Como a Escandinávia virou o centro da literatura policial hoje


Com o subgênero 'nordic noir', países como Suécia e Noruega alavancam a ficção policial contemporânea

Por Paulo Nogueira

Na literatura, o crime compensa? A prova A é conclusiva: o policial é o gênero ficcional mais lido em todo o mundo – e o mais adaptado para o cinema e a TV. Portanto, também o mais traduzido. Só as séries suecas de Lars Kepler (com uma dobradinha conjugal) e de Stieg Larsson/David Lagerkrantz (um dueto mediúnico) já venderam 80 milhões e lá vai pedrada de exemplares.  Mais: a evolução da “crime story” é uma súmula da literatura contemporânea. Começando pelo clássico investigador inglês de polainas, desmascarando o mordomo enquanto apara o gramado da sua cottage com uma pinça. Depois com o “hard-boiled” americano de Dashiell Hammet e Raymond Chandler, no qual o detetive particular é ele próprio um pária. Passando pelos nerds forenses tipo CSI, Patricia Cornwell e Kathy Reichs. E desembocando nos serial killers e respectivos profilers, cuja genealogia a série Mindhunters exuma e entroniza. Sem falar na fusão do policial com o histórico, com detetives na Roma Antiga (Lindsay Davis) e na Idade Média (Umberto Eco e Ellis Peters). E ainda o “noir regionalista”, como o catalão Pepe Carvalho (de Manuel Vásquez Montalban) e o siciliano Salvo Montalbano (de Andrea Camilleri). Incluindo, claro, o hoje tentacular nordic noir (me aguardem).

Rooney Mara interpreta Lisbeth Salander em 'Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres' (2011) Foto: BALDUR BRAGASON

Na acepção atual do termo, a polícia surgiu no século 19, e os romances policiais na garupa dela. Na maior parte da história humana, o crime foi considerado um perrengue entre indivíduos, que podia ser negociado e resolvido entre as partes lesadas. Por vezes, rolando um “olho por olho, dente por dente”. Com o advento do Poder Judiciário e da entidade do procurador, se sedimenta a ideia do delito como uma infração às leis do Estado – e do criminoso como um inimigo público. É sugestivo que o criador de uma das primeiras forças policiais modernas (a francesa Sûreté) tenha sido um criminoso/criminalista: Vidocq, cuja vida inspirou Hugo, Balzac, Poe e Conan Doyle.

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Para se avaliar o poder da ficção policial, basta dizer que, segundo pesquisa realizada em 2008 pela emissora UKTV Gold, 58% dos britânicos acreditam que Sherlock Holmes existiu de verdade. Em vida, Conan Doyle recebeu centenas de cartas a solicitar os serviços do personagem, brandindo fortunas como honorários. Se Sherlock é a quintessência da lógica, o doutor Watson corresponde à mais prosaica banalidade – como aqueles casais felizes cimentados pela atração dos opostos. Doyle acabou por odiar Sherlock e acabou com a raça dele. Mas a reação do público foi de histeria coletiva, com cortejos fúnebres nas ruas de Londres. Dez anos depois, Doyle ressuscitou Holmes. Hoje, o lar/museu de Sherlock (Baker Street, 21-B) é uma atração turística mais visitada do que o Big Ben e o Palácio de Buckingham juntos. 

Rezam as estatísticas que as mulheres não curtem policiais – mas pontificam entre os melhores autores do gênero. De Agatha Christie (que rivalizou com a Bíblia e vendeu 2 bilhões de exemplares até ontem) a P.D. James. Esta última é a minha favorita, autora do instrutivo Segredos do Romance Policial, mãe do inspetor-poeta Adam Dalgliesh, que cita Robert Browning sobre a ambivalência do mal: “Nosso interesse está no limiar perigoso das coisas. /O ladrão honesto, o assassino terno,/O ateu supersticioso.” Por outro lado, no policial clássico reinavam seja o feminicídio, seja a femme fatale (e a mulher era sempre suspeita: cherchez la femme!). Como a arte imita a vida, as coisas mudaram à beça: em Stalker, de Lars Kepler, a investigação é conduzida por uma inspetora lésbica e grávida da companheira. 

Mas será a “crime story” um gênero conservador? Depende. Em primeiro lugar, ela demonstra que a realidade não é tão estável quanto as instituições gostariam que a gente acreditasse. Mas um “final feliz” corresponde à ordem restaurada. Só que cada caso é um caso. Por exemplo: quem protagoniza a investigação: um membro da corporação policial que age oficialmente em nome da lei? Ou um diletante, com uma pegada idiossincrática (um detetive particular, um jornalista, uma hacker ou mesmo um hipnotista)? Para cúmulo, nas histórias policiais à quatro mãos de Jorge Luis Borges e Bioy Casares, o detetive dom Isidro Parodi resolve os enigmas a partir de uma cela de prisão, onde está confinado por um crime que não cometeu.

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Se ainda fosse necessário, a menção a Borges/Bioy vaporiza a baboseira de que o policial é um gênero pereba. Sim, existem autores policiais que parecem escrever por quilo, como Georges Simenon, autor de 192 romances, 158 novelas, memórias e uns trocentos contos – sem mencionar uma vasta obra com 27 pseudônimos diferentes. Um dia, Alfred Hitchcock ligou para a casa de Simenon e quem atendeu disse: “Desculpe, ele acabou de iniciar um novo romance...” E Hitch: “Ah, não faz mal – eu espero na linha.” E se o maior gênio da literatura em português (Fernando Pessoa) traduziu o primeiro policial americano (O Caso da Quinta Avenida), um poema do pai do gênero (O Corvo, de Poe) e com o heterônimo Alexander Sarah talhou pelo menos dois investigadores (o ex-sargento Willian Byng e Abilio Quaresma, “o raciocinador”) – bem, está de bom tamanho para mim. Ah, sem falar polonesa Olga Tokarczuk, recente prêmio Nobel de Literatura, com seu thriller Sobre os Ossos dos Mortos.

O nordic noir é o mais recente avatar do gênero, nascido na Escandinávia. Características: crimes brutais abalando comunidades seguras (o Estado do bem-estar social), cenário inóspito e austero (fiordes remotos ou vilarejos polares), protagonista atormentado (o detetive cujas vidas pessoal e profissional se sabotam reciprocamente), atmosfera mórbida e moralmente ambígua, títulos com as palavras “neve”, “frio”, “gelo” ou “inverno”, temas perturbadores como misoginia, estupro, racismo. 

A Noruega, por exemplo, feudo de Jo Nesbo, cujo inspetor Harry Hole já vendeu 30 milhões de exemplares em 40 idiomas. País em primeiro lugar mundial no Índice de Desenvolvimento Humano, mas também de Anders Breivik, que matou 77 adolescentes na ilha de Utoya em 2011. Dos 700 mil habitantes do centro de Oslo, 200 mil são imigrantes ou filhos de imigrantes. Não espanta que uma ex-ministra norueguesa da Justiça – Anne Holt – tenha virado uma prolífica escritora... policial.

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O pai do nordic noir é Stieg Larsson, com a trilogia Millennium, best-seller planetário e lida por 1 em cada 4 suecos. Larsson morreu de infarto em 2004, aos 49 anos, depois de subir sete lances de escada até à redação da sua revista (o elevador quebrara). Como completou só três dos dez romances planejados sobre a hacker Lisbeth Salander e o jornalista Mikail Blomkvist, em 2013 a editora Norstedts incumbiu David Lagercrantz de tocar o bonde daquela mina de ouro. Até então, o sujeito era conhecido pela biografia do jogador de futebol sueco Slatan Ibrahimovic. Mas deu conta do recado, alinhavando até agora três episódios da saga, o último dos quais é A Garota Marcada Para Morrer.

Logo de cara, uma dica das fissuras no éden escandinavo: “Hoje mal se caminhava cinquenta metros sem que alguém lhe pedisse algumas moedas. Ao longo das calçadas, do lado de fora das lojas, nos pontos de coleta de lixo reciclável e nas entradas do metrô, homens e mulheres mendigavam. Uma Estocolmo nova e arruinada tinha surgido, e num piscar de olhos todos se acostumaram. Esta é a triste verdade. O número de mendigos havia aumentado praticamente ao mesmo tempo que os holmienses pararam de andar com dinheiro em espécie no bolso, e assim como todo mundo ele tinha aprendido a desviar os olhos”. 

A hacker com o dragão tatuado continua botando para quebrar. Por estranho que pareça, Lisbeth foi inspirada numa personagem infantil, Pipi das Meias Longas, uma espécie de Mônica sueca, briguenta mas adorável. A nêmesis dela é sua irmã, com quem mantém uma relação tão fraternal quanto Caim e Abel. É um folhetim de esquerda (Stieg Larsson escreveu um livro sobre a extrema-direita sueca), mas sem aquele mantra tóxico de que os fins justificam os meios.

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Outro boa novidade do nordic noir é Stalker, quinto volume da série de Lars Kepler (pseudônimo de um casal, ele sueco, ela portuguesa). Também aqui rolam caneladas no paraíso escandinavo, que tem suas serpentes, nem que seja a monotonia igualitária da social-democracia: “Nunca ocorrera a Margot como somos todos tão parecidos uns com os outros. Visto através de uma janela, um amplo espectro de suecos amolda-se ao mesmo padrão, a ponto de se tornarem intercambiáveis. Olhando de fora, parece que vivemos exatamente da mesma maneira. Temos a mesma aparência, fazemos as mesmas coisas, possuímos os mesmos objetos”. 

Não se chora apenas de barriga cheia, mas também pelos cadáveres, que não tardarão a gorgolejar. Stalker escoa em parágrafos curtos e capítulos breves (nada menos que 130!), sempre no presente do indicativo. O passo é hipnótico como o seu protagonista Erik Maria Bark (o hipnotista do primeiro volume da série), cumprindo a judiciosa dica de Italo Calvino sobre o ritmo ficcional: “A boa prosa é como um cavalo que alterna o trote e o galope”. 

Enfim, não dá outra: muito do melhor da ficção contemporânea (literária, cinematográfica ou televisiva) é um verdadeiro caso de polícia. E ainda bem.*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Na literatura, o crime compensa? A prova A é conclusiva: o policial é o gênero ficcional mais lido em todo o mundo – e o mais adaptado para o cinema e a TV. Portanto, também o mais traduzido. Só as séries suecas de Lars Kepler (com uma dobradinha conjugal) e de Stieg Larsson/David Lagerkrantz (um dueto mediúnico) já venderam 80 milhões e lá vai pedrada de exemplares.  Mais: a evolução da “crime story” é uma súmula da literatura contemporânea. Começando pelo clássico investigador inglês de polainas, desmascarando o mordomo enquanto apara o gramado da sua cottage com uma pinça. Depois com o “hard-boiled” americano de Dashiell Hammet e Raymond Chandler, no qual o detetive particular é ele próprio um pária. Passando pelos nerds forenses tipo CSI, Patricia Cornwell e Kathy Reichs. E desembocando nos serial killers e respectivos profilers, cuja genealogia a série Mindhunters exuma e entroniza. Sem falar na fusão do policial com o histórico, com detetives na Roma Antiga (Lindsay Davis) e na Idade Média (Umberto Eco e Ellis Peters). E ainda o “noir regionalista”, como o catalão Pepe Carvalho (de Manuel Vásquez Montalban) e o siciliano Salvo Montalbano (de Andrea Camilleri). Incluindo, claro, o hoje tentacular nordic noir (me aguardem).

Rooney Mara interpreta Lisbeth Salander em 'Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres' (2011) Foto: BALDUR BRAGASON

Na acepção atual do termo, a polícia surgiu no século 19, e os romances policiais na garupa dela. Na maior parte da história humana, o crime foi considerado um perrengue entre indivíduos, que podia ser negociado e resolvido entre as partes lesadas. Por vezes, rolando um “olho por olho, dente por dente”. Com o advento do Poder Judiciário e da entidade do procurador, se sedimenta a ideia do delito como uma infração às leis do Estado – e do criminoso como um inimigo público. É sugestivo que o criador de uma das primeiras forças policiais modernas (a francesa Sûreté) tenha sido um criminoso/criminalista: Vidocq, cuja vida inspirou Hugo, Balzac, Poe e Conan Doyle.

Para se avaliar o poder da ficção policial, basta dizer que, segundo pesquisa realizada em 2008 pela emissora UKTV Gold, 58% dos britânicos acreditam que Sherlock Holmes existiu de verdade. Em vida, Conan Doyle recebeu centenas de cartas a solicitar os serviços do personagem, brandindo fortunas como honorários. Se Sherlock é a quintessência da lógica, o doutor Watson corresponde à mais prosaica banalidade – como aqueles casais felizes cimentados pela atração dos opostos. Doyle acabou por odiar Sherlock e acabou com a raça dele. Mas a reação do público foi de histeria coletiva, com cortejos fúnebres nas ruas de Londres. Dez anos depois, Doyle ressuscitou Holmes. Hoje, o lar/museu de Sherlock (Baker Street, 21-B) é uma atração turística mais visitada do que o Big Ben e o Palácio de Buckingham juntos. 

Rezam as estatísticas que as mulheres não curtem policiais – mas pontificam entre os melhores autores do gênero. De Agatha Christie (que rivalizou com a Bíblia e vendeu 2 bilhões de exemplares até ontem) a P.D. James. Esta última é a minha favorita, autora do instrutivo Segredos do Romance Policial, mãe do inspetor-poeta Adam Dalgliesh, que cita Robert Browning sobre a ambivalência do mal: “Nosso interesse está no limiar perigoso das coisas. /O ladrão honesto, o assassino terno,/O ateu supersticioso.” Por outro lado, no policial clássico reinavam seja o feminicídio, seja a femme fatale (e a mulher era sempre suspeita: cherchez la femme!). Como a arte imita a vida, as coisas mudaram à beça: em Stalker, de Lars Kepler, a investigação é conduzida por uma inspetora lésbica e grávida da companheira. 

Mas será a “crime story” um gênero conservador? Depende. Em primeiro lugar, ela demonstra que a realidade não é tão estável quanto as instituições gostariam que a gente acreditasse. Mas um “final feliz” corresponde à ordem restaurada. Só que cada caso é um caso. Por exemplo: quem protagoniza a investigação: um membro da corporação policial que age oficialmente em nome da lei? Ou um diletante, com uma pegada idiossincrática (um detetive particular, um jornalista, uma hacker ou mesmo um hipnotista)? Para cúmulo, nas histórias policiais à quatro mãos de Jorge Luis Borges e Bioy Casares, o detetive dom Isidro Parodi resolve os enigmas a partir de uma cela de prisão, onde está confinado por um crime que não cometeu.

Se ainda fosse necessário, a menção a Borges/Bioy vaporiza a baboseira de que o policial é um gênero pereba. Sim, existem autores policiais que parecem escrever por quilo, como Georges Simenon, autor de 192 romances, 158 novelas, memórias e uns trocentos contos – sem mencionar uma vasta obra com 27 pseudônimos diferentes. Um dia, Alfred Hitchcock ligou para a casa de Simenon e quem atendeu disse: “Desculpe, ele acabou de iniciar um novo romance...” E Hitch: “Ah, não faz mal – eu espero na linha.” E se o maior gênio da literatura em português (Fernando Pessoa) traduziu o primeiro policial americano (O Caso da Quinta Avenida), um poema do pai do gênero (O Corvo, de Poe) e com o heterônimo Alexander Sarah talhou pelo menos dois investigadores (o ex-sargento Willian Byng e Abilio Quaresma, “o raciocinador”) – bem, está de bom tamanho para mim. Ah, sem falar polonesa Olga Tokarczuk, recente prêmio Nobel de Literatura, com seu thriller Sobre os Ossos dos Mortos.

O nordic noir é o mais recente avatar do gênero, nascido na Escandinávia. Características: crimes brutais abalando comunidades seguras (o Estado do bem-estar social), cenário inóspito e austero (fiordes remotos ou vilarejos polares), protagonista atormentado (o detetive cujas vidas pessoal e profissional se sabotam reciprocamente), atmosfera mórbida e moralmente ambígua, títulos com as palavras “neve”, “frio”, “gelo” ou “inverno”, temas perturbadores como misoginia, estupro, racismo. 

A Noruega, por exemplo, feudo de Jo Nesbo, cujo inspetor Harry Hole já vendeu 30 milhões de exemplares em 40 idiomas. País em primeiro lugar mundial no Índice de Desenvolvimento Humano, mas também de Anders Breivik, que matou 77 adolescentes na ilha de Utoya em 2011. Dos 700 mil habitantes do centro de Oslo, 200 mil são imigrantes ou filhos de imigrantes. Não espanta que uma ex-ministra norueguesa da Justiça – Anne Holt – tenha virado uma prolífica escritora... policial.

O pai do nordic noir é Stieg Larsson, com a trilogia Millennium, best-seller planetário e lida por 1 em cada 4 suecos. Larsson morreu de infarto em 2004, aos 49 anos, depois de subir sete lances de escada até à redação da sua revista (o elevador quebrara). Como completou só três dos dez romances planejados sobre a hacker Lisbeth Salander e o jornalista Mikail Blomkvist, em 2013 a editora Norstedts incumbiu David Lagercrantz de tocar o bonde daquela mina de ouro. Até então, o sujeito era conhecido pela biografia do jogador de futebol sueco Slatan Ibrahimovic. Mas deu conta do recado, alinhavando até agora três episódios da saga, o último dos quais é A Garota Marcada Para Morrer.

Logo de cara, uma dica das fissuras no éden escandinavo: “Hoje mal se caminhava cinquenta metros sem que alguém lhe pedisse algumas moedas. Ao longo das calçadas, do lado de fora das lojas, nos pontos de coleta de lixo reciclável e nas entradas do metrô, homens e mulheres mendigavam. Uma Estocolmo nova e arruinada tinha surgido, e num piscar de olhos todos se acostumaram. Esta é a triste verdade. O número de mendigos havia aumentado praticamente ao mesmo tempo que os holmienses pararam de andar com dinheiro em espécie no bolso, e assim como todo mundo ele tinha aprendido a desviar os olhos”. 

A hacker com o dragão tatuado continua botando para quebrar. Por estranho que pareça, Lisbeth foi inspirada numa personagem infantil, Pipi das Meias Longas, uma espécie de Mônica sueca, briguenta mas adorável. A nêmesis dela é sua irmã, com quem mantém uma relação tão fraternal quanto Caim e Abel. É um folhetim de esquerda (Stieg Larsson escreveu um livro sobre a extrema-direita sueca), mas sem aquele mantra tóxico de que os fins justificam os meios.

Outro boa novidade do nordic noir é Stalker, quinto volume da série de Lars Kepler (pseudônimo de um casal, ele sueco, ela portuguesa). Também aqui rolam caneladas no paraíso escandinavo, que tem suas serpentes, nem que seja a monotonia igualitária da social-democracia: “Nunca ocorrera a Margot como somos todos tão parecidos uns com os outros. Visto através de uma janela, um amplo espectro de suecos amolda-se ao mesmo padrão, a ponto de se tornarem intercambiáveis. Olhando de fora, parece que vivemos exatamente da mesma maneira. Temos a mesma aparência, fazemos as mesmas coisas, possuímos os mesmos objetos”. 

Não se chora apenas de barriga cheia, mas também pelos cadáveres, que não tardarão a gorgolejar. Stalker escoa em parágrafos curtos e capítulos breves (nada menos que 130!), sempre no presente do indicativo. O passo é hipnótico como o seu protagonista Erik Maria Bark (o hipnotista do primeiro volume da série), cumprindo a judiciosa dica de Italo Calvino sobre o ritmo ficcional: “A boa prosa é como um cavalo que alterna o trote e o galope”. 

Enfim, não dá outra: muito do melhor da ficção contemporânea (literária, cinematográfica ou televisiva) é um verdadeiro caso de polícia. E ainda bem.*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Na literatura, o crime compensa? A prova A é conclusiva: o policial é o gênero ficcional mais lido em todo o mundo – e o mais adaptado para o cinema e a TV. Portanto, também o mais traduzido. Só as séries suecas de Lars Kepler (com uma dobradinha conjugal) e de Stieg Larsson/David Lagerkrantz (um dueto mediúnico) já venderam 80 milhões e lá vai pedrada de exemplares.  Mais: a evolução da “crime story” é uma súmula da literatura contemporânea. Começando pelo clássico investigador inglês de polainas, desmascarando o mordomo enquanto apara o gramado da sua cottage com uma pinça. Depois com o “hard-boiled” americano de Dashiell Hammet e Raymond Chandler, no qual o detetive particular é ele próprio um pária. Passando pelos nerds forenses tipo CSI, Patricia Cornwell e Kathy Reichs. E desembocando nos serial killers e respectivos profilers, cuja genealogia a série Mindhunters exuma e entroniza. Sem falar na fusão do policial com o histórico, com detetives na Roma Antiga (Lindsay Davis) e na Idade Média (Umberto Eco e Ellis Peters). E ainda o “noir regionalista”, como o catalão Pepe Carvalho (de Manuel Vásquez Montalban) e o siciliano Salvo Montalbano (de Andrea Camilleri). Incluindo, claro, o hoje tentacular nordic noir (me aguardem).

Rooney Mara interpreta Lisbeth Salander em 'Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres' (2011) Foto: BALDUR BRAGASON

Na acepção atual do termo, a polícia surgiu no século 19, e os romances policiais na garupa dela. Na maior parte da história humana, o crime foi considerado um perrengue entre indivíduos, que podia ser negociado e resolvido entre as partes lesadas. Por vezes, rolando um “olho por olho, dente por dente”. Com o advento do Poder Judiciário e da entidade do procurador, se sedimenta a ideia do delito como uma infração às leis do Estado – e do criminoso como um inimigo público. É sugestivo que o criador de uma das primeiras forças policiais modernas (a francesa Sûreté) tenha sido um criminoso/criminalista: Vidocq, cuja vida inspirou Hugo, Balzac, Poe e Conan Doyle.

Para se avaliar o poder da ficção policial, basta dizer que, segundo pesquisa realizada em 2008 pela emissora UKTV Gold, 58% dos britânicos acreditam que Sherlock Holmes existiu de verdade. Em vida, Conan Doyle recebeu centenas de cartas a solicitar os serviços do personagem, brandindo fortunas como honorários. Se Sherlock é a quintessência da lógica, o doutor Watson corresponde à mais prosaica banalidade – como aqueles casais felizes cimentados pela atração dos opostos. Doyle acabou por odiar Sherlock e acabou com a raça dele. Mas a reação do público foi de histeria coletiva, com cortejos fúnebres nas ruas de Londres. Dez anos depois, Doyle ressuscitou Holmes. Hoje, o lar/museu de Sherlock (Baker Street, 21-B) é uma atração turística mais visitada do que o Big Ben e o Palácio de Buckingham juntos. 

Rezam as estatísticas que as mulheres não curtem policiais – mas pontificam entre os melhores autores do gênero. De Agatha Christie (que rivalizou com a Bíblia e vendeu 2 bilhões de exemplares até ontem) a P.D. James. Esta última é a minha favorita, autora do instrutivo Segredos do Romance Policial, mãe do inspetor-poeta Adam Dalgliesh, que cita Robert Browning sobre a ambivalência do mal: “Nosso interesse está no limiar perigoso das coisas. /O ladrão honesto, o assassino terno,/O ateu supersticioso.” Por outro lado, no policial clássico reinavam seja o feminicídio, seja a femme fatale (e a mulher era sempre suspeita: cherchez la femme!). Como a arte imita a vida, as coisas mudaram à beça: em Stalker, de Lars Kepler, a investigação é conduzida por uma inspetora lésbica e grávida da companheira. 

Mas será a “crime story” um gênero conservador? Depende. Em primeiro lugar, ela demonstra que a realidade não é tão estável quanto as instituições gostariam que a gente acreditasse. Mas um “final feliz” corresponde à ordem restaurada. Só que cada caso é um caso. Por exemplo: quem protagoniza a investigação: um membro da corporação policial que age oficialmente em nome da lei? Ou um diletante, com uma pegada idiossincrática (um detetive particular, um jornalista, uma hacker ou mesmo um hipnotista)? Para cúmulo, nas histórias policiais à quatro mãos de Jorge Luis Borges e Bioy Casares, o detetive dom Isidro Parodi resolve os enigmas a partir de uma cela de prisão, onde está confinado por um crime que não cometeu.

Se ainda fosse necessário, a menção a Borges/Bioy vaporiza a baboseira de que o policial é um gênero pereba. Sim, existem autores policiais que parecem escrever por quilo, como Georges Simenon, autor de 192 romances, 158 novelas, memórias e uns trocentos contos – sem mencionar uma vasta obra com 27 pseudônimos diferentes. Um dia, Alfred Hitchcock ligou para a casa de Simenon e quem atendeu disse: “Desculpe, ele acabou de iniciar um novo romance...” E Hitch: “Ah, não faz mal – eu espero na linha.” E se o maior gênio da literatura em português (Fernando Pessoa) traduziu o primeiro policial americano (O Caso da Quinta Avenida), um poema do pai do gênero (O Corvo, de Poe) e com o heterônimo Alexander Sarah talhou pelo menos dois investigadores (o ex-sargento Willian Byng e Abilio Quaresma, “o raciocinador”) – bem, está de bom tamanho para mim. Ah, sem falar polonesa Olga Tokarczuk, recente prêmio Nobel de Literatura, com seu thriller Sobre os Ossos dos Mortos.

O nordic noir é o mais recente avatar do gênero, nascido na Escandinávia. Características: crimes brutais abalando comunidades seguras (o Estado do bem-estar social), cenário inóspito e austero (fiordes remotos ou vilarejos polares), protagonista atormentado (o detetive cujas vidas pessoal e profissional se sabotam reciprocamente), atmosfera mórbida e moralmente ambígua, títulos com as palavras “neve”, “frio”, “gelo” ou “inverno”, temas perturbadores como misoginia, estupro, racismo. 

A Noruega, por exemplo, feudo de Jo Nesbo, cujo inspetor Harry Hole já vendeu 30 milhões de exemplares em 40 idiomas. País em primeiro lugar mundial no Índice de Desenvolvimento Humano, mas também de Anders Breivik, que matou 77 adolescentes na ilha de Utoya em 2011. Dos 700 mil habitantes do centro de Oslo, 200 mil são imigrantes ou filhos de imigrantes. Não espanta que uma ex-ministra norueguesa da Justiça – Anne Holt – tenha virado uma prolífica escritora... policial.

O pai do nordic noir é Stieg Larsson, com a trilogia Millennium, best-seller planetário e lida por 1 em cada 4 suecos. Larsson morreu de infarto em 2004, aos 49 anos, depois de subir sete lances de escada até à redação da sua revista (o elevador quebrara). Como completou só três dos dez romances planejados sobre a hacker Lisbeth Salander e o jornalista Mikail Blomkvist, em 2013 a editora Norstedts incumbiu David Lagercrantz de tocar o bonde daquela mina de ouro. Até então, o sujeito era conhecido pela biografia do jogador de futebol sueco Slatan Ibrahimovic. Mas deu conta do recado, alinhavando até agora três episódios da saga, o último dos quais é A Garota Marcada Para Morrer.

Logo de cara, uma dica das fissuras no éden escandinavo: “Hoje mal se caminhava cinquenta metros sem que alguém lhe pedisse algumas moedas. Ao longo das calçadas, do lado de fora das lojas, nos pontos de coleta de lixo reciclável e nas entradas do metrô, homens e mulheres mendigavam. Uma Estocolmo nova e arruinada tinha surgido, e num piscar de olhos todos se acostumaram. Esta é a triste verdade. O número de mendigos havia aumentado praticamente ao mesmo tempo que os holmienses pararam de andar com dinheiro em espécie no bolso, e assim como todo mundo ele tinha aprendido a desviar os olhos”. 

A hacker com o dragão tatuado continua botando para quebrar. Por estranho que pareça, Lisbeth foi inspirada numa personagem infantil, Pipi das Meias Longas, uma espécie de Mônica sueca, briguenta mas adorável. A nêmesis dela é sua irmã, com quem mantém uma relação tão fraternal quanto Caim e Abel. É um folhetim de esquerda (Stieg Larsson escreveu um livro sobre a extrema-direita sueca), mas sem aquele mantra tóxico de que os fins justificam os meios.

Outro boa novidade do nordic noir é Stalker, quinto volume da série de Lars Kepler (pseudônimo de um casal, ele sueco, ela portuguesa). Também aqui rolam caneladas no paraíso escandinavo, que tem suas serpentes, nem que seja a monotonia igualitária da social-democracia: “Nunca ocorrera a Margot como somos todos tão parecidos uns com os outros. Visto através de uma janela, um amplo espectro de suecos amolda-se ao mesmo padrão, a ponto de se tornarem intercambiáveis. Olhando de fora, parece que vivemos exatamente da mesma maneira. Temos a mesma aparência, fazemos as mesmas coisas, possuímos os mesmos objetos”. 

Não se chora apenas de barriga cheia, mas também pelos cadáveres, que não tardarão a gorgolejar. Stalker escoa em parágrafos curtos e capítulos breves (nada menos que 130!), sempre no presente do indicativo. O passo é hipnótico como o seu protagonista Erik Maria Bark (o hipnotista do primeiro volume da série), cumprindo a judiciosa dica de Italo Calvino sobre o ritmo ficcional: “A boa prosa é como um cavalo que alterna o trote e o galope”. 

Enfim, não dá outra: muito do melhor da ficção contemporânea (literária, cinematográfica ou televisiva) é um verdadeiro caso de polícia. E ainda bem.*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

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