É de se imaginar o sucesso que Jacinta faria em Lisboa com Andréa Beltrão e todo um excelente elenco brasileiro a falar na prosódia de Portugal. O espetáculo, divertidíssimo, é também homenagem ao tempo em que o Brasil, até as primeiras décadas do século 20, acolhia em triunfo as companhias lusas com famosos comediantes e trágicos: Adelina Abranches, Palmira Bastos, Chaby Pinheiro, Eduardo Brasão e outros.
Se não foram retiradas, há ainda no saguão do Teatro Municipal de São Paulo e no São Pedro, de Porto Alegre, placas alusivas à passagem de Palmira Bastos pelos palcos nacionais. Da mesma maneira, os portugueses recebiam com honras o fluminense Leopoldo Fróes. Nem tudo acabou, embora tenha diminuído drasticamente o intercâmbio de séculos passados. Ainda recebemos Maria do Céu Guerra, Eunice Muñoz e Maria de Medeiros (atualmente em cartaz e atuando em “brasileiro” em Aos Nossos Filhos) e, de vez em quando, intérpretes, sobretudo de telenovelas, ganham aplausos à beira Tejo.
Essa evocação pretende situar Jacinta na vertente do teatro popular ibérico, que tem marcas na formação da comédia tropical. Uma peça com um olho no riso e outro na melancolia e na crítica social. Ecos de autos populares do século 16 com suas pantomimas, danças e artes de “maldizer” com estilos de nomes graciosos: “brincas”, “cegadas” e “chacotas”. Tempos de Gil Vicente, que se tornou imortal, mas também de um ex-frade que deu o que falar com seus escritos ferinos e hoje é nome de um largo no coração de Lisboa, o Antonio Ribeiro Chiado, o autor de Auto das Regateiras.
O dramaturgo Newton Moreno, que sabe captar universos rústicos guardando deles imagens essências, como na peça Agreste, ambientada em um Nordeste mais de sentimentos interiores, agora aborda os primórdios da cena quinhentista em uma comédia sobre os artistas das estradas, saltimbancos sem teto nem dias certos, dentre eles certa Jacinta, que se apresenta a dizer: “Já comi fome com o vento, provei fome com farinha, sopa de fome no orvalho”.
Há algo de misterioso e trágico nesse enredo que o autor apresenta como uma declaração de amor ao teatro. Nunca se saberá o que moveu essa gente ao longo dos tempos a não ser fantasia e necessidade andarilha de mergulhar na delicadeza e violência de um ofício que desperta encanto e desconfiança, desde sempre.
O enredo é centrado na loucura mansa ou genialidade às avessas de Jacinta, expulsa de Portugal por ser tão má atriz que causou a morte da rainha por desgosto. Desembarcada por aqui, continua a se achar boa intérprete, ora a estranhar, ora a aderir aos costumes da terra que “tem palmeiras, sabiás, mulatas ainda não”. O que se segue é uma paródia hilariante de desencontros culturais, manias da atriz na sua absoluta incapacidade de se abater e, igualmente, se render. É uma figura de teatro de mamulengo com a convicção e o desvario dos palhaços e dos místicos. Jacinta tem algo da devota e de Cabíria. Seria uma figura triste não fosse o imenso talento de Andréa Beltrão. Há algo de abusado, doce e comovente na sua criação dessa Jacinta (é o nome de um dos pastores aos quais N.S.ª de Fátima teria aparecido, segundo a crença católica). Façanha brilhante, uma carioca representar longamente como se fosse uma lisboeta (empate com Maria de Medeiros).
A montagem cria uma novidade problemática para o original de Newton Moreno. O diretor Aderbal Freire-Filho transformou o enredo em uma comédia-rock com letras suas e do autor musicadas por Branco Mello e Emerson Villani, todas em tom provocativo e inteligentes achados verbais. O problema é a pouca qualidade de som do teatro. Perde-se bastante das letras e o musical acaba parcialmente em ruído. Há excesso de moldura sonora para um tema simples. Jacinta não é Eliza Doolittle ou Irma La Douce. As canções divertidas e agressivas poderiam talvez chegar ao público faladas sem o empastelamento nas caixas de som. Jacinta, porém, supera no que é possível os obstáculos por ter Andréa irresistível e os sensacionais atores Augusto Madeira, Gillray Coutinho, Isio Ghelman, José Mauro Brant, Rodrigo França. Conjunto de representação que faz de Jacinta uma antiguidade poética ou a poética explicação atual do que um dia foi teatro.
JACINTATeatro do Sesc Vila Mariana. Rua Pelotas, 141, telefone 5080-3000. Classificação: 12 anos. 6ª e sáb., às 21 h; dom., às 18 h. Ingressos de R$ 6,40 a R$ 32. Até 22/9.