Reviravoltas


Os grandes rebeldes viveram de forma radical, porque eram... radicais. Eles iam até a raiz das coisas

Por Leandro Karnal
Atualização:

Ponto! Já passou o grosso do entusiasmo do Ano-Novo. A vida entrou no eixo. Boletos voltaram à sua marcha vitoriosa. As metas e promessas já cumpriram seu papel opioide. Entramos no mundo real.

Antigamente, era depois do carnaval. O mundo se acelerou, e a vida segue sempre. O novo normal pós-tudo é “ligado no 220″.

Sim, de vez em quando temos aquela vontade de ir para Pasárgada. O poeta Manuel Bandeira imaginou um espaço de liberdade sexual, contraceptivos eficazes e até alucinógenos. Nós, que não somos poetas, temos utopias mais modestas.

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Mais do que nossos desejos comportados, houve reviravoltas notáveis. Darei dois exemplos. Ludwig Wittgenstein nasceu em Viena, em 1889. Pertencia a uma família de judeus convertidos ao cristianismo. Seus pais eram ricos, bem-educados e cosmopolitas. Inquieto, um pouco melancólico, o brilhante Ludwig assistiu a aulas com Bertrand Russell, em Cambridge, Inglaterra. Sair do seu mundo, para o ambiente universitário inglês, já foi um salto. Perto do começo da Grande Guerra, houve nova inquietação, e o jovem foi para um lugar remoto na Noruega. Durante o conflito, ele se tornou soldado do Império Austro-húngaro e foi condecorado. Ao fim, estava em crise. Seu novo livro, o Tractatus Logico-Philosophicus não recebeu a acolhida triunfal que ele imaginara. Nova virada: Ludwig decidiu tornar-se professor primário. Tinha abdicado da herança paterna. Chegou a ser jardineiro em um monastério. Por fim, foi para o universo rural austríaco e começou a tentar despertar seus alunos para o mundo sofisticado do saber. Nem todos atenderam com velocidade ao chamado do filósofo. Em abril de 1926, um aluno menos veloz recebeu punição física de Wittgenstein. O episódio passou à biografia como “incidente Haidbauer”. Após algumas batidas na cabeça do menino de 11 anos, a criança desmaiou. O professor quase foi preso. A paciência do grande intelectual era para leituras e pesquisa, mas pouco se comunicava com a tolerância épica que se demanda, até hoje, de alguém que ensina alunos no Fundamental.

Até o fim da vida, Wittgenstein continuou mudando e buscando. Morreu como cidadão britânico, em 1951.

Outro exemplo mais radical de reviravoltas foi o do poeta francês Arthur Rimbaud. Aluno brilhante e escritor precoce, o jovem impactou intelectuais de Paris. O poeta Verlaine, dez anos mais velho, casado e com filho, apaixonou-se pelo enfant terrible Rimbaud. O caso foi um escândalo. Os dois amantes, em Londres, viveram em pobreza e em leituras. Verlaine chegou a ser preso.

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Após uma temporada de escritos poderosos, Rimbaud passou a viajar pela Europa. Foi voluntário do exército colonial holandês na Indonésia, viajou para a ilha de Chipre, morou em Áden, no Iêmen, percorreu a Etiópia e ajeitou-se, vendendo café e armas... Na prática, até a sua morte em 1891, deixou de fazer versos ou publicar. O poeta precoce, amante de autor conhecido, soldado, comerciante e traficante fechou os olhos definitivamente aos 37 anos. Seus versos continuam impactando muitos autores.

Sim, querida leitora e estimado leitor, nossa vida é mais linear. Não temos o brilho de Wittgenstein ou a inspiração de Rimbaud. Na verdade, não posso deduzir pelas leitoras e pelos leitores, digo apenas de mim: não sou um gênio filosófico ou poético. Quando eu penso em quebrar um pouco a rotina, imagino um mês de férias longe. Não chego a supor uma escola rural austríaca ou traficar armas no Oriente Médio.

O que nos prende às nossas rotinas em 2023 é também o que explica nossa importância menor. É melhor ler Rimbaud. Talvez seja mais tranquila a amizade com você, delicada leitora ou zeloso leitor. Os grandes rebeldes deram reviravoltas nas suas biografias, de forma radical, porque eram... radicais. Eles iam até a raiz das coisas e experimentavam coisas que nós, pessoas comuns, nem sequer supomos possíveis ou imagináveis.

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Rimbaud talvez tenha lutado na Comuna de Paris, talvez tenha sido estuprado por soldados. Viveu na quase miséria em Londres, amou Verlaine e, depois, uma moça da Etiópia. Estabeleceu poucos limites e foi a “vida loca” de verdade, algo que, para nós, é uma música do grupo Black Eyed Peas ou uma versão mais pop de Ricky Martin.

Mesmo assim, leio – com zelo e algumas transferências psíquicas – a biografia de Wittgenstein e de Rimbaud.

E... o que nos resta? Em Porto Alegre, vendo que um restaurante tinha o nome do verso de Rimbaud, Le Bateau Ivre (o barco bêbado), fui jantar lá. Com hora marcada, arrumados e bem-dispostos, comemos à beça, apreciando vinhos da região natal do poeta. Cônscio de que o autor abominaria aquele pequeno convescote burguês organizado por mim, relembrei os versos iniciais da obra.

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Paciência... É preciso existir gente alternativa para que clientes enquadrados consumam. Sem o contramodelo da classe média, o hippie nunca existiria. O enfant terrible precisa de lares organizados e religiosos. Um ponto para o lado das pessoas comuns: nós admiramos rebeldes, mas esse afeto não foi retribuído dos rebeldes para nós. Esperança? l

Ponto! Já passou o grosso do entusiasmo do Ano-Novo. A vida entrou no eixo. Boletos voltaram à sua marcha vitoriosa. As metas e promessas já cumpriram seu papel opioide. Entramos no mundo real.

Antigamente, era depois do carnaval. O mundo se acelerou, e a vida segue sempre. O novo normal pós-tudo é “ligado no 220″.

Sim, de vez em quando temos aquela vontade de ir para Pasárgada. O poeta Manuel Bandeira imaginou um espaço de liberdade sexual, contraceptivos eficazes e até alucinógenos. Nós, que não somos poetas, temos utopias mais modestas.

Mais do que nossos desejos comportados, houve reviravoltas notáveis. Darei dois exemplos. Ludwig Wittgenstein nasceu em Viena, em 1889. Pertencia a uma família de judeus convertidos ao cristianismo. Seus pais eram ricos, bem-educados e cosmopolitas. Inquieto, um pouco melancólico, o brilhante Ludwig assistiu a aulas com Bertrand Russell, em Cambridge, Inglaterra. Sair do seu mundo, para o ambiente universitário inglês, já foi um salto. Perto do começo da Grande Guerra, houve nova inquietação, e o jovem foi para um lugar remoto na Noruega. Durante o conflito, ele se tornou soldado do Império Austro-húngaro e foi condecorado. Ao fim, estava em crise. Seu novo livro, o Tractatus Logico-Philosophicus não recebeu a acolhida triunfal que ele imaginara. Nova virada: Ludwig decidiu tornar-se professor primário. Tinha abdicado da herança paterna. Chegou a ser jardineiro em um monastério. Por fim, foi para o universo rural austríaco e começou a tentar despertar seus alunos para o mundo sofisticado do saber. Nem todos atenderam com velocidade ao chamado do filósofo. Em abril de 1926, um aluno menos veloz recebeu punição física de Wittgenstein. O episódio passou à biografia como “incidente Haidbauer”. Após algumas batidas na cabeça do menino de 11 anos, a criança desmaiou. O professor quase foi preso. A paciência do grande intelectual era para leituras e pesquisa, mas pouco se comunicava com a tolerância épica que se demanda, até hoje, de alguém que ensina alunos no Fundamental.

Até o fim da vida, Wittgenstein continuou mudando e buscando. Morreu como cidadão britânico, em 1951.

Outro exemplo mais radical de reviravoltas foi o do poeta francês Arthur Rimbaud. Aluno brilhante e escritor precoce, o jovem impactou intelectuais de Paris. O poeta Verlaine, dez anos mais velho, casado e com filho, apaixonou-se pelo enfant terrible Rimbaud. O caso foi um escândalo. Os dois amantes, em Londres, viveram em pobreza e em leituras. Verlaine chegou a ser preso.

Após uma temporada de escritos poderosos, Rimbaud passou a viajar pela Europa. Foi voluntário do exército colonial holandês na Indonésia, viajou para a ilha de Chipre, morou em Áden, no Iêmen, percorreu a Etiópia e ajeitou-se, vendendo café e armas... Na prática, até a sua morte em 1891, deixou de fazer versos ou publicar. O poeta precoce, amante de autor conhecido, soldado, comerciante e traficante fechou os olhos definitivamente aos 37 anos. Seus versos continuam impactando muitos autores.

Sim, querida leitora e estimado leitor, nossa vida é mais linear. Não temos o brilho de Wittgenstein ou a inspiração de Rimbaud. Na verdade, não posso deduzir pelas leitoras e pelos leitores, digo apenas de mim: não sou um gênio filosófico ou poético. Quando eu penso em quebrar um pouco a rotina, imagino um mês de férias longe. Não chego a supor uma escola rural austríaca ou traficar armas no Oriente Médio.

O que nos prende às nossas rotinas em 2023 é também o que explica nossa importância menor. É melhor ler Rimbaud. Talvez seja mais tranquila a amizade com você, delicada leitora ou zeloso leitor. Os grandes rebeldes deram reviravoltas nas suas biografias, de forma radical, porque eram... radicais. Eles iam até a raiz das coisas e experimentavam coisas que nós, pessoas comuns, nem sequer supomos possíveis ou imagináveis.

Rimbaud talvez tenha lutado na Comuna de Paris, talvez tenha sido estuprado por soldados. Viveu na quase miséria em Londres, amou Verlaine e, depois, uma moça da Etiópia. Estabeleceu poucos limites e foi a “vida loca” de verdade, algo que, para nós, é uma música do grupo Black Eyed Peas ou uma versão mais pop de Ricky Martin.

Mesmo assim, leio – com zelo e algumas transferências psíquicas – a biografia de Wittgenstein e de Rimbaud.

E... o que nos resta? Em Porto Alegre, vendo que um restaurante tinha o nome do verso de Rimbaud, Le Bateau Ivre (o barco bêbado), fui jantar lá. Com hora marcada, arrumados e bem-dispostos, comemos à beça, apreciando vinhos da região natal do poeta. Cônscio de que o autor abominaria aquele pequeno convescote burguês organizado por mim, relembrei os versos iniciais da obra.

Paciência... É preciso existir gente alternativa para que clientes enquadrados consumam. Sem o contramodelo da classe média, o hippie nunca existiria. O enfant terrible precisa de lares organizados e religiosos. Um ponto para o lado das pessoas comuns: nós admiramos rebeldes, mas esse afeto não foi retribuído dos rebeldes para nós. Esperança? l

Ponto! Já passou o grosso do entusiasmo do Ano-Novo. A vida entrou no eixo. Boletos voltaram à sua marcha vitoriosa. As metas e promessas já cumpriram seu papel opioide. Entramos no mundo real.

Antigamente, era depois do carnaval. O mundo se acelerou, e a vida segue sempre. O novo normal pós-tudo é “ligado no 220″.

Sim, de vez em quando temos aquela vontade de ir para Pasárgada. O poeta Manuel Bandeira imaginou um espaço de liberdade sexual, contraceptivos eficazes e até alucinógenos. Nós, que não somos poetas, temos utopias mais modestas.

Mais do que nossos desejos comportados, houve reviravoltas notáveis. Darei dois exemplos. Ludwig Wittgenstein nasceu em Viena, em 1889. Pertencia a uma família de judeus convertidos ao cristianismo. Seus pais eram ricos, bem-educados e cosmopolitas. Inquieto, um pouco melancólico, o brilhante Ludwig assistiu a aulas com Bertrand Russell, em Cambridge, Inglaterra. Sair do seu mundo, para o ambiente universitário inglês, já foi um salto. Perto do começo da Grande Guerra, houve nova inquietação, e o jovem foi para um lugar remoto na Noruega. Durante o conflito, ele se tornou soldado do Império Austro-húngaro e foi condecorado. Ao fim, estava em crise. Seu novo livro, o Tractatus Logico-Philosophicus não recebeu a acolhida triunfal que ele imaginara. Nova virada: Ludwig decidiu tornar-se professor primário. Tinha abdicado da herança paterna. Chegou a ser jardineiro em um monastério. Por fim, foi para o universo rural austríaco e começou a tentar despertar seus alunos para o mundo sofisticado do saber. Nem todos atenderam com velocidade ao chamado do filósofo. Em abril de 1926, um aluno menos veloz recebeu punição física de Wittgenstein. O episódio passou à biografia como “incidente Haidbauer”. Após algumas batidas na cabeça do menino de 11 anos, a criança desmaiou. O professor quase foi preso. A paciência do grande intelectual era para leituras e pesquisa, mas pouco se comunicava com a tolerância épica que se demanda, até hoje, de alguém que ensina alunos no Fundamental.

Até o fim da vida, Wittgenstein continuou mudando e buscando. Morreu como cidadão britânico, em 1951.

Outro exemplo mais radical de reviravoltas foi o do poeta francês Arthur Rimbaud. Aluno brilhante e escritor precoce, o jovem impactou intelectuais de Paris. O poeta Verlaine, dez anos mais velho, casado e com filho, apaixonou-se pelo enfant terrible Rimbaud. O caso foi um escândalo. Os dois amantes, em Londres, viveram em pobreza e em leituras. Verlaine chegou a ser preso.

Após uma temporada de escritos poderosos, Rimbaud passou a viajar pela Europa. Foi voluntário do exército colonial holandês na Indonésia, viajou para a ilha de Chipre, morou em Áden, no Iêmen, percorreu a Etiópia e ajeitou-se, vendendo café e armas... Na prática, até a sua morte em 1891, deixou de fazer versos ou publicar. O poeta precoce, amante de autor conhecido, soldado, comerciante e traficante fechou os olhos definitivamente aos 37 anos. Seus versos continuam impactando muitos autores.

Sim, querida leitora e estimado leitor, nossa vida é mais linear. Não temos o brilho de Wittgenstein ou a inspiração de Rimbaud. Na verdade, não posso deduzir pelas leitoras e pelos leitores, digo apenas de mim: não sou um gênio filosófico ou poético. Quando eu penso em quebrar um pouco a rotina, imagino um mês de férias longe. Não chego a supor uma escola rural austríaca ou traficar armas no Oriente Médio.

O que nos prende às nossas rotinas em 2023 é também o que explica nossa importância menor. É melhor ler Rimbaud. Talvez seja mais tranquila a amizade com você, delicada leitora ou zeloso leitor. Os grandes rebeldes deram reviravoltas nas suas biografias, de forma radical, porque eram... radicais. Eles iam até a raiz das coisas e experimentavam coisas que nós, pessoas comuns, nem sequer supomos possíveis ou imagináveis.

Rimbaud talvez tenha lutado na Comuna de Paris, talvez tenha sido estuprado por soldados. Viveu na quase miséria em Londres, amou Verlaine e, depois, uma moça da Etiópia. Estabeleceu poucos limites e foi a “vida loca” de verdade, algo que, para nós, é uma música do grupo Black Eyed Peas ou uma versão mais pop de Ricky Martin.

Mesmo assim, leio – com zelo e algumas transferências psíquicas – a biografia de Wittgenstein e de Rimbaud.

E... o que nos resta? Em Porto Alegre, vendo que um restaurante tinha o nome do verso de Rimbaud, Le Bateau Ivre (o barco bêbado), fui jantar lá. Com hora marcada, arrumados e bem-dispostos, comemos à beça, apreciando vinhos da região natal do poeta. Cônscio de que o autor abominaria aquele pequeno convescote burguês organizado por mim, relembrei os versos iniciais da obra.

Paciência... É preciso existir gente alternativa para que clientes enquadrados consumam. Sem o contramodelo da classe média, o hippie nunca existiria. O enfant terrible precisa de lares organizados e religiosos. Um ponto para o lado das pessoas comuns: nós admiramos rebeldes, mas esse afeto não foi retribuído dos rebeldes para nós. Esperança? l

Ponto! Já passou o grosso do entusiasmo do Ano-Novo. A vida entrou no eixo. Boletos voltaram à sua marcha vitoriosa. As metas e promessas já cumpriram seu papel opioide. Entramos no mundo real.

Antigamente, era depois do carnaval. O mundo se acelerou, e a vida segue sempre. O novo normal pós-tudo é “ligado no 220″.

Sim, de vez em quando temos aquela vontade de ir para Pasárgada. O poeta Manuel Bandeira imaginou um espaço de liberdade sexual, contraceptivos eficazes e até alucinógenos. Nós, que não somos poetas, temos utopias mais modestas.

Mais do que nossos desejos comportados, houve reviravoltas notáveis. Darei dois exemplos. Ludwig Wittgenstein nasceu em Viena, em 1889. Pertencia a uma família de judeus convertidos ao cristianismo. Seus pais eram ricos, bem-educados e cosmopolitas. Inquieto, um pouco melancólico, o brilhante Ludwig assistiu a aulas com Bertrand Russell, em Cambridge, Inglaterra. Sair do seu mundo, para o ambiente universitário inglês, já foi um salto. Perto do começo da Grande Guerra, houve nova inquietação, e o jovem foi para um lugar remoto na Noruega. Durante o conflito, ele se tornou soldado do Império Austro-húngaro e foi condecorado. Ao fim, estava em crise. Seu novo livro, o Tractatus Logico-Philosophicus não recebeu a acolhida triunfal que ele imaginara. Nova virada: Ludwig decidiu tornar-se professor primário. Tinha abdicado da herança paterna. Chegou a ser jardineiro em um monastério. Por fim, foi para o universo rural austríaco e começou a tentar despertar seus alunos para o mundo sofisticado do saber. Nem todos atenderam com velocidade ao chamado do filósofo. Em abril de 1926, um aluno menos veloz recebeu punição física de Wittgenstein. O episódio passou à biografia como “incidente Haidbauer”. Após algumas batidas na cabeça do menino de 11 anos, a criança desmaiou. O professor quase foi preso. A paciência do grande intelectual era para leituras e pesquisa, mas pouco se comunicava com a tolerância épica que se demanda, até hoje, de alguém que ensina alunos no Fundamental.

Até o fim da vida, Wittgenstein continuou mudando e buscando. Morreu como cidadão britânico, em 1951.

Outro exemplo mais radical de reviravoltas foi o do poeta francês Arthur Rimbaud. Aluno brilhante e escritor precoce, o jovem impactou intelectuais de Paris. O poeta Verlaine, dez anos mais velho, casado e com filho, apaixonou-se pelo enfant terrible Rimbaud. O caso foi um escândalo. Os dois amantes, em Londres, viveram em pobreza e em leituras. Verlaine chegou a ser preso.

Após uma temporada de escritos poderosos, Rimbaud passou a viajar pela Europa. Foi voluntário do exército colonial holandês na Indonésia, viajou para a ilha de Chipre, morou em Áden, no Iêmen, percorreu a Etiópia e ajeitou-se, vendendo café e armas... Na prática, até a sua morte em 1891, deixou de fazer versos ou publicar. O poeta precoce, amante de autor conhecido, soldado, comerciante e traficante fechou os olhos definitivamente aos 37 anos. Seus versos continuam impactando muitos autores.

Sim, querida leitora e estimado leitor, nossa vida é mais linear. Não temos o brilho de Wittgenstein ou a inspiração de Rimbaud. Na verdade, não posso deduzir pelas leitoras e pelos leitores, digo apenas de mim: não sou um gênio filosófico ou poético. Quando eu penso em quebrar um pouco a rotina, imagino um mês de férias longe. Não chego a supor uma escola rural austríaca ou traficar armas no Oriente Médio.

O que nos prende às nossas rotinas em 2023 é também o que explica nossa importância menor. É melhor ler Rimbaud. Talvez seja mais tranquila a amizade com você, delicada leitora ou zeloso leitor. Os grandes rebeldes deram reviravoltas nas suas biografias, de forma radical, porque eram... radicais. Eles iam até a raiz das coisas e experimentavam coisas que nós, pessoas comuns, nem sequer supomos possíveis ou imagináveis.

Rimbaud talvez tenha lutado na Comuna de Paris, talvez tenha sido estuprado por soldados. Viveu na quase miséria em Londres, amou Verlaine e, depois, uma moça da Etiópia. Estabeleceu poucos limites e foi a “vida loca” de verdade, algo que, para nós, é uma música do grupo Black Eyed Peas ou uma versão mais pop de Ricky Martin.

Mesmo assim, leio – com zelo e algumas transferências psíquicas – a biografia de Wittgenstein e de Rimbaud.

E... o que nos resta? Em Porto Alegre, vendo que um restaurante tinha o nome do verso de Rimbaud, Le Bateau Ivre (o barco bêbado), fui jantar lá. Com hora marcada, arrumados e bem-dispostos, comemos à beça, apreciando vinhos da região natal do poeta. Cônscio de que o autor abominaria aquele pequeno convescote burguês organizado por mim, relembrei os versos iniciais da obra.

Paciência... É preciso existir gente alternativa para que clientes enquadrados consumam. Sem o contramodelo da classe média, o hippie nunca existiria. O enfant terrible precisa de lares organizados e religiosos. Um ponto para o lado das pessoas comuns: nós admiramos rebeldes, mas esse afeto não foi retribuído dos rebeldes para nós. Esperança? l

Ponto! Já passou o grosso do entusiasmo do Ano-Novo. A vida entrou no eixo. Boletos voltaram à sua marcha vitoriosa. As metas e promessas já cumpriram seu papel opioide. Entramos no mundo real.

Antigamente, era depois do carnaval. O mundo se acelerou, e a vida segue sempre. O novo normal pós-tudo é “ligado no 220″.

Sim, de vez em quando temos aquela vontade de ir para Pasárgada. O poeta Manuel Bandeira imaginou um espaço de liberdade sexual, contraceptivos eficazes e até alucinógenos. Nós, que não somos poetas, temos utopias mais modestas.

Mais do que nossos desejos comportados, houve reviravoltas notáveis. Darei dois exemplos. Ludwig Wittgenstein nasceu em Viena, em 1889. Pertencia a uma família de judeus convertidos ao cristianismo. Seus pais eram ricos, bem-educados e cosmopolitas. Inquieto, um pouco melancólico, o brilhante Ludwig assistiu a aulas com Bertrand Russell, em Cambridge, Inglaterra. Sair do seu mundo, para o ambiente universitário inglês, já foi um salto. Perto do começo da Grande Guerra, houve nova inquietação, e o jovem foi para um lugar remoto na Noruega. Durante o conflito, ele se tornou soldado do Império Austro-húngaro e foi condecorado. Ao fim, estava em crise. Seu novo livro, o Tractatus Logico-Philosophicus não recebeu a acolhida triunfal que ele imaginara. Nova virada: Ludwig decidiu tornar-se professor primário. Tinha abdicado da herança paterna. Chegou a ser jardineiro em um monastério. Por fim, foi para o universo rural austríaco e começou a tentar despertar seus alunos para o mundo sofisticado do saber. Nem todos atenderam com velocidade ao chamado do filósofo. Em abril de 1926, um aluno menos veloz recebeu punição física de Wittgenstein. O episódio passou à biografia como “incidente Haidbauer”. Após algumas batidas na cabeça do menino de 11 anos, a criança desmaiou. O professor quase foi preso. A paciência do grande intelectual era para leituras e pesquisa, mas pouco se comunicava com a tolerância épica que se demanda, até hoje, de alguém que ensina alunos no Fundamental.

Até o fim da vida, Wittgenstein continuou mudando e buscando. Morreu como cidadão britânico, em 1951.

Outro exemplo mais radical de reviravoltas foi o do poeta francês Arthur Rimbaud. Aluno brilhante e escritor precoce, o jovem impactou intelectuais de Paris. O poeta Verlaine, dez anos mais velho, casado e com filho, apaixonou-se pelo enfant terrible Rimbaud. O caso foi um escândalo. Os dois amantes, em Londres, viveram em pobreza e em leituras. Verlaine chegou a ser preso.

Após uma temporada de escritos poderosos, Rimbaud passou a viajar pela Europa. Foi voluntário do exército colonial holandês na Indonésia, viajou para a ilha de Chipre, morou em Áden, no Iêmen, percorreu a Etiópia e ajeitou-se, vendendo café e armas... Na prática, até a sua morte em 1891, deixou de fazer versos ou publicar. O poeta precoce, amante de autor conhecido, soldado, comerciante e traficante fechou os olhos definitivamente aos 37 anos. Seus versos continuam impactando muitos autores.

Sim, querida leitora e estimado leitor, nossa vida é mais linear. Não temos o brilho de Wittgenstein ou a inspiração de Rimbaud. Na verdade, não posso deduzir pelas leitoras e pelos leitores, digo apenas de mim: não sou um gênio filosófico ou poético. Quando eu penso em quebrar um pouco a rotina, imagino um mês de férias longe. Não chego a supor uma escola rural austríaca ou traficar armas no Oriente Médio.

O que nos prende às nossas rotinas em 2023 é também o que explica nossa importância menor. É melhor ler Rimbaud. Talvez seja mais tranquila a amizade com você, delicada leitora ou zeloso leitor. Os grandes rebeldes deram reviravoltas nas suas biografias, de forma radical, porque eram... radicais. Eles iam até a raiz das coisas e experimentavam coisas que nós, pessoas comuns, nem sequer supomos possíveis ou imagináveis.

Rimbaud talvez tenha lutado na Comuna de Paris, talvez tenha sido estuprado por soldados. Viveu na quase miséria em Londres, amou Verlaine e, depois, uma moça da Etiópia. Estabeleceu poucos limites e foi a “vida loca” de verdade, algo que, para nós, é uma música do grupo Black Eyed Peas ou uma versão mais pop de Ricky Martin.

Mesmo assim, leio – com zelo e algumas transferências psíquicas – a biografia de Wittgenstein e de Rimbaud.

E... o que nos resta? Em Porto Alegre, vendo que um restaurante tinha o nome do verso de Rimbaud, Le Bateau Ivre (o barco bêbado), fui jantar lá. Com hora marcada, arrumados e bem-dispostos, comemos à beça, apreciando vinhos da região natal do poeta. Cônscio de que o autor abominaria aquele pequeno convescote burguês organizado por mim, relembrei os versos iniciais da obra.

Paciência... É preciso existir gente alternativa para que clientes enquadrados consumam. Sem o contramodelo da classe média, o hippie nunca existiria. O enfant terrible precisa de lares organizados e religiosos. Um ponto para o lado das pessoas comuns: nós admiramos rebeldes, mas esse afeto não foi retribuído dos rebeldes para nós. Esperança? l

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