Ramos nos oferece O Relógio do Hospital, fonte do excerto que abre este ensaio. 

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O conto traz dias de tormento como os vividos pelo autor em 1932, quando passou por uma operação de psoíte, depois de haver escrito, febril, o essencial capítulo 19 de S. Bernardo. E interessa saber que a sensação de nevoeiro existencial e social do conto, feita de agonia e consciência, entre delírio e agudez, se impôs e tomou forma literária na Sala da Capela da Casa de Correção em julho de 1936, conforme Graciliano conta em Memórias do Cárcere. Na prisão, reviveu o desespero do hospital, em que à dor física da ferida se somavam as preocupações com o pagamento da cirurgia e do tratamento, com o desemprego, com os filhos a sustentar. Se o cárcere o mortifica com o sentimento de inação e impotência, repõe-lhe impressões do hospital, como a do relógio sufocante e a do corpo dividido, com uma parte boa, a ser salva, e a outra a ser arrancada, rumo ao necrotério. Dessas recordações, que já haviam marcado o delírio final de Angústia (publicado 1936, com Graciliano preso), nasceram O Relógio do Hospital e Paulo.

Mas quem diria que o convalescente daquela cirurgia seria nomeado, em janeiro de 1933, diretor da Instrução Pública de Alagoas e conseguiria colocar na escola, ao lado de 200 alunos de famílias mais arranjadas, 600 crianças pobres, além de vesti-las e calçá-las? E que tal atitude e outras semelhantes o levariam à prisão do Estado Novo, num tempo de insônia no qual recordaria os uivos das crianças abandonadas e lhes daria voz? 

Graças ao tradutor argentino Benjamin de Garay, O Relógio do Hospital foi publicado inicialmente em La Prensa, de Buenos Aires, em outubro de 1937, com ilustração de Miguel Petrone. Representando o rosto de um homem, os olhos fechados e entrevado em meio a um lençol branco e ao mecanismo circular de um relógio, a ilustração agradou a Graciliano. No conto, a subjetividade do narrador, presa à dimensão insone do tempo, pulsante de dor no hospital, funde, na imagem do mecanismo velho e emperrado do relógio, o “maquinismo arruinado” de seu corpo e do mundo doente. 

Recurso criativo de Insônia, sobressai a representação de momentos cruciais do presente os quais levam o narrador a evocar cenas da infância marcadas por um impasse entre insuficiência e brecha de lirismo. Numa associação insólita, as “pancadas fanhosas” do relógio lembram as broncas “encatarroadas” recebidas do avô nas aulas de cartilha: “Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz autoritária e nasal, costumada a arengar aos pretos da fazenda, em ordens ásperas que um pigarro interrompia.” Eis que novamente aqui a arte de Graciliano configura, na mesma imagem do relógio do hospital, uma dimensão subjetiva e uma social: o tempo arrastado do doente, o do menino estigmatizado e o dos explorados, os descendentes de escravos. O atraso ou a paralisia do relógio falam da história de violência do país de origem escravocrata e da trajetória pessoal de opressão do menino, sufocado pelo medo. Ao mesmo tempo, o leitor do Aliás, recordando-se do capítulo Os Astrônomos, de Infância, conhece o potencial libertador da aprendizagem da leitura.

Coletânea anterior, Dois Dedos reuniu em 1945, com ilustrações de Axl de Leskoschek: O Relógio do Hospital, Paulo, A Prisão de J. Carmo Gomes, Silveira Pereira, Um Pobre-diabo, Ciúmes, Minsk, Insônia, Um Ladrão. Com o acréscimo de Luciana, A Testemunha e Uma Visita, Insônia pede leitura. 

CLUBE DO LIVRO VELHO GRAÇA DEBATE ‘INSÔNIA’ Livraria da Vila. R. Fradique Coutinho, 915. 2ª feira, 16/4, 19h. Grátis. Com Ricardo Ramos Filho. *Ieda Lebensztayn é crítica literária, com pós-doutorado na USP. Autora de 'Graciliano Ramos e a Novidade: O Astrônomo do Inferno e os Meninos Impossíveis' 

“Que desgraça estará sucedendo? Deixo cair os braços, os uivos lastimosos da criança recomeçam, as minhas dores crescem, dão-me a certeza de que os médicos atormentam um pequenino infeliz. Penso nos vagabundos miúdos que circulam nas ruas, pedindo e furtando, sujos, esfrangalhados, os ossos furando a pele, meio comidos pela verminose.”A angústia aflige quem sabe que há uma desgraça em curso. Não bastasse estar num leito de hospital, ecoam uivos de um pequeno enfermo a evocar as dores de todas as crianças abandonadas na rua. A capacidade de mergulhar na própria dor, de encontrar a do outro, de enxergar a de muitos semelhantes, impossibilitados de expressão, e de criar uma forma para transmiti-las resulta em insônia e em arte. Insônia é o título do volume de contos publicado pela José Olympio no qual Graciliano Ramos nos oferece O Relógio do Hospital, fonte do excerto que abre este ensaio. 

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O conto traz dias de tormento como os vividos pelo autor em 1932, quando passou por uma operação de psoíte, depois de haver escrito, febril, o essencial capítulo 19 de S. Bernardo. E interessa saber que a sensação de nevoeiro existencial e social do conto, feita de agonia e consciência, entre delírio e agudez, se impôs e tomou forma literária na Sala da Capela da Casa de Correção em julho de 1936, conforme Graciliano conta em Memórias do Cárcere. Na prisão, reviveu o desespero do hospital, em que à dor física da ferida se somavam as preocupações com o pagamento da cirurgia e do tratamento, com o desemprego, com os filhos a sustentar. Se o cárcere o mortifica com o sentimento de inação e impotência, repõe-lhe impressões do hospital, como a do relógio sufocante e a do corpo dividido, com uma parte boa, a ser salva, e a outra a ser arrancada, rumo ao necrotério. Dessas recordações, que já haviam marcado o delírio final de Angústia (publicado 1936, com Graciliano preso), nasceram O Relógio do Hospital e Paulo.

Mas quem diria que o convalescente daquela cirurgia seria nomeado, em janeiro de 1933, diretor da Instrução Pública de Alagoas e conseguiria colocar na escola, ao lado de 200 alunos de famílias mais arranjadas, 600 crianças pobres, além de vesti-las e calçá-las? E que tal atitude e outras semelhantes o levariam à prisão do Estado Novo, num tempo de insônia no qual recordaria os uivos das crianças abandonadas e lhes daria voz? 

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Recurso criativo de Insônia, sobressai a representação de momentos cruciais do presente os quais levam o narrador a evocar cenas da infância marcadas por um impasse entre insuficiência e brecha de lirismo. Numa associação insólita, as “pancadas fanhosas” do relógio lembram as broncas “encatarroadas” recebidas do avô nas aulas de cartilha: “Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz autoritária e nasal, costumada a arengar aos pretos da fazenda, em ordens ásperas que um pigarro interrompia.” Eis que novamente aqui a arte de Graciliano configura, na mesma imagem do relógio do hospital, uma dimensão subjetiva e uma social: o tempo arrastado do doente, o do menino estigmatizado e o dos explorados, os descendentes de escravos. O atraso ou a paralisia do relógio falam da história de violência do país de origem escravocrata e da trajetória pessoal de opressão do menino, sufocado pelo medo. Ao mesmo tempo, o leitor do Aliás, recordando-se do capítulo Os Astrônomos, de Infância, conhece o potencial libertador da aprendizagem da leitura.

Coletânea anterior, Dois Dedos reuniu em 1945, com ilustrações de Axl de Leskoschek: O Relógio do Hospital, Paulo, A Prisão de J. Carmo Gomes, Silveira Pereira, Um Pobre-diabo, Ciúmes, Minsk, Insônia, Um Ladrão. Com o acréscimo de Luciana, A Testemunha e Uma Visita, Insônia pede leitura. 

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